Y
17|MAIO|2002
jaki
liebezeit|música
Não há muitos músicos que possam tocar com Jaki Liebezeit,
ex-Can. Burnt Friedman consegui-o e o resultado é “Secret Rhythms”, uma das
surpresas do ano.
O
baterista que gostava de ser máquina
Na Alemanha, o conflito de gerações faz-se notar menos. Não
há cortes epistemológicos nem tragédias de caixão à cova. Quem tem Wagner,
Stockhausen, Klaus Schulze, Faust, Cluster, Kraftwerk, Einsturzende Neubauten,
Holger Hiller, To Rococo Rot e Felix Kubin, tem tudo.
Do
serialismo à música de dança, passando pelo krautrock, a “Neue Deutsche Welle”,
a música industrial, o pós-rock e as “funny electronics”, estende-se um
“continuum” feito da assimilação do que ficou para trás, a sustentar a típica
atitude experimentalista que desde sempre tem colocado os músicos alemães na
vanguarda das correntes estéticas. O Faust enfiaram o romantismo wagneriano no
comboio-fantasma do free rock e hoje destroem as salas por onde passam,
desempenhando o papel que na década de 80 pertenceu aos Einsturzende Neubauten,
os Can estudaram com Stockhausen, os To Rococo Rot executam os truques de
hipnose dos Can, Holger Hiller embrulhou a música concreta como discípulo de
Hiller, o krautrock colou-se à new wave ao ritmo motorika dos Neu! e La
Düsseldorf, os Einsturzende Neubauten remendaram os Cluster industriais com
niilismo dada, a nova cena de música de dança faz a vénia aos Kraftwerk.
A
explicação para esta continuidade estará na forma como, na Alemanha, os aspetos
culturais propriamente ditos se sobrepuseram às estratégias da indústria,
sempre pronta a criar ondas e “next big things”.
Não admira
então a associação entre o sessentão Jaki Liebezeit, baterista dos míticos Can,
e Burnt Friedman, arauto da nova escola eletrónica alemã, fundador de projetos
como Drome, Nonplace Urban Field e Flanger: 30 anos a separá-los não chegaram
para apagar afinidades. Jaki é uma “máquina de ritmos”, Burnt o alquimista das
programações, embora em “Secret Rhythms” o fascínio pelo analógico o levasse a
usar o velhinho e iconográfico sintetizador Korg MS 20 (o mesmo que nas mãos de
Felix Kubin o transforma no Rick Wakeman da “house”). Aos dois juntou-se ainda
um terceiro elemento, preponderante na criação do som “electrojazz suspenso das
nuvens” do disco, o vibrafonista Morten Grønvad,
O Y
conversou ao telefone com Jaki Liebezeit, um “modern drummer” que decidiu
deixar de tocar bateria com os pés.
A que se
deve a sua colaboração com Burnt Friedman?
Não há
muitos músicos que possam tocar comigo. Sou um desconhecido para a maior parte
deles. Preferem tocar com bateristas “normais”. Com Burnt Friedman é diferente,
ele compreende-me e eu compreendo-o. Preferiu tocar comigo a usar bateria
eletrónica mas, na verdade, eu sou uma espécie de “drum machine”… Talvez por
tocar ao lado de percussões eletrónicas desde os anos 70, acabei eu próprio por
funcionar como uma máquina. Burnt considera-me um “baterista moderno”, ideal
para tocar ao mesmo tempo que sequenciadores e toda a espécie de instrumentos
eletrónicos.
Mas essa
técnica não limita a liberdade rítmica da música?
Não. Para
não-profissionais talvez seja difícil… Quando se é baterista, o que há a fazer
é manter o tempo exato dentro do compasso, com o máximo rigor. Assim como um
cantor ou um trompetista tem que cantar ou tocar afinado, um baterista tem que
ter o tempo certo, atingir a frequência exata de cada nota.
É verdade que abandonou o pedal
do bombo a apenas usa as mãos para tocar bateria?
Sim, deixei
de usar os “drum kits” convencionais do jazz e do rock porque deixei de tocar
esses géneros de música. O que faço agora é diferente, as pessoas descrevem-no
como “eletrónica”, mas esse termo também não quer dizer nada. Para se fazer uma
música nova é necessário empregar também instrumentos novos. As baterias
antigas foram desenhadas para se tocar jazz, para serem captadas em microfones.
Curiosamente, “Secret Rhythms”
soa em certas ocasiões bastante “jazzy”…
É por causa
do vibrafone de Morten Grønvad, que é um verdadeiro músico de jazz! Mas foi
tocado em separado, diretamente para a fita, não chegou a tocar realmente
connosco.
Não
se sentiu tentado a tocar você mesmo o vibrafone?
Não, sou
apenas um baterista. Quando era mais novo toquei trompete e, mais tarde,
sintetizador e teclados, mas apenas por prazer pessoal, nunca em público.
Mas no passado também tocou jazz,
inclusiva com músicos famosos.
Sim, fui
músico de jazz aos 20 anos. Toquei em Barcelona com Chet Baker.
“Secret Rhythms” apresenta também certos
elementos étnicos, sem deixar de soar “espacial”. A lembrar os Can, obviamente.
Certas estruturas rítmicas não andam longe do que fazia o grupo, pois não?
Sem dúvida.
Quando comecei a desenvolver um estilo diferente na bateria, e isso foi há 30
anos, os sintetizadores tinham acabado de surgir, as primeiras caixas de ritmo,
os pedais de eco, tudo isso, a eletrónica invadia todas as músicas. Optei por
um estilo diferente e ainda hoje o mantenho, baseado na repetição.
O que tem menos que ver com a música
ocidental do que com a oriental…
Sim, as
minhas influências nunca foram o jazz ou o rock inglês ou americano, mas as
músicas étnicas. Africana, indiana, chinesa…
Há temas que soam como uma orquestra
de gamelão, o que também sugere as “Ethnological Forgery Series” que os Can
criaram em “Limited Edition”…
[risos] Não
sei… Não posso adiantar muitos pormenores sobre a música deste disco porque foi
quase toda feita pelo Burnt no seu computador, depois é que se juntaram os
bocados de guitarra ou o vibrafone. Embora a composição fosse partilhada pelos
dois, foi ele que misturou tudo no computador. Eu, de computadores, percebo
pouco.
Se lhe pedisse para nomear o seu
álbum preferido dos Can, qual seria?
Talvez o
terceiro, “Ege Bamyasi”. Há quem diga que se for tocado a 45 rotações soa a
“drum ‘n’ bass”. Ainda não experimentei! [risos]
Nunca deixou de viver em Colónia,
cidade onde, nos últimos anos, eclodiu grande parte da cena pós-rock alemã,
para a qual os Can são considerados uma espécie de deuses. Pode-se traçar um
paralelismo entre a época áurea do krautrock e o atual pós-rock?
Existem
semelhanças. Os novos grupos, como os dos anos 70, recusam o comercialismo,
acho que é porque gostam realmente de música, como acontecia com o krautrock,
não pensam no negócio. Há muita gente a experimentar coisas novas, como os
Kreidler.
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