28/03/2016

As palavras que dançam [Amélia Muge]

Y 14|JUNHO|2002
música|amélia muge

as palavras que dançam

“Encontros”, alguns arriscados, é a palavra chave que usa para caracterizar o seu novo álbum, aMonte. José Afonso, Sérgio Godinho e Pessoa são alguns dos interlocutores.

Amélia Muge fala com entusiasmo de tudo o que sente, pensa, faz e preocupa. Se pudesse, diz, “explicava tudo”. Artista multifacetada, autora de marcos discográficos da música popular portuguesa como “Múgica”, “Todos os Dias” e “Taco-a-Taco”, fez desta vez também os desenhos que preenchem a capa do novo CD, “aMonte”, bem como a realização do vídeo tirado da faixa “Sonos do ser”, sobre poema de Fernando Pessoa.
            Num espetáculo realizado há poucas semanas no Auditório Fernando Lopes Graça, em Almada, utilizou projeções sobre balões, obtendo, com o recurso a uma técnica simples, efeitos visuais que considera “espetaculares”.
            “A multiplicidade de usos é o lado mais interessante dos multimédia. A possibilidade de uma visão de conjunto, sem perder a visão individual de cada elemento. Um bocado como as sociedades humanas…”. “aMonte”, diz, é um “disco de encontros”. E “um mapa de percursos que proporciona esses encontros, com pessoas e com ideias. De mestiçagens culturais e duplas leituras”.
            “aMonte” não segue um conceito, é um olhar como o da mosca. Multifacetado. Descobridor de dimensões insuspeitas do som e da palavra. Intuições ligam-se a maquinismos mágicos, o Inconsciente torna-se poema, a palavra cantada dança numa girândola de tons que reproduzem as imagens do céu e do mar.
            “O primeiro disco, dediquei-o às leis de atração universal. É um bocado isso. Estes desenhos (NR: da capa), estas matérias, são todos feitos por mim, mas depois acabo por ser interrogada por eles. Os animais, os pássaros, que pertencem ao mundo do céu, mas também as sereias, ou melhor, os sereios… dão uma outra profundidade ao que é a voz, como algo que voa, que se esconde, que não se desvenda facilmente. São, no fundo, uma metáfora duma ideia de voz”.
            Quem anda a monte. Quem amonte – Amante, anda? “E, se se tirar o ‘n’ dica ‘amo-te’”. É assim o jogo, a entrega e a demanda de quem busca algo que não se confina ao instante da moda ou às tendências em voga. “Tem duas interpretações: a de andar a descobrir caminhos e a de alguém que anda acossado, porque transgrediu em alguma coisa. As vozes que persigo são vozes que transgridem, as modas, os lugares-comuns, os papas das modernidades. Cada vez mais me apetece andar em perseguição destas vozes misteriosas, da música, do teatro, da literatura. Às vezes, quanto mais a gente as lê e julga percebê-las, é quando não percebeu nada…”.
Não, ninguém pensa terem sido essas as razões que levaram a que “aMonte” não tivesse edição por nenhuma multinacional, sempre dispostas a apostar no risco e na ousadia. Amélia defende que “cada vez mais, a única maneira de lutar contra a massificação excessiva é a produção independente”. Trata-se, então, de uma edição de autor. Isto é, de um objecto feito com amor, do todo ao pormenor. Da apresentação gráfica à construção minuciosa de cada uma das 18 canções, “aMonte” leva o rótulo – mais uma pintura – a dizer: “Amélia Muge”.

a garra do macaco. De canções (ainda) de sabor tradicional, como os dois momentos de “ A monte” ou o repique de sinos da aldeia que introduz “Nª Sra. da Azenha”, à recriação mnemónica de “A Garra do macaco”, construída a partir de um poema de Laurie Anderson, “Monkey’s paw” (do álbum “Strange Angels”, traduzido para português por João Lisboa, passando pelo mimetismo das batidas tecno em “A Irmandade dos sonhos” (onde também espreita a autora de “Strange Angels”) e pela declamação de um poema de José Eduardo Agualusa em glosa irónica a Jorge Luís Borges, “aMonte” estende-se por uma intemporalidade que recusa catalogações redutoras.
“Não interessa o ‘antigo’ ou o ‘moderno’, nem a tecnologia. Tem a ver com uma outra coisa que sinto naturalmente em mim, a consciência de um certo Universal que está para lá do próprio ser humano e acaba por nos unir às matérias de base do Universo e às maneiras como nós as sentimos”. Ou, como diz a letra de “A Garra do macaco”, “A Natureza tem regras e se a enganamos, cuidado vem logo aí a a garra do macaco”.
Laurie Anderson, como Fátima Miranda, que Amélia também cita no rol das suas admirações, “na forma de ligar as palavras à música, ao som”, é um exemplo de liberdade, a mesma liberdade que cultiva e persegue na sua obra. “Fui directamente ao texto, sem ouvir a música. O importante era descobrir a maneira de fazer a ligação com ela e à forma como ela liga a música ao inglês. Achei que era possível fazer o mesmo com o português. O clima era o ideal para trazer para este mundo esta especificidade dos encontros que têm a ver com a tradução. ‘A garra do macaco’ fala ainda dos perigos e dos avisos de alguns encontros…”.
Já “A irmandade dos sonhos” é “toda uma grande piada”. A todas “as outras questões que têm a ver com as audiências, com o gosto do que é ou não popular, da massificação”.
Mas estará Amélia Muge absolutamente imune à tentação de fazer um disco de música de dança, à semelhança do que em breve acontecerá com os Madredeus? “Por acaso ainda não o fiz, mas houve um trabalho de remistura muito bem feito com um tema meu, pelos Underground Sound-System of Lisbon… Mas uma das coisas que não aprecio na ‘dance music’ é logo a imposição de uma marca rítmica empobrecedora. Agora, mais depressa farei, como tenciono, um projecto ligado à dança, mas à dança mesmo, como discurso, para perceber como é que há margens, fronteiras entre a dança, a música e a palavra. A palavra-dança”.

“aMonte” é, precisamente isso: palavras que dançam.

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