14/03/2016

O baterista que gostava de ser máquina [Jaki Liebezeit]

Y 17|MAIO|2002
jaki liebezeit|música

Não há muitos músicos que possam tocar com Jaki Liebezeit, ex-Can. Burnt Friedman consegui-o e o resultado é “Secret Rhythms”, uma das surpresas do ano.

O baterista que gostava de ser máquina

Na Alemanha, o conflito de gerações faz-se notar menos. Não há cortes epistemológicos nem tragédias de caixão à cova. Quem tem Wagner, Stockhausen, Klaus Schulze, Faust, Cluster, Kraftwerk, Einsturzende Neubauten, Holger Hiller, To Rococo Rot e Felix Kubin, tem tudo.
            Do serialismo à música de dança, passando pelo krautrock, a “Neue Deutsche Welle”, a música industrial, o pós-rock e as “funny electronics”, estende-se um “continuum” feito da assimilação do que ficou para trás, a sustentar a típica atitude experimentalista que desde sempre tem colocado os músicos alemães na vanguarda das correntes estéticas. O Faust enfiaram o romantismo wagneriano no comboio-fantasma do free rock e hoje destroem as salas por onde passam, desempenhando o papel que na década de 80 pertenceu aos Einsturzende Neubauten, os Can estudaram com Stockhausen, os To Rococo Rot executam os truques de hipnose dos Can, Holger Hiller embrulhou a música concreta como discípulo de Hiller, o krautrock colou-se à new wave ao ritmo motorika dos Neu! e La Düsseldorf, os Einsturzende Neubauten remendaram os Cluster industriais com niilismo dada, a nova cena de música de dança faz a vénia aos Kraftwerk.
            A explicação para esta continuidade estará na forma como, na Alemanha, os aspetos culturais propriamente ditos se sobrepuseram às estratégias da indústria, sempre pronta a criar ondas e “next big things”.
            Não admira então a associação entre o sessentão Jaki Liebezeit, baterista dos míticos Can, e Burnt Friedman, arauto da nova escola eletrónica alemã, fundador de projetos como Drome, Nonplace Urban Field e Flanger: 30 anos a separá-los não chegaram para apagar afinidades. Jaki é uma “máquina de ritmos”, Burnt o alquimista das programações, embora em “Secret Rhythms” o fascínio pelo analógico o levasse a usar o velhinho e iconográfico sintetizador Korg MS 20 (o mesmo que nas mãos de Felix Kubin o transforma no Rick Wakeman da “house”). Aos dois juntou-se ainda um terceiro elemento, preponderante na criação do som “electrojazz suspenso das nuvens” do disco, o vibrafonista Morten Grønvad,
            O Y conversou ao telefone com Jaki Liebezeit, um “modern drummer” que decidiu deixar de tocar bateria com os pés.
            A que se deve a sua colaboração com Burnt Friedman?
            Não há muitos músicos que possam tocar comigo. Sou um desconhecido para a maior parte deles. Preferem tocar com bateristas “normais”. Com Burnt Friedman é diferente, ele compreende-me e eu compreendo-o. Preferiu tocar comigo a usar bateria eletrónica mas, na verdade, eu sou uma espécie de “drum machine”… Talvez por tocar ao lado de percussões eletrónicas desde os anos 70, acabei eu próprio por funcionar como uma máquina. Burnt considera-me um “baterista moderno”, ideal para tocar ao mesmo tempo que sequenciadores e toda a espécie de instrumentos eletrónicos.
            Mas essa técnica não limita a liberdade rítmica da música?
            Não. Para não-profissionais talvez seja difícil… Quando se é baterista, o que há a fazer é manter o tempo exato dentro do compasso, com o máximo rigor. Assim como um cantor ou um trompetista tem que cantar ou tocar afinado, um baterista tem que ter o tempo certo, atingir a frequência exata de cada nota.
É verdade que abandonou o pedal do bombo a apenas usa as mãos para tocar bateria?
            Sim, deixei de usar os “drum kits” convencionais do jazz e do rock porque deixei de tocar esses géneros de música. O que faço agora é diferente, as pessoas descrevem-no como “eletrónica”, mas esse termo também não quer dizer nada. Para se fazer uma música nova é necessário empregar também instrumentos novos. As baterias antigas foram desenhadas para se tocar jazz, para serem captadas em microfones.
Curiosamente, “Secret Rhythms” soa em certas ocasiões bastante “jazzy”…
            É por causa do vibrafone de Morten Grønvad, que é um verdadeiro músico de jazz! Mas foi tocado em separado, diretamente para a fita, não chegou a tocar realmente connosco.
            Não se sentiu tentado a tocar você mesmo o vibrafone?
            Não, sou apenas um baterista. Quando era mais novo toquei trompete e, mais tarde, sintetizador e teclados, mas apenas por prazer pessoal, nunca em público.
            Mas no passado também tocou jazz, inclusiva com músicos famosos.
            Sim, fui músico de jazz aos 20 anos. Toquei em Barcelona com Chet Baker.
            “Secret Rhythms” apresenta também certos elementos étnicos, sem deixar de soar “espacial”. A lembrar os Can, obviamente. Certas estruturas rítmicas não andam longe do que fazia o grupo, pois não?
            Sem dúvida. Quando comecei a desenvolver um estilo diferente na bateria, e isso foi há 30 anos, os sintetizadores tinham acabado de surgir, as primeiras caixas de ritmo, os pedais de eco, tudo isso, a eletrónica invadia todas as músicas. Optei por um estilo diferente e ainda hoje o mantenho, baseado na repetição.
            O que tem menos que ver com a música ocidental do que com a oriental…
            Sim, as minhas influências nunca foram o jazz ou o rock inglês ou americano, mas as músicas étnicas. Africana, indiana, chinesa…
            Há temas que soam como uma orquestra de gamelão, o que também sugere as “Ethnological Forgery Series” que os Can criaram em “Limited Edition”…
            [risos] Não sei… Não posso adiantar muitos pormenores sobre a música deste disco porque foi quase toda feita pelo Burnt no seu computador, depois é que se juntaram os bocados de guitarra ou o vibrafone. Embora a composição fosse partilhada pelos dois, foi ele que misturou tudo no computador. Eu, de computadores, percebo pouco.
            Se lhe pedisse para nomear o seu álbum preferido dos Can, qual seria?
            Talvez o terceiro, “Ege Bamyasi”. Há quem diga que se for tocado a 45 rotações soa a “drum ‘n’ bass”. Ainda não experimentei! [risos]
            Nunca deixou de viver em Colónia, cidade onde, nos últimos anos, eclodiu grande parte da cena pós-rock alemã, para a qual os Can são considerados uma espécie de deuses. Pode-se traçar um paralelismo entre a época áurea do krautrock e o atual pós-rock?

            Existem semelhanças. Os novos grupos, como os dos anos 70, recusam o comercialismo, acho que é porque gostam realmente de música, como acontecia com o krautrock, não pensam no negócio. Há muita gente a experimentar coisas novas, como os Kreidler.

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