POP ROCK QUARTA-FEIRA, 24 OUTUBRO 1990
ELEKTRA NA MAIORIDADE
A editora americana Elektra faz 40 anos. Os
seus responsáveis tiveram uma ideia brilhante: reatualizar temas antigos,
gravados por artistas da casa, através de interpretações dos atuais
signatários. Revolvidos os arquivos da história, encontrou-se a palavra ideal
para simbolizar o projeto – “Rubaiyat”
O termo designa uma estrofe poética, formada por dois
versos facilmente memorizáveis, inventada pelo poeta persa Omar Khayyam no
século XII e que o povo cantarolava, como se de refrões de música pop se
tratasse. Posteriormente, em 1859, o modo “Rubaiyat” foi reatualizado por
Edmund Fitzgerald, que escreveu vários “rubay” com que entretinha os seus
compatriotas vitorianos. Durante cerca de 30 anos, dedicou-se a interpretar e a
reinterpretar os seus próprios versos, atualizando-os constantemente. São dele os imortais versos “But still the vine her
ancient ruby yelds / And still a garden by the water blows”. O “staff” da Elektra asseguram que têm tudo a ver
com o aniversário da editora. Quem somos nós para duvidar? “Manhã – escreveu o
astrónomo e matemático Omar –, deixa-nos entornar o vinho vermelho.” Então não
tem tudo a ver? É o ato de emborcar, de celebrar, enfim, de arranjar à força um
pretexto.
A Magia do Rubi
“Rubaiyat” é também
rubi, vermelho, da cor do sangue – pedra preciosa que celebra aniversários
assinalados pelo número 40. Vermelho, tal qual o logotipo da editora. As
conotações são evidentes. Mas as significações do termo mergulham mais fundo,
penetrando nos arcanos do universo e da magia. Rubi é pedra de telepatia,
talismã que afasta os pesadelos quando guardado debaixo da almofada. Estranho:
se for tocado nos quatro cantos de uma casa, protege os seus habitantes da
trovoada. Além disso, irradia energia, segundo uma refração dupla que vibra na
nota musical “mi” (em inglês “E”). Elektra começa por “E”. Elektra, uma das
sete plêiades, filha de Oceanus, mãe das harpias, musa inspiradora da arte
musical. Ena! Isto dos discos tem muito que se lhe diga. Não tem nada a ver com
comércio nem negociatas. Nada disso. É tudo gente altruísta, preocupada com os
mais altos desígnios humanos, envolta numa aura de santidade e mistério,
lidando com forças transcendentes que mal compreendemos. Se não, como explicar
que participem neste projeto nomes desde sempre ligados ao esoterismo e às
difíceis artes do ocultismo, como Gipsy Kings, Howard Jones ou os Metallica?
Convidaram-se estes e
outros artistas para interpretar temas antigos à sua escolha. Critério único
dessa escolha – a ligação afetiva às canções do passado. A mistura de nomes e
canções impressiona pela heterogeneidade. Não confundir com confusão. São
contemplados todos os géneros e estilos musicais, desde os já citados Gipsy
Kings e Happy Mondays a John Zorn e Kronos Quartet, passando por luminárias
como Jevetta Steele, The Havalinas, Lynch Mob e o magistral Danny Gatton.
“Rubaiyat” será lançado no mercado em três formatos: CD e LP duplos com discos
em vermelho, mais cassete dupla, tudo acompanhado de livrete contendo
informação detalhada relativa ao projeto.
Nada foi deixado ao
acaso. Desde a apresentação até às táticas promocionais, a Elektra fez questão
de ser original e diferente. Assim, o desenho das capas e o restante trabalho
gráfico foram entregues aos gémeos Doug e Mike Starn, celebrizados na cena artística
nova-iorquina pelas suas fotos-colagens. “Rubaiyat” constitui o primeiro dos
seus trabalhos que autorizaram a ser usado para fins comerciais. No capítulo da
promoção, foram escolhidos 6 CD-“singles”, cada qual com um tema destinado a
uma área de divulgação radiofónica específica: Teddy Pendergrass, para o género
“contemporâneo, adulto e urbano” (?), os Metallica para as listas de “heavy
metal”, Faster Pussycat para o AOR (“adult orientated rock”), Gipsy Kings para
o mundo latino e Michael Feinstein para a rádio em geral. Vinte e cinco por
cento dos lucros obtidos revertem a favor das organizações “Greenpeace”,
“United Negro College Fund” e “Save the Children”. Afinal ainda há almas
caridosas neste mundo tantas vezes cão. É a força do rubi a exercer as suas
influências cósmicas e benéficas.
A Editora
É bastante antiga.
Começou por ser um passatempo e um caso de amor. Foi a 10 de outubro de 1950
que o seu primeiro diretor, Jac Holzman, então um estudante apaixonado pelas
técnicas de engenharia aplicada à música, deu início às atividades. O primeiro
disco, um doze polegadas, era uma “Lied” assinada pelo compositor John Gruen e
a cantora Georgiana Bannister. Teve o número 101 e direito a quase o mesmo
número de cópias. Dinheiro era coisa que não havia. Tanto assim que a letra “E”
do logotipo, em caracteres mais ou menos gregos, de acordo com a ideia
pretendida, teve de ser feita utilizando um “M” deitado... A seguir vieram
baladas montanhesas “Appalache”, cantadas por Jean Ritchie – Jac Holzman era
apaixonado pela música “folk”, se bem que às vezes o termo lhe causasse alguma
confusão.
A Elektra, sediada a
princípio nas traseiras de uma loja de discos em Greenwich Village, passou
rapidamente para a rua Bleecker, número 361, local onde Jac foi aos poucos
aprendendo os truques do ofício, que é como quem diz, de como fazer dinheiro à
custa da música. Mas nessa altura era mais uma questão de sobrevivência e não
havia lugar para luxos. A distribuição era feita em mão, e os discos
transportados numa Vespa.
Ainda a designação
“world music” não tinha sido inventada, já a Elektra gravava recolhas
folclóricas, oriundas de Itália, Rússia, Turquia, Espanha, França, Escócia,
Inglaterra, Israel, México e outras regiões que constassem no mapa. Jac Holzman
afirma que a sua paixão pela “folk” se deve ao interesse que sempre nutrira
pelos instrumentos antigos e que o cravo era o culpado de tudo. “Os cravos –
afirma – deram origem aos alaúdes, estes às guitarras, as guitarras à “folk”, e
a “folk” à Elektra. Quer ele dizer que, não fora aquele instrumento de teclas,
a editora nunca teria existido. Alguém de lembra de Cynthia Gooding, Ed McCurdy
ou Shep Ginandes? Ninguém? Nem do Ginandes? Pois eram os “folk singers” da
altura e parece que até não se vendiam mal – só à conta de Ed McCurdy e das
suas séries de baladas isabelinas de genérico “When Dalliance as in Flower (and
Maidens Lost their Heads)” a editora faturou na ordem dos 900.000 dólares.
Ecletismo
Com a entrada nos anos
60, o recém-chegado Paul Rothchild operou a primeira mudança de agulhas. Era a
vez dos baladeiros de intervenção entrarem em cena, ao mesmo tempo que o
movimento das flores dava os últimos retoques nas pétalas. A Phil Ochs, Tom
Rush, Tom Paxton e Judy Collins foi dada oportunidade de recitarem os seus
manifestos. Paralelamente, na sucursal Bounty Records, entretanto fundada,
despontavam os Beefeaters, nada mais nada menos do que os futuros Byrds. Buffalo
Springfield, Lovin’ Spoonful e os Love, de Arthur Lee, eram os mais ilustres
representantes do batalhão pop. Mas a força imparável deste último não obstava
a que músicos como o guitarrista de flamenco Juan Serrano ou o “jazzman” Art
Blakey tivessem um cantinho da casa reservado para si. Do mesmo modo que a
música folclórica búlgara, décadas antes de as suas vozes se tornarem
misteriosas ou de falarem com Deus.
Alargava-se o leque de
formas musicais – em 1964, a Nonesuch passava a albergar os representantes da
“clássica”. Estrearam-na uma seleção de temas para trompete barroco, de
Albinoni, e uma antologia de autores franceses da corte de Luís XIV. Hoje, a
Nonesuch constitui a ala mais interessante da Elektra, integrando alguns dos
expoentes da música contemporânea como John Adams, John Zorn, Kronos Quartet ou
Wayne Horvitz. Por seu lado, as séries Explorer dedicavam-se a editar coleções
de discos que continham efeitos sonoros ou instruções em código morse.
No selo mãe, o pacifismo
reinante no seio da “beat generation” era minado pela violência niilista dos
MC5 e dos Stooges de Iggy Pop. O niilismo romântico de Nico era outra história,
ainda hoje por contar. Místicos e de tendências pró-celta, os Incredible String
Band, personificavam, de forma inteligente e original, o estilo “hippy”,
através dos poemas étnico-psicadélicos dos multi-instrumentistas Robin
Williamson e Mike Heron.
Terminados os anos da
paz, e Elektra é vendida por Jac Holzman à Kinney National Services
Corporation, por dez milhões de dólares, retendo embora a autonomia artística.
Três anos mais tarde, é a fusão com as poderosas Warner Bros. e Atlantic. Harry
Chapin, Bread e Carly Simon ajudam a compreender que o tempo e o espírito eram
outros. Jac já não conhecia todos os cantos da casa, que entretanto crescera
desmesuradamente desde os tempos nas traseiras da rua Dez. Sentia que se estava
a repetir a si próprio. A repetição mata o amor. Jac retira-se para o Havai,
para regressar na condição de perito da Warner na área de investigação
tecnológica aplicada aos audio-visuais.
Negócio e Moral
David Geffen pega nas
rédeas do poder e a Elektra é de imediato submetida a nova operação cirúrgica.
O membro implantado é desta vez a Asylum. Novos recrutas: Jackson Browne, Eagles, Linda Ronstadt, Joni Mitchell,
Tom Waits. “Hotel California”, dos
Eagles, faz engordar muita gente. Os anéis começavam a não entrar nos dedos. A
imagem da editora, já nas mãos do novo “boss” Joe Smith, era a de uma
instituição tradicionalista que apostava em valores seguros e consagrados. Na
passagem para a década de 80 vingava o gigantismo dos megaconcertos. Os Cars e
Motley Crue chegavam para as encomendas. Também a “new wave” não ficara
esquecida, com a assinatura dos Television e Dictators. Mais o “country & western” (Hank Williams Jr.,
Stella Parton) e os “rhythm & blues” (Donald Byrd, Grover Washington Jr.).
O testemunho é finalmente passado a Bob Krasnow, que pretende dar um
estatuto “ético” à editora. Bob é um moralista. Por volta de 1983, enuncia a
célebre máxima: “Todo o artista desta editora tem como única missão fazer
música. (...) Quem vem apenas pelo dinheiro não pertence ao negócio da música,
pertence ao negócio do dinheiro.” Donde se conclui que dinheiro e negócio não
andam necessariamente juntos. Mas é na difícil arte da dialética que Bob se
revela mestre, pois, logo de seguida, acrescenta ao ramalhete filosófico:
“Também é verdade que ninguém se refere a uma ‘show art’, mas sim ao ‘show
business’.” Completa o raciocínio com tirada mais profunda e por isso mesmo
mais obscura: “Uma editora de discos tem de ter sucesso se quiser atrair
artistas e público e, visto que o custo de construção de uma experiência
estética tecnologicamente complexa se torna uma equação auto-suficiente, não é
de espantar que os caminhos de atuação se tenham tornado circuitos fechados,
oferecendo passagem fácil apenas à oferta mais diluída.” Ora, nem mais. Moral
da história: a companhia mudou-se com armas e bagagens para Nova Iorque, cidade
que como se sabe é das mais castas em termos de insensibilidade ao vil metal.
Perto da catedral de St. Patrick e do centro Rockefeller, como que simbolizando
a eterna luta entre o espírito desapegado e o mundo diabólico das finanças. E
se, às vezes, o pobre capitalista sucumbe à tentação é porque, nisto das
músicas, “à medida que alguém vai crescendo, torna-se vítima do seu próprio
sucesso”. Pois é, coitados, são umas vítimas. Mas, no fundo, que importância
tem tudo isso? Tudo se revela claro e inocente. E tem razão quem afirma que “é
só música, uma canção que se canta e se vende”.
O Disco
É uma salganhada. Ainda
por cima, tivemos direito apenas a uma cassete amostra que inclui um resumo
aleatório, mal amanhado e ainda mais mal gravado, da totalidade da obra,
deixando de fora nomes e ideias importantes e incluindo outros perfeitamente
medíocres e de todo despropositados.
Dos que foram incluídos
à laia de engodo, destaque para os Pixies e a versão paranóica e saturada de
eletricidade, produzida por Steve Albini, de “Born in Chicago”, um original de
1965 dos Butterfield Blues Band, os Ambitious Lovers e o “funky” esquelético
com que traduziram “A Little Bit of Rain” de Fred Neil, Wayne Horvitz e um Bill
Frisell alucinado, a suportar Robin Holcomb, menina de voz tremida e poderosa
como a da índia Buffy Saint Marie, de “Soldier Blue”, cantando “Going Going
Gone”, do Bob Dylan de 1974, e os They Might Be Giants numa interpretação
weilliana do original de Phil Ochs “One More Parade”. John Zorn e os seus
companheiros Robert Quine e Bill Frisell foram cortados a meio mal tinham
aquecido na histérica e coerente leitura que faziam de “T.V. Eye” dos Stooges.
A fita não chegava...
O resto é Billy Bragg,
mais frenético do que nas habituais tiradas políticas, em “Steven & Steven
is” dos Love, os “rhythm & blues” dos Black Velvet Band para um original de
Warren Zevon, o açúcar “pop Sugarcubes” sugado aos Sailcat, o “reggae” de
Shinehead para um tema de Josh White, uma paródia à Pogues, em “Bottle of
Wine”, de Tom Paxton, com acordeão e bandolim avacalhados, por parte dos
Havalinas, os Happy Mondays armados em Stones no “Tokoloshe Man” de John
Kongos, 10.000 Maniacs divertidíssimos e todos “seventies” a cantar “These
Days” de Jackson Browne, como se fosse ontem, e, finalmente, os Beautiful South
e mais uma voz feminina e inofensiva tentando imitar Kate Bush, com solos de
sax pelo meio, em “Love Wars” da dupla Womack & Womack. Ah, sim, o anúncio
abre com os Cure a assassinar “Hello I Love you” dos Doors. Os mesmos Cure que,
parecendo ser os atuais meninos bonitos da editora, abrem e fecham o rubi, com
a sua versão e direito a ver um tema seu, “In Between Days”, interpretado por
John Eddie. Bem feito. Cá se fazem, cá se pagam.
Tudo ao Molho
De fora ficaram, por
exemplo, a rendição de “Marquee Moon” dos Television, pelo Kronos Quartet, os
Metallica de que seria divertido ouvir a maneira como trataram “Stone Cold
Crazy” dos Queen ou Tracy Chapman e Linda Ronstadt interpretando respetivamente
os tradicionais “Rising Sun” e “The Blacksmith”.
Jevetta Steele, Gipsy Kings, Faster Pussycat, Phoebe Snow, Ernie Isley,
Howard Jones, The Big F, Georgia Satellites, Sara Hickman, Teddy Pendergrass,
Jackson Browne, Shaking Family, Howard Hewett, Shirley Murdock, Leadres of the
New School, Michael Feinstein, Lynch Mob, Anita Baker e Danny Gatton completam
a lista dos “atuais” ignorados. Pensando
melhor, depois de a ler, talvez haja razão para agradecer o facto de termos
sido poupados à audição da totalidade de “Rubaiyat”. Da lista dos antigos constam, entre outros, os New Seekers, Eagles, Carly
Simon, Delaney & Bonnie, Cars, MC5, John Fogerty, Bread, Incredible String
Band e Judy Collins.
“Rubaiyat”, a julgar pela amostra, parte de uma ideia interessante para
se perder numa megalomania pouco significativa em termos exclusivamente
musicais. É caso para se dizer “muita parra pouca uva” ou que “a montanha pariu
um rato”. Ou que “nem tudo o que luz é ouro”. Neste caso, rubi.
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