QUARTA-FEIRA, 7 NOVEMBRO 1990 POP ROCK
A VOZ QUE CURA
BOBBY McFERRIN
Medicine Music
LP,
MC e CD, EMI, distri. EMI – Valentim de Carvalho
Para quê guitarras, teclas e
bateria? Qual a utilidade de uma orquestra? Deitem-se fora os sintetizadores e
a tralha instrumental toda. Uma voz basta. A de Bobby McFerrin, entenda-se.
“Medicine Music” é não só um festival de proezas técnicas vocálicas de cortar a
respiração, mas também uma esplendorosa demonstração de como utilizar o
instrumento primordial que é a voz humana, para dar corpo a um imenso estendal
de emoções capaz de fazer vibrar as cordas todas da harpa que é a nossa alma.
Além de sair, em estúdio, mais barato. E já que se falou em orquestra, soa como
tal a voz de McFerrin, desmultiplicada em várias graças com a sobreposição dos
seus diferentes registos, gravados em pistas separadas. Registos que abarcam,
com a naturalidade só ao alcance dos predestinados, a totalidade do espectro
compreendido entre o grave profundo e o “falsetto” estridente, sempre
perfeitamente controlado e modulado até ao mais ínfimo pormenor.
Se “The Voice” era o
milagre, gravado ao vivo, da comunicação com o público e da capacidade de o
transportar para o interior de um circo emocional, em que o experimentalismo
representava a fera domada com que cada um podia brincar sem o perigo de ser
devorado, este “Medicine Music” apresenta a segurança e a serenidade o mestre
que de há muito sabe como dominar as linguagens e discursos que a voz humana
consegue canalizar. Partindo de técnicas tornadas entretanto habituais (como o
balanço e projeção rítmicos provocados pelo batimento da mão esquerda no peito,
ou a reprodução de efeitos sonoros variados a partir de assobios ou estalidos
da língua), o cantor prolonga as experiências de “The Voice” (passando ao lado
das canções “mainstreams” levadas a cabo na companhia dos Manhattan Transfer”)
num espetáculo de swing firmemente ancorado nos blues, no gospel e no recurso à
técnica jazzística do scat.
Polifonia vocal, negra,
ritual e urbana, irresistível e sinuosa, nunca se deixando ultrapassar pela
tentação do virtuosismo destituído da centelha interior. Dispensam-se os
instrumentos. Não foram para aqui (quase) chamados, por não se tornarem
necessários, incidindo deste modo o foco unicamente sobre a voz. Exceção feita
a “Common Threads”, auxiliado pelos sintetizadores aéreos de Lyle Mays e “The
Train”, propulsionado pelas percussões de Pete e Juan Escovedo (para os mais
curiosos, pai e irmão de Sheila E., respetivamente). Em “Discipline” e “Sweet
in the Mornin’”, o grupo vocal Voicestra (designação significativa), criado
especialmente para o efeito por McFerrin, estende ainda mais o leque vocal, com
o pai daquele, Robert McFerrin senior, solando num tenor operático exaltações
gospel. A voz mágica de McFerrin faz o resto: o acompanhamento rítmico, com o
graves imitando o fraseado do contrabaixo (solando em “He Ran”), ou as
ressonâncias guturais do “didjeridoo” (instrumento de sopro dos aborígenas
australianos) e, sabe-se lá por que artes de que só a sua voz detém o segredo,
a percussão, como o restolhar da vassoura na tarola em “Yer You” ou as maracás
de “He Ran”. Em “Baby”, o subtil deslocamento de uma frase melódica provoca um
efeito de reverberação. “Sweet in the Mornin’” é acompanhado por soluços e pelo
ritmo profundo da respiração. Africano e tradicional (em “He Ran”), urbano e
jazzístico (no tema “Angry”, num registo rouco próximo do dos bluesmen de New
Orleans), tropical carnavalesco (as poliritmias feéricas de “Train”) ou
simplesmente terno (no hino religioso final “23 Psalm”, dedicado à mãe), Bobby
McFerrin consegue em qualquer dos casos uma riqueza e unidade estilísticas
ímpares na música vocal contemporânea. “Medicine Music”, discurso serenamente
apaixonado do coração aberto à luz do canto, revela-nos todo o manacial de
riquezas capaz de brotar da fonte donde nasce a música: a voz, segundo o verbo
sagrado de Bobby McFerrin. ****
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