CULTURA TERÇA-FEIRA, 6 NOVEMBRO 1990
É hoje posto à venda o novo duplo-álbum de Sérgio
Godinho, “Escritor de Canções”.
“Detesto o ênfase”
“Escritor de Canções” é o título do mais recente disco
de Sérgio Godinho, gravado ao vivo no Instituto Franco-Português e hoje lançado
no mercado. Excelente oportunidade para rever, em novo contexto, parte das
histórias vividas por toda uma geração.
Público – Qual a necessidade que o levou a gravar em disco o espetáculo
ao vivo, realizado no Instituto?
Sérgio Godinho – O disco é uma consequência desse espetáculo. Como
compositor e intérprete interesso-me por este tipo de registo, ao contrário do
que acontece, se colocado na perspetiva de simples ouvinte. Interessa-me
sobretudo ver como as canções são retomadas num contexto diferente do estúdio.
P. – Em “Escritor de Canções”, contudo, as palmas soam artificiais, como
que deslocadas do ambiente geral do disco…
R. – Talvez por haver um silêncio
tão grande e um grau de atenção muito maior, as palmas possam surgir como um
elemento estranho. O alinhamento diferente das canções implicou um trabalho de
montagem que não se pretende de reportagem. Não é um disco em que o público
intervenha de forma ativa, mas sim pelo silêncio. Houve como que uma
intimidação, no bom sentido, em que se procurou criar uma nova relação com as
pessoas, num contraponto intimista de momentos mais festivos, próprios de
espetáculos maiores. Diferentes tipos de encenação.
P.
– Como se processou essa encenação, de modo a resultar simultaneamente ao vivo
e em disco?
R. – O termo “Escritor de Canções”
reflete uma certa ironia. Escrever canções é um ofício ou uma arte diferente de
fazer só poemas ou música. Parto de fórmulas que vêm do passado e são depois
revestidas de novas roupagens musicais. No palco há a transposição para o nível
físico.
P.
– “Escritor de Canções” é designação suficientemente lata para albergar uma
grande diversidade estilística. Como definiria, em termos gerais, a sua música?
R. – Sou eclético pelo facto de
escrever canções que podem incluir-se em diversos universos musicais. Há uma
interpenetração de géneros e estilos que acontece de modo natural. Não se trata
bem de uma qualquer espécie de “fusão”, mas antes de uma colagem criativa,
feita a partir da audição de muita música. “L’Âme des Poètes” [incluída no novo
disco] é uma canção muito antiga de Charles Trenet que eu ouvia muitas vezes,
em miúdo. Ouvia também música brasileira, francesa, americana, clássica.
Depois, a todas estas influências juntaram-se, na minha adolescência, a música
dos “tops” e, mais tarde, a de Zeca [Afonso], Dylan, Beatles, Brel, Caetano
[Veloso], Chico Buarque…
P.
– Até que ponto as suas canções são autobiográficas? As “Ritas” e “Carolinas”
dos seus discos são reais?
R. – A minha música reflete
sobretudo um certo olhar sobre a vida, as pessoas e o modo como estas se
relacionam. As personagens surgem de pequenas experiências que transporto para
o ficcional. Não consigo ter uma narrativa realista. Tenho a tendência para
simbolizar. Nunca daria um bom repórter.
P.
– E no entanto, o novo disco abre com “Notícias Locais” …
R. – Trata-se de uma brincadeira a
partir de acentuações com as cinco vogais: adro, ébrio, híbrido, óbito, súbito.
Brincadeiras formais que influenciam a própria narrativa. Muitas vezes uma rima
ou uma palavra que dava jeito é que determina a verdade. A verdade dos factos
não existe, mas sim a das palavras.
Por outro lado utilizei uma
multiplicidade de referências, muitas vezes apenas percebidas ao nível do
Inconsciente. Nem todos percebem imediatamente que “arranja-me um emprego, pode
ser na tua empresa com certeza” diz respeito, no nosso imaginário a “uma casa
portuguesa, com certeza”.
P.
– Não receia perder o contacto com as gerações mais novas?
R. – Não quero partir atrás de uma
suposta adesão de todas as camadas etárias. Houve uma altura em que me ressenti
um pouco por isso. Sentia pressões para embarcar num comboio “mais na onda” e,
ao mesmo tempo, uma certa exaustão na maneira de tratar as canções. O estatuto
de clássico pode ser perigoso. Não me interessa refugiar-me na imagem do
artista consagrado se isso não corresponder a nada. O trabalho com António
Emiliano em “Na Vida Real” funcionou como um relançamento, de forma, nem
angustiada, nem neurótica. Não me preocupo em estar sempre na crista da onda.
Isso é desgastante e desertificante.
P.
– O novo álbum poderá representar a reformulação da sua imagem?
R. – É o fechar de um tempo, balanço
incompleto do passado. A editora achou por bem não insistir nas canções de “Aos
Amores”. Não é, de qualquer modo, um “greatest hits”. O “Brilhozinho nos Olhos”
ou o “Primeiro Dia”, por exemplo, estão ausentes.
P.
– Mas há um relançamento noutras áreas…
R. – Sim, estou a fazer uma série de
seis programas para a televisão, de genérico “Luz na Sombra”, que trata de seis
funções do mundo da música, normalmente na sombra, como as de intérprete,
produtor, técnico de som, letrista, “roadie” e arranjador musical. É uma
crónica assumidamente subjetiva onde eu funciono como “pivot”.
P.
– No espetáculo ao vivo, o público chegou a comover-se. Como explica o elevado
grau de identificação das pessoas com as suas canções?
R. – foi comovente também para mim.
Existem pontos comuns ao nível de afetividade. Sobretudo há uma sensibilidade
especial relativa ao tema da “perda”. Penso que é neste aspeto que toco nas
pessoas. Acho que há algo extremamente forte no acabar de algo que foi
extremamente belo. Não quero ser patético, detesto o ênfase. Gosto de usar a
ironia, como em “Emboscadas”, em que uso uma terminologia do romance de cordel,
justamente para me distanciar do real. Jogo com sentimentos dolorosos e com o
facto de todos nós sermos valerosos, pungentes, desgraçados e de, ao mesmo
tempo – o que é uma coisa muito portuguesa – sorrirmos muito das nossas
desgraças.
P.
– Isso explica o tom melancólico de grande parte das suas canções?
R. – De facto não sou muito pela
criação de ambientes preto no branco. Tenho uma certa tendência para a dúvida
sistemática em relação a tudo. Acho que não há verdades nem estéticas eternas.
Do ponto de vista formal procuro introduzir elementos desestabilizadores.
Funciono em termos de dinâmicas, de modo intuitivo, dinâmicas inseparáveis do
elemento vivencial. Há um elemento de melancolia que nem sempre consigo
controlar. Numa das canções, “Lisboa que Amanhece”, das minhas preferidas, o
mistério vem da rapidez com que foi escrita. É como uma criança que não sabe
falar e, de repente, diz uma frase inteira.
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