SEXTA-FEIRA, 30 NOVEMBRO 1990 cultura
Música popular
portuguesa
Janelas coloridas
O NOVO DISCO de Júlio Pereira junta a pintura e a
música. São dez quadros de pintores portugueses, traduzidos em outras tantas
incursões musicais em que o folclore se dilui, de forma subtil, no som
contemporâneo.
“Quadros
numa exposição” – assim se intitulava uma obra de Mussorgsky que expressava no
piano os sonhos pictóricos do pintor russo Victor Hartmann, em partitura
posteriormente orquestrada por Ravel e finalmente liquidada pela pirotecnia
circense dos Emerson, Lake and Palmer. Um século mais tarde, Brian Eno traduzia
para música quatro aguarelas do pintor alemão Peter Schmidt, em “Before and
After Science”. Agora chegou a vez de Júlio Pereira, tradicionalista na
sensibilidade e inovador na maneira de a exteriorizar, inventar musicalmente
dez quadros de pintores portugueses contemporâneos. À coleção, a exibir em
público a partir do dia 6, chamou “Janelas Verdes”, numa alusão ao museu que lhe
fica perto da casa e da alma lisboeta.
“Janelas
Verdes”, nono álbum de originais na sua discografia, está longe de ser um
museu, muito menos de arte antiga. Cada quadro é pretexto para, partindo de uma
apreciação subjetiva da obra e de posterior conversa com o seu autor, recriar o
universo das imagens em peregrinações pelo folclore do globo – “a música
tradicional está toda nas ‘Janelas Verdes’, mas não de maneira evidente. Em
discos anteriores, com ‘Cavaquinho’ ou ‘Braguesa’, ‘peguei’ em elementos
etno-musicais do nosso país, uma chula, um vira, um corridinho, e
desenvolvi-os, condicionado pela sua estrutura. Neste caso, não me agarrei a
qualquer elemento musical conotado diretamente com a música tradicional.
Conhecer os diversos pintores e a sua obra, foi conhecer outros tantos mundos
diferentes. O pintor Eurico levou-me até ao México, a Paula Rego sugeriu-me uma
coreografia de um menino e meninas a brincar numa horta. O quadro de Júlio
Pomar transportou-me para o meio de um intensíssimo carnaval na Idade Média, e
por aí fora, em dez viagens imaginárias…”.
Ao
contrário do álbum anterior, “Miradouro”, a eletrónica tem aqui um papel mais
discreto. Enquanto que o primeiro “foi todo concebido no computador, soando
talvez por isso, um pouco maquinal”, o novo disco “foi realizado tecnicamente
de maneira diferente, todo ele composto na viola braguesa que foi gravada em
primeiro lugar, só depois sendo acopladas as partes eletrónicas”.
Viagens
ulteriores apontam para a possibilidade de gravação de um disco inteiramente
acústico – “Os próprios tempos apontam para isso”. Quanto mais nos embrenhamos
na eletrónica, mais saudades temos dos instrumentos acústicos. O ‘sampler’ é um
bom exemplo da nova direção que a música eletrónica está a seguir,
paradoxalmente procurando reproduzir, por meios digitais, o som acústico
natural…”.
Em
“Janelas Verdes” o computador e os sintetizadores coabitam com o cavaquinho, a
viola braguesa ou os instrumentos trazidos por músicos convidados, como o
saxofone de Paulo Curado, o trompete de Tomás Pimentel, o oboé de António
Serafim ou as vozes de Maria João, Anabela Duarte e Luís Madureira. A
gaita-de-foles geme, apenas num dos temas – “No nosso país há poucas pessoas
que saibam tocar bem o instrumento e menos ainda a construí-lo. Ao contrário do
que acontece por exemplo na Galiza, onde observei escolas com dezenas de miúdos
a tocar “gaita”, e em que abundam os construtores, em Portugal já só os velhos
a fabricam”.
Do
rock às chulas, da tradição ao folclore universal, do cavaquinho e da braguesa
ao computador e aos “sete instrumentos”, Júlio Pereira continua a debruçar-se
sobre o futuro. Desta vez de janelas das cores todas que os olhos conseguem
ver.
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