CULTURA SEXTA-FEIRA, 26 OUTUBRO 1990
Michael Nyman e a sua banda atuam hoje à noite no S.
Luiz, em Lisboa
“A minha música é
bastante sensual”
Analítico e intuitivo, erudito e popular, Michael
Nyman confunde os académicos ao mesmo tempo que rivaliza com o rock no apelo às
massas e na energia da música. É o ilustrador musical dos filmes de Peter
Greenaway e já trabalhou com Kate Bush. Para ele, intelecto, emoção e sentidos
formam um todo inseparável.
Hoje à noite, no Teatro Municipal de S. Luiz, em
Lisboa, pelas 22h30, vamos todos perder-nos no prazer dos labirintos sonoros de
Michael Nyman. O concerto incidirá sobretudo em peças compostas para Greenaway,
como “Drowning by Numbers”, atualmente em exibição num cinema lisboeta, “The
Cook, the Thief, his Wife and her Lover” e o próximo “Prospero’s Book”
inspirado na “Tempestade”, de William Shakespeare. Vem acompanhado de oito
músicos. Sopros, cordas e piano formam o grupo instrumental que desde sempre
tem utilizado. Há quem considere barroca a sua música.
PÚBLICO – Um dos temas
recorrentes na sua música é a relação com os números, como em “Decay Music” ou
“Drowning by Numbers”. A que se deve esse interesse pelos sistemas numéricos?
Michael
Nyman – Tudo parte de John Cage e da utilização, da parte deste, de sistemas
numéricos aleatórios. Ao contrário da minha, a música de Cage é muito
sistemática. Utilizo os números na medida em que me permitem fazer certos
malabarismos e elaborar novas configurações musicais. Exemplo extremo de um
processo mais analógico é o tema “1 – 100” (incluído em “Decay Music”).
Atualmente o meu interesse por estes métodos é bastante menor. Faço música mais
intuitiva, lidando com processos musicais em vez de matemáticos. Os sistemas
numéricos já não chegam para alguém que, como eu, optou por uma estética mais
pessoal. A utilização dos números pressupõe a submissão a regras que lhe são
exteriores.
P. – A morte é outro
tema que parece interessá-lo e que partilha com Peter Greenaway. Chega mesmo a
definir “Drowning by Numbers” como “Música Funerária”…
R. –
Escrevi muito desse tipo de música sobretudo para os filmes de Greenaway porque
é um tema prevalecente na sua obra. Não sei quais são as suas motivações para
essa quase obsessão. No meu caso, sinto-me tão interessado pelo assunto como
outra coisa qualquer. Vivemos todos confrontados com a possibilidade de morrer.
Pessoalmente não me sinto aterrorizado por isso.
O
tema da morte abrange um determinado campo da minha escrita musical. Se, por um
lado, esta “música sobre a morte” ostenta um cariz nostálgico, por outro, em
peças como “Memorial”, baseada no massacre de Heysel, procurei atingir um
objetivo muito específico, uma maneira mais concreta de tratar o assunto.
“Drowning
by Numbers” é mais elegíaco, uma espécie de comédia negra.
P. – Muitos dos títulos
de obras suas, referem-se à água: “A Watery Death”, “Water Dances” ou “Water
Music”, composta para um vídeo de Fabrizio Plessi.
R. –
É um caso idêntico ao tema da morte, e reflexo de mais uma das obsessões de
Peter Greenaway. No caso de Plessi, trabalhámos numa ópera em que ele juntava a
alta tecnologia a recursos básicos, como a água. Por vezes os títulos vêm a
propósito. A relação entre uma peça de música e o seu título, é bastante
aleatória. Por exemplo, no caso de “A Watery Death”, a música não tinha sido
escrita em particular para a sequência de imagens que Peter Greenaway lhe
justapôs.
Labirintos sensuais
P. – “The Draughtsman’s
Contract” funciona, em termos cinematográficos e musicais, como um labirinto
estético e mental. Poderemos considerar a sua música labiríntica.
R. –
Se funciona como tal não é premeditado. Mas, de facto, a minha música é
“circular”, seguindo numa determinada direção para, de repente, a deixar e mais
tarde voltar ao ponto de partida. Avança no tempo ao mesmo tempo que permanece
estática. Não sei se, ao ouvi-la, as pessoas se perdem ou não. É possível que
por vezes não consigam situar-se nessa espécie de espiral. Há uma analogia com
os filmes de Greenaway, que quase sempre giram em torno de si mesmos, numa
dinâmica contínua de avanço e retorno ao ponto de partida.
P. – O cineasta chileno
Raoul Ruiz é outro apaixonado por labirintos. Em que ponto se encontra a vossa
colaboração no projeto para a ópera “Don Juan”?
R. –
De momento está tudo parado. O dinheiro que deveríamos receber da “Expo 92”,
que nos encomendou esse trabalho, não chegou. Estamos mesmo a considerar a
hipótese de o arranjar noutro lugar ou mesmo de partir para um projeto
diferente. Mas por enquanto tudo não passa de teoria.
P. – A sua música é
quase pagã na intensidade com que apela aos sentidos, embora não descure o lado
cerebral. A que se deve essa preocupação pelas reações do corpo?
R. –
Seja ou não pagão, gosto do facto de escrever e tocar um tipo de música que
atue a esses dois níveis. Quem escutar a banda que irá atuar em Lisboa, terá
oportunidade de sentir o impacto físico que a minha música provoca, muito
diferente do dos discos, um pouco à maneira do que se passa com o Rock.
P. – É um hedonista?
R. –
Musicalmente, sim. Parto sempre de um “princípio do prazer”, dirigido ao
público, a mim e aos músicos da banda. Acho excitante estar sobre um palco, no
interior da música, do som que eu próprio crio. Há qualquer coisa de físico. O
Rock consegue às vezes atingir esse puro prazer. No polo oposto está um
processo intelectual de escrita, não muito diferente daquele utilizado pelos
compositores clássicos convencionais. Quando tomo notas e pequenos pedaços de
papel ou manipulo material sonoro, não existe nada de físico, é um processo de
análise, levado a cabo exclusivamente pelo cérebro. Diria, em suma, que a minha
música é bastante sensual.
P. – Por falar em
sensualidade, já trabalhou com Kate Bush, em “The Sensual World”…
R. –
Foi uma experiência interessante, embora se tratasse apenas dos arranjos para
cordas. O que mais me impressionou em Kate Bush foi o seu ouvido apurado, a
concisão e o modo meticuloso como trata o mais ínfimo pormenor. Nas partes que
arranjei, o som das cordas é envolvido por uma multiplicidade de outros sons.
Rock, humor e “música decente”
P. – Disse uma vez que
gostaria de trabalhar com David Byrne. Donde lhe vem o interesse pela música
Rock?
R. –
Gosto do trabalho de David Byrne. Penso que é um músico extremamente
inteligente. A nível pessoal damo-nos otimamente.
Quanto
ao interesse que nutro pelo Rock, é muito recente. Nos anos 50 vivi a minha
adolescência no auge do “rock ‘n’ roll” mas na altura não lhe prestava muita
atenção. Confesso que não me lembro de nenhum tema em particular, dessa época.
Ao longo dos anos 60 e 70 havia, por parte dos compositores de outras áreas
musicais, uma atitude muito aberta para com este tipo de música. Stockhausen e
Luciano Berio, por exemplo, estavam conscientes da importância de que o Rock se
reveste em termos culturais.
A
partir de certa altura tudo se tornou progressivamente mais sério. Criou-se uma
divisória artificial entre uma música tida por “decente, de estilo”, apontada
às elites, e uma música vernácula, mais popular. Pessoalmente encontro-me na
estranha posição de compor “art music” utilizando embora uma linguagem
vernácula. Para o público é excitante. Os meios académicos criticam-me porque
não conseguem compreender que, em termos globais, se trata de uma e a mesma
coisa.
P. – Embora seja
considerado pela maioria das pessoas como um compositor “sério”, esquecidas que
fez parte, por exemplo, dos Flying Lizards, torna-se possível detetar na sua
música um humor muito fino. É verdade?
R. –
É involuntário. Nunca me preocupei em fazer música que fosse humorística. A
ironia que possa ser detetada nos meus discos não foi lá posta deliberadamente
por mim. Estava a pensar em algum caso em particular?
P. – “The Nose List
Song”, por exemplo, em “The Kiss and Other Movements”…
R. –
Sim, por causa do texto. Se tivesse escolhido outro, era capaz de já não soar
tão engraçado. Não escrevo propriamente “piadas musicais” mas gosto de jogar,
de brincar com as palavras. Brinco com os “clichés” musicais acumulados ao
longo dos últimos 200 ou 300 anos. No final de “Water Dances” acabo por me
aproximar de um registo próximo do Rock. É a minha maneira de chamar a atenção
para a continuidade presente na evolução do fenómeno musical.
Há
também uma série de “personal jokes” jogadas em particular com Peter Greenaway,
ao nível de uma multiplicidade de referências que poderão não interessar a uma
determinada camada de público.
P. – Desde o “Decay
Music”, produzido e gravado para a editora “Obscure” de Brian Eno, não voltou a
trabalhar com este músico. Nunca se interessou por uma nova colaboração?
R. –
Na época desse disco, existia uma identidade entre os nossos pontos de vista.
Depois ele começou a escrever música semelhante à de “Decay Music” enquanto eu
me afastava noutras direções. Partimos em direções opostas. Não sei se ele ouve
ou gosta do que faço atualmente. Se voltássemos a trabalhar juntos teria de ser
qualquer coisa semelhante ao que ele e John Cale fizeram no seu novo projeto (o
álbum “Wrong Way Up”). Para mim é difícil. Brian Eno poderia talvez ser o
produtor mas mesmo aí não gosto de ver a minha música, depois de composta, ser
modificada por ideias ou interferências provenientes de sensibilidades alheias.
P. – Nos seus discos
existe sempre uma sonoridade típica, imediatamente reconhecível, um pouco à
maneira do que acontece com Philip Glass. Tal facto deve-se, da sua parte, a
uma utilização sistemática da mesma instrumentação?
R. –
A instrumentação a que alude funciona como uma “camisa-de-forças” extremamente
estimulante. A partir dela obtive resultados tão diferentes como “Drowning by
Numbers” e “The Kiss”. Até agora devo ter feito perto de 20 gravações e cada
vez que as ouço encontro nelas algo de novo. Em relação a Glass penso que em
tudo o que ele faz há a marca do génio, mas evolui por norma numa determinada
direção. Eu, pelo contrário, procuro sempre novas utilizações para os mesmos
recursos instrumentais. Quanto a soar à “Michael Nyman” não gostaria que fosse
de outra maneira. Mas penso que consigo fazê-lo sem cair em lugares comuns.
Orgulho-me dessa variedade.
Violino ou eletrónica?
P. – Costuma
privilegiar o violino. Alguma razão especial para isso?
R. – Normalmente
costumo tocar com um violinista (Alexander Balanescu) que funciona como um
estímulo para a minha imaginação. Penso que escrevo muito bem para este
instrumento, como mais ninguém escreve. Faço-o de uma forma ativa, ao contrário
de Glass que é muito passivo, mecânico e pouco “colorido”.
P. – Alexander
Balanescu não atuará no concerto em Lisboa, ao que parece…
R. –
Sim. Ele não pode vir. Em sua substituição vem Elizabeth Perry. Qualquer um
deles tem exercido grande influência no meu estilo de escrita.
P. – Por que razão se
recusa a utilizar, na sua música, a instrumentação eletrónica?
R. –
Tenho a sorte de poder utilizar músicos de carne e osso. E ideias muito
precisas sobre a coloração sonora que pretendo obter de determinado
instrumento. Há quem me tente persuadir a utilizar “samplers” e computadores.
Mas, até agora, estou satisfeito com a maneira como trabalho, de poder levar
verdadeiros instrumentistas para o estúdio.
Quando
muito, posso imaginar-me a utilizar um computador para tratar informação
relativa a sistemas numéricos, mas nunca a gravar algo com mais de dez por
cento de som sintético, “samplado” ou gerado por computador. Por outro lado,
não me repugna trabalhar em projetos que utilizem vozes “sampladas” ou mesmo
sons não orquestrais sintetizados. Mas de momento tenho tanta coisa que quero
escrever para instrumentos convencionais, que não tenho tempo para reorientar,
de forma radical, a minha forma de escrita. Em princípio não sou contra, mas,
para já, Alexander Balanescu vale para mim mais do que cem sintetizadores.
P. – Em que ponto se
encontra “Prospero’s Book”, a sua mais recente colaboração com Peter Greenaway?
R. –
Trata-se de uma versão de “A Tempestade”, de Shakespeare, que se desenvolve num
ambiente típico de Greenaway, embora fiel ao texto original. Até agora já
escrevi algumas partes vocais, bem como cinco canções relativas às cenas com
Ariel, e algumas partes instrumentais.
P. – Numa entrevista
que deu recentemente à revista Blitz, dizia estar um pouco cansado de apenas
ser referido em relação a Greenaway. Continua a ser dessa opinião?
R. –
Sim, de certo modo. Sou seu amigo e as tarefas que ele me propõe são sempre
estimulantes. O ponto de partida pode ser algo tão vago como “números”, com
aconteceu em “Drowning”, ou, pelo contrário, ser ele a filmar a partir da minha
música, como aconteceu com “Memorial”, pré-existente ao filme “The Cook…”. No
fim de contas, acabo sempre por escrever música muito boa para ele, que depois
posso utilizar na gravação de discos ou em concertos.
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