27/12/2019

Tiradas a ferro [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 17 JANEIRO 2004

Sclavis, que tirou retratos-fantasma? Pethman, que tirou do frio a arte de Ellington? Parker, que tirou de si próprio um livro de memórias? Quem tira o jazz da perdição? Ainda há quem lance boas tiradas.

Tiradas a ferro

A noite de Louis Sclavis pode ser de lua nova e jazz apagado, como aconteceu em “Dans la Nuit”, álbum anterior deste músico francês. Mas também lua cheia. Desse álbum para o novo “Napoli’s Walls” a lua mudou de fase e a transição está inscrita no tema de abertura, “Colleur de nuit”. Noite italiana inspirada na obra do artista gráfico Ernest Pignon-Ernest, autor de uma série de esculturas em pedra negra e serigrafias incrustadas nas paredes de prédios antigos de Nápoles. Representações fantasmagóricas e perturbantes, da morte, da Virgem, do Inferno, de ritos ancestrais que evocam os arquétipos da humanidade.
            Sclavis traçou, com base na obra deste artista, o seu próprio filme, iluminado pelos fogos vesuvianos, das mitologias e dos quadros de uma Nápoles vista não através de uma perspetiva realista ou folclórica, mas como “cidade de ficção”. A música contemporânea, a eletrónica, microdivagações de câmara, ópera bufa, teatro de marionetas e citações das tradições musicais e canções napolitanas agitam-se numa dança de fogos-fátuos e sonhos labirínticos que recriam, acima de tudo, arquiteturas da imaginação.
            Como Trovesi (com quem o saxofonista e clarinetista partilha algumas conceções e pontos de fuga sobre o jazz contemporâneo), Sclavis incorpora no seu discurso elementos díspares para os sintetizar numa música tão personalizada como universal. Acompanhado por Vincent Courtois (violoncelo e eletrónica), Médéric Collignon (trompete de bolso, vozes, trompa, percussão, eletrónica) e Hasse Poulsen (guitarra), o livre-pensador francês oferece-nos sarabandas e sinestesias, múltiplos matizes e texturas, que se percorrem como as ruas e vielas da cidade, observada pelos olhos de um estrangeiro. Uma música de “adivinhações modernas”, “aparências” (aqui, o jazz, tal qual as imagens de Ernest, é um “trompe-l’oeil”) e “portas secretas” que nos toca e nos chama para a solidão do esteta que observa e sorve a Beleza como um vinho raro e requintado.
            Da Finlândia não desaguam apenas icebergues formados na geleira ECM. A surpresa escandinava chama-se “The Music of Esa Pethman”, da série “The Modern Sound of Finland”, antologia de temas escritos entre 1964 e 1966 pelo compositor, tenorista (emissão forte, timbre áspero mas apelativo) e flautista Esa Pethman, nascido em 1938.
            A remasterização de 24 bits valoriza os mínimos pormenores de uma música que soube assimilar a arte de Duke Ellington, referência incontornável para este autodidata para quem o mais importante não é a teoria, nem as grandes edificações arquitetónicas, mas a melodia. “Nunca estudei composição. Tenho a impressão de que os ensinamentos técnicos apenas reduziriam as minhas composições a estereótipos”, diz. Pediu a um amigo que lhe ensinasse os rudimentos necessários para harmonizar e orquestrar as suas pequenas melodias, por vezes bizarras, de um jazz que nasceu no “hard pop”, se cultivou em Ellington e se expressa em arranjos tão “out” como os de “Shepherd song”, com as suas soluções dignas da caderneta de Raymond Scott.
            Sibelius e os românticos finlandeses atravessam igualmente a música deste compositor um pouco excêntrico, tão à vontade a afirmar que o jazz é, em termos de composição, “uma música limitada”, como, logo a seguir, que este mesmo jazz lhe confere “liberdade em termos rítmicos”, confessando ao mesmo tempo o seu deslumbramento ao ouvir um solo de Charlie Parker ou de Sonny Rollins. Há uma orquestra de passo trocado, swing em contratempo, fagulhas e geada. E “Al Secco”, por si só uma noite inteira de baile e recital da meia-noite.
            Na Bélgica também se faz pela vida. Kris Defoort, de quem já conhecíamos o álbum “Sound Plazza”, volta a estar presente, com um trabalho anterior, de 1999, que junta dois formatos e momentos distintos: “Passages”, no primeiro CD, reúne temas em quarteto (com Mark Turner em destaque no sax tenor), sendo o segundo inteiramente preenchido por cinco “Passages” compostas para uma coreografia de Fatou Traoré e executadas por uma formação instrumental alargada a que o pianista chamou Dreamtime. Neobop cruzado por referências eruditas, uma incisão de Ornette Coleman (“Round trip”) e incursões na atonalidade, no primeiro caso. Uma escrita mais ambiciosa, orquestral e diversificada, no segundo, sem que nela se detetem, porém, sinais de génio. Ou, pelo menos, uma alma com a incandescência da de Esa Pethman.
            No caso de George Schuller e do seu irmão Ed Schuller, a matilha Schulldogs, trata-se antes de mais de um espectro alucinado a correr pelo jazz fora, aos uivos e a arrastar correntes. “Hellbent” junta o baterista e o baixista com Tim Berne e Tony Malaby, respetivamente nos saxofones alto e tenor, dois dos nomes mais requisitados do jazz atual. Recupera-se e cultiva-se a componente performativa e ritual do “free jazz”, o grito, a estridência e a subversão rítmica e harmónica, ainda que um dos temas, “Distant cousin”, pretenda ser uma “reinvenção abstrata” de “Evidence”, de Thelonious Monk. As progressões são orgásticas, partindo da prospeção e do tatear iniciais para o clímax. Caminhos outrora perigosos mas que hoje se percorrem com um sorriso de segurança e reconhecimento nos lábios. Os aventureiros e visionários de antanho não morreram em vão.
            Malaby aparece de novo, agora como parceiro de Mark Helias (contrabaixo) e Tom Rainey (bateria), em “Verbs of Will”. Boa música improvisada. Mas porque será que temos a sensação de se ter criado em Nova Iorque uma espécie de “lobby” que parece ter estagnado num conceito e em tiques de uma vanguarda que deixou de o ser? Questão pertinente e por resolver: o jazz tem ainda salvação? Como e por onde? Pela via da entropia e da definitiva passagem de testemunho à “música improvisada”, liberta em definitivo das regras e dogmas da tradição? Ou pela da crucificação, através da assimilação e adequação de outras formas e filosofias musicais (como fazem Trovesi e Sclavis) onde as antigas noções (o “swing”, o “blues” – os dois grandes pilares) adquirem novos significados e se transmutam em práticas universais? “Verbs of Will” é novo que soa a velho, independentemente do inegável talento e cultura jazzística dos intervenientes. No fim de contas são os deuses, os génios, os grandes solitários, que fazem o trabalho sozinhos. Deixemos, então, de procurar o “grande jazz” e louvemos, ao invés, os grandes músicos. Rezando para que estes não nos abandonem e a Grande Obra possa prosseguir.
            William Parker dá-nos razão. O que noutros é bordão neste contrabaixista é necessidade básica e alimento vital. A improvisação incendeia-se, sente-se que tem de ser assim, que o trajeto das notas, por mais árduo que seja, é o único possível. Nos grandes músicos é a música que orienta o executante, que faz o músico, e não o contrário. Que lhe dita a lógica e as ordens. Músico com “M” maiúsculo é aquele que sabe ouvir e obedece, abrindo e esculpindo o silêncio com o seu espírito e com as suas próprias mãos. Parker faz isto, em “Scrapbook”, caderno de apontamentos e memórias em trio com Billy Bang (violino) e Hamid Drake (bateria). Música livre, inspirada em pessoas e lugares, pelos espaços e tempos percorridos. O violino de Bang estende-se como a voz do destino, swingando entre a alegria e o desespero, timbre e ritmos sintonizados num conceito cósmico da música. Parker é assombroso do princípio ao fim. Passadas e ânimo de gigante, mundo maior que os mundos que o rodeiam, berço de galáxias e buraco negro onde a música nasce e se desintegra para renascer, diferente e com a frescura das géneses e o fogo das revoluções, no momento seguinte. Aponte-se, então: indispensável.

LOUIS SCLAVIS
Napoli’s Walls
ECM, distri. Dargil
8 | 10

ESA PETHMAN
The Music of Esa Pethman
Warner Music Finland, distri. Ananana
9 | 10

KRIS DEFOORT QUARTET/DREAMTIME
Passages
2xCD De Werf, distri. Multidisc
6 | 10

GEORGE SCHULLER SCHULLDOGS
Hellbent
Playscape, distri. Trem Azul
7 | 10

MARK HELIAS’ OPENLOOSE
Verbs of Will
Radio Legs, distri. Trem Azul
7 | 10

WILLIAM PARKER
Scrapbook
Thirsty Ear, distri. Trem Azul
9 | 10

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