Y
10|MAIO|2002
música|vanguarda
portuguesa
Ser vanguardista é pôr olhos, ouvidos e mãos além do
horizonte. Em Portugal há os que, mergulhados no passado, ousaram a revolução,
como os Gaiteiros de Lisboa. E os que pesquisam os limites da liberdade do ato
criativo, como Sei Miguel ou Ernesto Rodrigues.
a
vanguarda
não
guarda, agita e liberta
“Avant garde”. A guarda-avançada. Vilipendiada por alguns,
incompreendida por muitos, existe e é a locomotiva que puxa o comboio.
Vanguardista é aquele que ousa o corte. Mais do que um inventor de estilos
originais (estes vêm por acréscimo), o vanguardista descobre em si novas formas
de sensibilidade e expressividade. Webern, Xenakis, Stockhausen, John Cage, La
Monte Young, Francisco Lopez foram ou são vanguardistas. Duke Ellington,
Charlie Parker, John Coltrane, Louis Sclavis, Evan Parker, Valentin Clastrier
foram ou são vanguardistas. Jimi Hendrix, Christian Vander, Peter Hammill, Amon
Tobin foram ou são vanguardistas. Na Folk, Fairport Convention, Bothy Band,
Hedningarna foram ou são vanguardistas.
Em
Portugal, como em tudo, é mais difícil estar à frente (mesmo seguir
não
compreendem os Velhos do Restelo como é que os respeitáveis Gaiteiros
pontapeiam o império das chulas e do vira, as baladas “de intervenção” e os
bailaricos
em frente…) porque tudo ficou para trás. A Portugal, e
falando de música popular, chegam os ecos de movimentos que entretanto na fonte
se esgotaram. Adapta-se como se pode. Mesmo assim – e surpreendentemente – há
exceções. José Mário Branco, Fausto ou a Banda do Casaco foram, a seu tempo,
vanguardistas.
À entrada
do séc. XXI a coisa pia mais fino. Na era da informação, da net e dos laptops,
a tecnologia e a história democratizaram-se, abrindo caminho à vulgaridade,
quando não à imbecilidade. Se na pop quase tudo e todos andam a reboque das
vendas e das modas, sendo difícil vislumbrar entre a multidão verdadeiros
inovadores, é, paradoxalmente, no campo da música de raiz tradicional que as
ondas de choque se fazem sentir. Os Gaiteiros de Lisboa são a prova disso, na
altura em que o seu terceiro álbum de originais, “Macaréu”, alastra como um tsunami
sobre os campos ressequidos da folk. É a vanguarda com raízes no passado, ponte
construída e ponte destruída entre gerações.
Existe,
contudo, outra vanguarda, sedimentada sobre gestos e modos cde sentir sem
pátria. Ou com parentes numa família internacional. Da eletrónica ou da música
improvisada. Personificada por nomes como Sei Miguel, Manuel Mota, Ernesto
Rodrigues, Emídio Buchinho ou o estreante Pedro Chambel, todos com álbuns novos
lançados no mercado, sendo de assinalar o aparecimento de duas novas editoras
independentes, a Headlights e a Creative Sources. Todos eles imunes a uma noção
estandardizada de “música de entretenimento”. Arriscando a incomunicabilidade
mas dispostos a fazer valer a sua diferença. O Y provou e testou as ondas de
choque.
Um macaréu
para tudo derrubar. Com “Invasões Bárbaras” e “Bocas do Inferno”, aos quais se
poderá juntar o disco ao vivo “Dançachamas”, os Gaiteiros puseram em estado de
sítio uma música – a chamada MPP (música popular portuguesa) – em polvorosa.
Não compreenderam os Velhos do Restelo como foi possível a músicos
respeitáveis, alguns deles ligados no passado a instituições como o GAC ou
Almanaque, pontapear com tamanha violência o império das chulas e do vira, mas
também as baladas “de intervenção” e os bailaricos acomodados do bombo e do
cavaquinho.
Apelidados
de início como os “Hedningarna portugueses”, cedo provaram ser algo mais que só
a eles pertence. “Para fazer o trabalho que fazemos é preciso ter passado, ter
cantado muita música coral, conhecer a música polifónica portuguesa e de outras
culturas, coisas que só se adquirem com a experiência”, diz Carlos Guerreiro,
como José Manuel David um dos compositores do grupo.
“Macaréu”
engrossou o arsenal de artefactos sonoros que os Gaiteiros utilizam em estúdio
e ao vivo. “Estamos com um backline poderosíssimo, quase precisamos de um
camião TIR para andar na estrada. Temos muitos instrumentos, objetos, muita
tralha… Muitas vezes, nos concertos, nem lhes tocamos, mas se nos apetecer
estão ali… É esse nosso lado mais experimental… sobretudo quando os temas estão
mal ensaiados (risos)”.
Às gaitas
galegas, sanfona, percussões, trompa, flautas e os menos ortodoxos Túbaros de
Orfeu, marimborgaz e cabeçadecompressorofone juntam-se as “small pipes”, a
gaita medieval e a “gaida” búlgara (fruto do trabalho e da pesquisa notáveis de
Paulo Marinho no âmbito desta família de instrumentos) e os novos “Tubarões”,
dispositivo tubular de baixos de origem alienígena. Apetece-nos dizer que os
Gaiteiros se tornaram numa espécie de Art Ensemble of Chicago da música de raiz
tradicional, amontoando instrumentos, cores, formas e símbolos no ato global de
fazer música.
Um ritual
contemporâneo, que os coloca, como à mítica formação de free jazz de Chicago,
na dianteira. Carlos Guerreiro aceita a comparação mas estabelece as
distâncias: “a música de vanguarda está ligada a uma atitude de inovação e de
pesquisa. Existe uma vanguarda em todas as áreas da música. Se calhar nós
podemos ter esse papel, embora fora dos cânones. Procuramos, dentro de uma
linha que é a nossa, renovar, inovar. Houve uma altura em que cheguei a
acreditar que não haveria novo disco, mas agora estão constantemente a
surgir-me novas ideias”.
Dessas há
uma que vai ganhando forma (um concerto no Coliseu dos Recreios – “porque não
assumir esse risco?”) para pôr tudo em pratos limpos: “Sem querer ser
pretensioso, em termos de choque, de onde não existe muita coisa que nos possa
resisitir!”
sons estranhos…
Sei Miguel, Ernesto
Rodrigues, Manuel Mota, Emídio Buchinho, Pedro Chambel. Ouvir os seus discos
implica ter que deitar para o lixo hábitos e ideias feitas. Nunca se sabe o que
pode estar escondido em cada esquina…
SEI MIGUEL
Still Alive in
Bairro Alto
Ed. Headlights
Sei
Miguel e o seu trompete de bolso navegam num oceano de ondas revoltas. O
ex-Moeda Noise, colaborador dos No Noise Reduction e autor a solo de álbuns
como “Breaker”, “Songs Against Love and Terrorism”, “The Blue Record”, “The
Portuguese Man of War”, “Showtime” e “Token”, reteve do jazz o parâmetro
existencial e da música contemporânea a inteligência e a disciplina. Não é um
improvisador dos instantes irrepetíveis, mas um construtor de mundos instáveis.
Executante possuído por um fogo gelado é impossível não descortinar na sua
aproximação ao silêncio e no fraseado de recorte rápido e fragmentário a sombra
de Miles Davis. Vanguarda é, no seu caso, algo que passa pela recusa e pelo
desejo de instauração de uma nova ordem, capaz de a cada momento se desmoronar
para dar lugar a novas situações de susto e precariedade. Equilibrista,
torturado e sistemático, é talvez o músico português que melhor soube
interiorizar a essência do paradoxo.
MANUEL MOTA
For Your Protection why don’t you just Paint yourself Real Good like an
Indian
Ed. Headlights
Ao lado
da Rafael Toral, Manuel Mota é o guitarrista português mais próximo de uma
corrente estética que separou a guitarra elétrica dos “axe men” do rock ‘n’
rol, personificada por músicos como Derek Bailey, Henry Kaiser ou Fred Frith.
Mas se Toral segue uma linha elétrica (falsamente) ambiental conotada com as
“frippertronics”, de Robert Fripp, mota divide, nota a nota, o compasso,
acentuando o valor da partícula em detrimento do fraseado linear ou do colorido
tímbrico. De audição a exigir níveis elevados de concentração, “For Your
Protection” alinha-se no nicho dos “Guitar Solos” de Fred Frith e da filosofia
“less is more” de Derek Bailey, segundo a máximo deste último de que, mais do
que o resultado, importa atender ao próprio instante criativo em absoluta
sintonia com o da execução.
ERNESTO RODRIGUES
Sudden Music
(c/António Chaparreiro e José Oliveira)
23 Exposures
(c/Marco Franco e José Oliveira)
Ed. Creative Sources
Violinista,
violista, compositor e improvisador, autor de álbuns como “Musique de Chambre”,
“Self Eater and Drinker”, “In Memoriam Wolf Vostell” (ambos em colaboração com
Jorge Valente) e “Multiples”, tocou com Jorge Palma antes de abandonar a pop e
o rock. “O cinema comercial, a nova ‘literatura’ de best-sellers (da linha de
Cascais), a estética televisiva, a McDonald’s e a Coca-Cola, as passerelles, o
pop-rock (com a sua condição meramente autofágica), os pimbas, os óscares, etc,
c’est tout la même chose”, comenta com um desabafo este adepto da improvisação
livre, para quem “a ideia não é o instrumento ser uma extensão do corpo, mas
fazer parte integrante da essência material que é complementada e regida pela
razão”. Ernesto Rodrigues junta na sua música o silêncio e a fragmentação: “A
atonalidade não é algo contra-natura, mas a ordem natural das coisas”.
EMÍDIO BUCHINHO
Transducer - Music for Films and Installations
Ed. Be Records
Para
Emídio Buchinho a eletrónica é o campo privilegiado de experimentação. Depois
de “Toltech” (1991, Ananana), “Transducer” reúne peças compostas para filmes
(de Pedro Sena Nunes e Caroline Barraud) e instalações (de Joana Fernandes,
Miguel Rios, Paulo Mendes, Pedro Sena Nunes) não impeditivas de uma atitude que
está longe de poder ser assimilada pelo “mainstream”. Notórias são as
reminiscências da música industrial e do novo “terrorismo digital” expresso
numa utilização de rara intensidade das “tapes”, “samples”, “objetos”,
programações, sintetizadores e Powerbook, mas também da guitarra, do piano
preparado e do violoncelo. Visíveis, também, citações à “música feita por
encomenda” da editora belga Made to Measure, nomeadamente num tema como
“Pilgrims”, que traz à memória idênticas manipulações de músicos como Benjamin
Lew e Peter Principle. Buchinho revolve grandes massas tímbricas, escreve à
máquina em “Theatre’s materiality - part II”, esculpe catedrais de metal no
avassalador “Desert flower in a cage”, obra que faz a síntese de alguma música
contemporânea erudita com as suas próprias, e por vezes assustadoras, elucubrações.
PEDRO CHAMBEL
Anamnesis
Ed. Creative Source
Para
Pedro Chambel, nóvel recruta do panorama nacional das músicas improvisadas, a
guitarra é uma máquina produtora de sons como qualquer outra e é dessa
aproximação (com base nas premissas de um Keith Rowe que combina o artesanal e
a exploração dos movimentos intuitivos determinados por essa relação com a
“máquina”) que nasce a música de “Anamnesis”. Estudou guitarra clássica para
agora a “desmontar” e nivelar de acordo com um conceito mais global de “som
eletrónico” e um processo de decifração que faz do “continuum” (e logo, de uma
dilatação do tempo) o cenário pronto a receber instantes de intromissão, sejam
eles ruídos aleatórios ou o “input” do próprio gesto técnico, acentuando o
caráter de “máscara” das memórias que o título convoca.
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