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14|JUNHO|2002
música|amélia
muge
as
palavras que dançam
“Encontros”, alguns arriscados, é a palavra chave que usa
para caracterizar o seu novo álbum, aMonte. José Afonso, Sérgio Godinho e
Pessoa são alguns dos interlocutores.
Amélia Muge fala com entusiasmo de tudo o que sente, pensa,
faz e preocupa. Se pudesse, diz, “explicava tudo”. Artista multifacetada,
autora de marcos discográficos da música popular portuguesa como “Múgica”,
“Todos os Dias” e “Taco-a-Taco”, fez desta vez também os desenhos que preenchem
a capa do novo CD, “aMonte”, bem como a realização do vídeo tirado da faixa
“Sonos do ser”, sobre poema de Fernando Pessoa.
Num
espetáculo realizado há poucas semanas no Auditório Fernando Lopes Graça, em
Almada, utilizou projeções sobre balões, obtendo, com o recurso a uma técnica
simples, efeitos visuais que considera “espetaculares”.
“A
multiplicidade de usos é o lado mais interessante dos multimédia. A
possibilidade de uma visão de conjunto, sem perder a visão individual de cada
elemento. Um bocado como as sociedades humanas…”. “aMonte”, diz, é um “disco de
encontros”. E “um mapa de percursos que proporciona esses encontros, com
pessoas e com ideias. De mestiçagens culturais e duplas leituras”.
“aMonte”
não segue um conceito, é um olhar como o da mosca. Multifacetado. Descobridor
de dimensões insuspeitas do som e da palavra. Intuições ligam-se a maquinismos
mágicos, o Inconsciente torna-se poema, a palavra cantada dança numa girândola
de tons que reproduzem as imagens do céu e do mar.
“O primeiro
disco, dediquei-o às leis de atração universal. É um bocado isso. Estes
desenhos (NR: da capa), estas matérias, são todos feitos por mim, mas depois
acabo por ser interrogada por eles. Os animais, os pássaros, que pertencem ao
mundo do céu, mas também as sereias, ou melhor, os sereios… dão uma outra
profundidade ao que é a voz, como algo que voa, que se esconde, que não se
desvenda facilmente. São, no fundo, uma metáfora duma ideia de voz”.
Quem
anda a monte. Quem amonte – Amante, anda? “E, se se tirar o ‘n’ dica ‘amo-te’”.
É assim o jogo, a entrega e a demanda de quem busca algo que não se confina ao
instante da moda ou às tendências em voga. “Tem duas interpretações: a de andar
a descobrir caminhos e a de alguém que anda acossado, porque transgrediu em
alguma coisa. As vozes que persigo são vozes que transgridem, as modas, os
lugares-comuns, os papas das modernidades. Cada vez mais me apetece andar em
perseguição destas vozes misteriosas, da música, do teatro, da literatura. Às
vezes, quanto mais a gente as lê e julga percebê-las, é quando não percebeu
nada…”.
Não, ninguém pensa terem sido
essas as razões que levaram a que “aMonte” não tivesse edição por nenhuma
multinacional, sempre dispostas a apostar no risco e na ousadia. Amélia defende
que “cada vez mais, a única maneira de lutar contra a massificação excessiva é
a produção independente”. Trata-se, então, de uma edição de autor. Isto é, de
um objecto feito com amor, do todo ao pormenor. Da apresentação gráfica à
construção minuciosa de cada uma das 18 canções, “aMonte” leva o rótulo – mais
uma pintura – a dizer: “Amélia Muge”.
a garra do macaco. De canções (ainda) de sabor
tradicional, como os dois momentos de “ A monte” ou o repique de sinos da
aldeia que introduz “Nª Sra. da Azenha”, à recriação mnemónica de “A Garra do
macaco”, construída a partir de um poema de Laurie Anderson, “Monkey’s paw” (do
álbum “Strange Angels”, traduzido para português por João Lisboa, passando pelo
mimetismo das batidas tecno em “A Irmandade dos sonhos” (onde também espreita a
autora de “Strange Angels”) e pela declamação de um poema de José Eduardo
Agualusa em glosa irónica a Jorge Luís Borges, “aMonte” estende-se por uma
intemporalidade que recusa catalogações redutoras.
“Não interessa o ‘antigo’ ou o
‘moderno’, nem a tecnologia. Tem a ver com uma outra coisa que sinto
naturalmente em mim, a consciência de um certo Universal que está para lá do
próprio ser humano e acaba por nos unir às matérias de base do Universo e às
maneiras como nós as sentimos”. Ou, como diz a letra de “A Garra do macaco”, “A
Natureza tem regras e se a enganamos, cuidado vem logo aí a a garra do macaco”.
Laurie Anderson, como Fátima
Miranda, que Amélia também cita no rol das suas admirações, “na forma de ligar
as palavras à música, ao som”, é um exemplo de liberdade, a mesma liberdade que
cultiva e persegue na sua obra. “Fui directamente ao texto, sem ouvir a música.
O importante era descobrir a maneira de fazer a ligação com ela e à forma como
ela liga a música ao inglês. Achei que era possível fazer o mesmo com o
português. O clima era o ideal para trazer para este mundo esta especificidade
dos encontros que têm a ver com a tradução. ‘A garra do macaco’ fala ainda dos
perigos e dos avisos de alguns encontros…”.
Já “A irmandade dos sonhos” é
“toda uma grande piada”. A todas “as outras questões que têm a ver com as
audiências, com o gosto do que é ou não popular, da massificação”.
Mas estará Amélia Muge
absolutamente imune à tentação de fazer um disco de música de dança, à
semelhança do que em breve acontecerá com os Madredeus? “Por acaso ainda não o
fiz, mas houve um trabalho de remistura muito bem feito com um tema meu, pelos
Underground Sound-System of Lisbon… Mas uma das coisas que não aprecio na
‘dance music’ é logo a imposição de uma marca rítmica empobrecedora. Agora,
mais depressa farei, como tenciono, um projecto ligado à dança, mas à dança
mesmo, como discurso, para perceber como é que há margens, fronteiras entre a
dança, a música e a palavra. A palavra-dança”.
“aMonte” é, precisamente isso:
palavras que dançam.
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