20/11/2010

Legião estrangeira [Sétima Legião]

Sons

19 de Fevereiro 1999

“Sexto Sentido” muda sonoridade do grupo

Legião estrangeira

Seis anos depois de “O Fogo”, os Sétima Legião voltaram a reunir-se para gravar um novo álbum, “Sexto Sentido”, um trabalho marcado pela tecnologia e pelo tratamento de samples que funde a alma da Sétima numa alface virtual. Música menos física e mais mental, nas palavras do grupo. E muito mais internacional.

Tão ou mais surpreendente do que a mudança radical nos métodos de trabalho e gravação deste novo álbum da Sétima é o facto de, passado um interregno de seis anos, os intervenientes serem os mesmos e, ainda por cima, estarem sintonizados na mesma onda musical. Um caso de fé inabalável num projecto e num conceito que passou a ter forma exclusiva nas máquinas e nas mentes dos músicos. “Sexto Sentido” existe apenas enquanto utopia sonora e espaço convergente de diversas sensibilidades unidas pelo propósito da descoberta e reconversão. Daquilo a que, com boa vontade, ainda poderemos chamar tradição, mas agora já transmutada num mutante abstracto que se alimenta do imaginário planetário. O PÚBLICO samplou as ideias de três dos alquimistas, Gabriel Gomes, Pedro Oliveira e Paulo Abelho.
PÚBLICO – Ao escutar-se “Sexto Sentido” tem-se a impressão de que a música se esgota numa dimensão exterior, não só à anterior realidade do grupo, como à própria fisicalidade do som. Como conceitos a pairarem num mundo de imponderabilidade...
GABRIEL GOMES – Isso deve-se ao diferente método de produção que utilizámos. Nem toda a gente estava disposta a ir para uma garagem passar quatro meses a ensaiar. Foi muito mais fácil agarrar nos compositores e respectivas composições e juntá-los consoante a disponibilidade de cada um.
PAULO ABELHO – Além do facto de cada um de nós ter desenvolvido, entretanto, diferentes métodos de trabalho.
P. – As composições deixaram de ser assinadas pelo colectivo para passarem a ser assinadas pelos nomes próprios dos músicos, em diversas combinações.
G. G. – O que não quer dizer que não haja um intercâmbio e uma comunhão.
P. – Querem dizer que, embora tivessem seguido carreiras separadas, acabaram todos por convergir ao mesmo tempo numa estética comum?
P. A. – O que acontece é que, desde o início, há 15 anos, que somos amigos. Continuámos todos a andar juntos, a sairmos à noite, com negócios comuns...
G. G. – O Pedro, sobretudo, serviu de elo entre todos. Mas o que uniu tudo foi a matéria musical. E isso é que foi o mais engraçado. Embora separados, quando nos juntámos para estúdio, estávamos todos no mesmo sítio.
P. – Como é que surgiu a ideia de erguer toda a arquitectura de “Sexto Sentido” com alicerces nos samplers? É um mundo alheio à Sétima Legião antiga...
P. A. – É verdade que operámos com base em samples e nos sintetizadores, mas sem qualquer sentido arquivista.
PEDRO OLIVEIRA – Deixámos de respeitar as regras de um grupo pop. Este disco é um disco de vários compositores com um elo comum.
P. – Mas não acham que álbum soa um pouco a produto de laboratório?
G. G. – Usámos métodos diferentes para trabalhar o som. É evidente que, quando se trabalha com tecnologia, tem que se utilizar métodos laboratoriais. Mas acho que, por exemplo, nas figuras da gaita-de-foles ou do acordeão, tentámos criar “takes” o mais espontâneos possível, gravados à primeira. Inclusive, deixámos algumas coisas que não quisemos corrigir. A grande inovação deste disco é, de facto, o som.
P. – No caso das vocalizações sobre vozes sampladas, de que forma é que esta interacção modifica a interpretação em tempo real? Esta questão dirige-se, como é óbvio, ao Pedro.
P. O. – É intuitivo. Quando sentes que alguém está a cantar ao teu lado, de uma maneira não física, isso molda a nossa maneira de cantar. Se não houvesse a voz de uma senhora do campo a cantar, eu cantaria, de certeza, e outra maneira.
P. – Até que ponto “Sexto Sentido” foi composto, não só no, mas com o próprio estúdio?
P. A. – Sobretudo na fase final, nos últimos meses, começámos a simplificar as coisas. Sem dúvida que houve pormenores que só apareceram no estúdio.
P. – Concordam que, com este disco, a Sétima respira já alguns ares de música de dança?
G. G. – Há uma sonoridade mais contemporânea, mais próxima de algumas correntes actuais. Mas não se trata de um “beat” de música de dança. Mas, se reparar, todos os concertos da Sétima Legião eram de dança, as pessoas dançavam do princípio ao fim...
P. – “Sexto Sentido” é um disco de fusão. Em que sentido é que aceitam, se é que aceitam, este termo?
G. G. – Não se tratou de agarrar em tudo e meter numa panela, mas mais de fundir as sonoridades, os instrumentos acústicos com os electrónicos.
P. – Mas não concordam que a sonoridade global do disco se insere numa vertente internacional bastante identificável?
P. O. – Não foi propositado. Mas o que é isso de ser ou não português? Os Gaiteiros de Lisboa, por exemplo, estão cada vez menos portugueses.
G. G. – Tem a ver com a produção, com a forma de tratar o som. E aí, concordo, é um som mais internacional do que português. Outro exemplo: ouvi no outro dia os DNA, têm um som exactamente igual aos U2... Incrível. Mas são portugueses. O som de uma banda de recolha?
P. O. – Desde o início tivemos sempre a preocupação de não ter como objectivo estético o aproveitamento da portucalidade, da tradição, etc... Há 15 anos usávamos uma gaita-de-foles apenas porque ficava bem. Nunca quisemos fazer qualquer transposição da tradição para música pop.

Alfaces e fractais

P. – Existem facções diferentes na Sétima, uma mais tecnológica e outra mais acústica? Referimo-nos ao Paulo Marinho...
P. O. – Não, embora não exerça muito, também tem o fascínio pelos computadores. Aliás, o papel dele, neste disco, foi o mais ingrato, por ser o único músico cem por cento acústico. Ingrato, por não poder repetir neste caso o que sempre fez. No passado havia algumas coisas previsíveis, sabia-se sempre onde é que entrava um solo de gaita. Neste disco ele fez um esforço de não ser previsível, no sentido de produzir um som muito menos trabalhado. É uma contradição com alguma graça, inclusive há algumas “gralhas” que optámos, ou optou ele, por aproveitar. Muitas vezes esperávamos que ele fizesse de determinada maneira e ele fazia exactamente o oposto.
P. – A capa do álbum insiste na tecla tecnológica. É um fractal?
P. A. – Não. É uma alface. Com filtros.
G. G. – Reflecte a dualidade da terra e da tecnologia. Ema simbiose biológica.
P. – Têm opinião sobre o actual retorno aos sintetizadores analógicos?
P. A. – Houve uma altura em que se passou do analógico para sistemas como o “PCM”, com pequenas amostras de som pré-programados no sintetizador. Acabou por acontecer uma certa saturação disso. Eram aqueles sons e só aqueles. Agora, construir algo a partir do zero, que é o que acontece no analógico, é muito mais fascinante, em termos de criatividade.
P. – Usaram sintetizadores analógicos neste disco?
G. G. – Sim, como um JP 8000, dos anos 80, que recupera todos os analógicos da Roland antigos, sintetizados na mesma máquina.
P. – Nada de Moogs nem A. R. P.?
P. A. – Eu tenho um Korg MS-10 onde é possível criar qualquer coisa de raiz. Posso partir do ruído branco e daí construir um novo som em tempo real. O que vai acontecer na próxima fase é o aparecimento de uma nova tecnologia que utiliza estes métodos de síntese, mas já em conjunto com samplers. Todas as marcas estão a lançar analógicos, mas mesmo isto vai chegar a um limite. É preciso inventar novos métodos de síntese, como já acontece com a Yamaha, com síntese FM, que recorre a algoritmos. Mas nunca vou samplar uma gaita-de-foles (a não ser que pretenda desmontar ou manipular o seu som), se puder usar o instrumento real.

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