12/05/2020

"É tão bonito ouvir o interior do piano" [Bernardo Sassetti]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 2 OUTUBRO 2004

Impressionista dos sons e dos silêncios, Bernardo Sassetti escolheu o Índigo para cor e título do seu novo álbum. Um segundo CD, Livre, apresenta uma sessão de improvisações em Belgais, à época de Nocturno.

“É tão bonito ouvir o interior do piano”


“Nocturno” foi a constelação que em 2002 proporcionou um dos grandes discos de jazz desse ano. A responsabilidade em encontrar um sucessor era grande mas Bernardo Sassetti saiu-se a contento da tarefa. “Índigo”, o novo álbum, é uma nova prova de maturidade e um grande disco onde as impressões e as descobertas se sucedem. A primeira edição, a preço especial, é dupla e inclui um segundo CD, “Livre”, constituído por uma sessão de improvisações na Quinta de Belgais efetuada logo a seguir à gravação de “Nocturno”. “Índigo” e “Livre” completam-se, harmonizam-se como dois líquidos de densidades compatíveis. Talvez ainda mais do que em “Nocturno”, Sassetti revela-se um perfeccionista da nota exata, da cintilação tímbrica perfeita que espelha a emoção. A sonoridade do seu piano é cristalina, fluida, por vezes obcecada por uma frase ou um matiz mais duro, o silêncio infiltra-se nesse espaço onde a inspiração e a respiração da música se fazem sentir. Sassetti é um pianista preocupado com a luz e com a sombra, como um pintor (a embalagem mostra uma das suas aguarelas). Há a preocupação de contar histórias, por mais abstratas que sejam as palavras. E há o prazer de fazer e refazer a textura, de montar e desmontar as harmonias, de utilizar o contraponto como uma manivela de sentimentos que se escapam para múltiplas dimensões. “Índigo” é mais direto, o termo “bonito”, nalguns casos, “belo”, aplica-se-lhe com maior propriedade. Os motivos melódicos atraentes impõem-se, mesmo que o desenvolvimento de cada tema não seja em caso algum redundante ou vulgar. Monk é uma referência, no humor, na exploração das situações intermédias e das soluções de risco, nos contrastes fortes. Monk que contribui com três composições, “Raise four”, “In walked Bud” e “Pannonica”. “Livre” desenvolve-se segundo lógicas mais secretas que resultam do puro momento da execução, da coincidência do movimento das mãos sobre o teclado com o sopro criativo. “Clusters” oceânicos, escalas árabes, pequenas danças, “Livre” é uma cornucópia de formas em contração e dilatação. Como um rio. Tem histórias de encantar, tons de sangue e a quietude de um arranjo original de “Música callada”, de “Nocturno”.
            “Os dois discos complementam-se, existe em ambos um lado muito forte que é o prazer de tocar e de contar histórias”, diz o seu autor, de “tentar, de alguma maneira, transmitir imagens que fazem parte da minha vida. O que está aqui é o que eu sou. Quis transmitir com cada história manchas de cores e as suas evoluções”. É o Sassetti impressionista a falar. “O índigo é uma cor que na altura me acompanhava muito, gosto muito de pintar, o ato de pintar e a forma como chego às formas, às cores, às sombras e às luzes é idêntico ao de pintar uma melodia e de fazer as suas variações. É um ato momentâneo, pegar numa música e perceber a que caminho é que vou chegar, o que é possível fazer a partir do desenvolvimento de células musicais. Gosto de criar motivos recorrentes e toadas obsessivas. Existem, sobretudo em ‘Livre’, muitos ostinatos.” Sassetti vai mais fundo e é na exploração desses ostinatos que tenta perceber de que maneira consegue “transpor” a sua experiência “como pessoa, como terrestre”, para uma música que se pretende “abstrata”. “Tentar ilustrar a minha realidade utilizando a abstração, sobretudo utilizando a imaginação, porque aquilo que eu toco é a imaginação das coisas, a impressão das coisas.” A intuição comanda as operações. “Se eu parar para pensar, a música acaba, tem de ser um ato de fruição, de fluência musical.” Bernardo Sassetti entregou-se com entusiasmo à criação deste disco e é esse entusiasmo, essa ardência espiritual, que se desprende de cada nota de “Índigo” e “Livre”. “Mesmo com baldas.” Baldas? Não foram apagadas em estúdio? “Não! Há notas esborrachadas mas que fazem parte daquilo que eu sou (risos) não há nada a fazer. Não pretendo uma música perfeita.” Eis Monk de novo a assomar. Uma coincidência de modos de atuar e de sentir? “Claro, o Monk sempre terá uma presença muito forte na minha música, por uma razão muito simples: eu gosto muito do humor, da ilustração do humor musical. De que maneira é que podemos desconstruir a realidade utilizando o humor? Desconstruir as melodias e tentar encontrar uma linguagem nova. Pela primeira vez neste disco tive a preocupação absoluta em transmitir no piano um leque de sonoridades que nunca tinha conseguido antes. Por exemplo, o ‘My funny Valentine’, nunca tinha feito nada com tanta respiração, com uma sensação de tempo e de espaço que não são deste mundo.” Que mundo e que espaço? “Do mundo de quando eu me sento ao piano e toco.” Em Belgais, Bernardo Sassetti entrou para esse mundo através de um piano protótipo, de marca Yamaha, construído de propósito para Maria João Pires. “Eu nunca falei disto, mas o trabalho de pedais, sobretudo no ‘Índigo’ é notório, os pedais de suspensão, o pedal abafador, também utilizei muito o pedal do meio, que é raro utilizar. Existe uma preocupação de exploração do piano.” Neste caso, “um piano absolutamente extraordinário”. Convidámos o pianista a comentar quadro a quadro esse espaço e esse tempo especiais que fazem de “Índigo” e “Livre” discos únicos.

Bernardo Sassetti
Índigo
2xCD Clean Feed, distri. Trem Azul
9 | 10


A procura do desconhecido

“Livre”, o segundo CD, foi gravado durante dois dias. Puro prazer de desfrutar o momento. “Atirei-me ao piano. Foi um ato muito natural. Em Belgais sinto-me totalmente em casa. Estava ali naquela, vamos lá desabafar. Quando fiz o ‘Nocturno’ já não gravava há quase sete anos. Acabei de gravar o ‘Nocturno’ e resolvi ficar mais uns dias. Apetecia-me continuar a gravar. Gosto muito deste trabalho, mais que não seja pelo lado aventureiro, foi um desafio, sentar-me ao piano e falar com o instrumento.” De “Livre”, Bernardo Sassetti destaca os três movimentos de “Histórias de Sherazade”, “Alizarin” e “Jelly dream”. “Sherazade é uma história que eu andava a ler. Sherazade que foi condenada pelo sultão mas que, no encontro entre eles os dois, começou a contar-lhe histórias ao ponto de o sultão ficar encantado e esquecer a condenação. Quis transmitir este lado encantatório que tem a música do Médio Oriente, mais uma vez sentir que não existe nem tempo nem espaço, uma procura das notas sem ter na cabeça qualquer conceção temporal.” “Alizarin’ foi a aventura total, a procura de sonoridades diferentes, de caminhos que nunca tinha explorado antes. É uma tonalidade vermelha muito forte, muito sangrenta. Estamos como na corrente de um rio, nunca sabemos para onde nos leva a corrente. Mas eu, por muito espacial e introspetivo que seja, tenho sempre a noção do que estou a fazer. Muitas vezes o que penso é como é que vou sair desta. Estou a desconstruir isto, agora como é que vou sair daqui, como é que posso intercalar a construção e a desconstrução, de uma forma lógica.” “Índigo” e “Livre” fazem sentido, com a sua fluidez aquática e tudo termina num sonho que não é “jolly” mas “jelly”. “Jelly dream”, o culminar de uma relação apaixonada com o piano. “É o tema mais importante – a procura do desconhecido, de qualquer coisa que não conheço. É o princípio do que está para vir. E deixo a frase intencionalmente em aberto.”


Quadros de uma exposição

Índigo
É a cor do tema. Aquele lado escuro. O cultivar dos acordes numa base mais grave e construir o tema a partir daí, com aparições de luz nas melodias da mão direita. Tive sempre em mente esta cor.

Promessas
É um tema que foi escrito mas que teve na gravação a sua evolução máxima. Foi desenvolvido no momento. Gosto de ter um tema e não pensar que este tem uma versão definitiva.

My ideal
(Newell Chase,Richard A.Whiting, Leo Robin)
Aconteceu-me uma coisa muito engraçada. Estava a tocar, a tocar, a tocar, durante três horas seguidas este tema e o engenheiro de som, o Nélson Carvalho, que estava na régie, diz-me: “Ó Bernardo, não achas que já chega de ‘My ideal’? Acho que estás a começar a dar em louco.” Mas eu estava a gozar tanto… A letra, que foi celebrizada pelo Chet Baker, é uma piada muito romântica, a procura de um ideal de mulher, por parte de quem canta. Tentei um pequeno golpe de humor. Gostei de dar ao tema só a melodia, com a mão direita, sem acordes, sem harmonia, sem nada. A partir daí entrei numa viagem humorística. O meu ideal de mulher seria uma mulher com muito sentido de humor.

Never let me go
(Jay Evans, Jay Livingston)
Gostei de fazer uma introdução que me levasse ao tema. Começar a descobrir lentamente que se adivinhava ali um tema. Mas achei necessário respeitá-lo, sobretudo respeitar a melodia, ter sempre em mente a letra da canção. E depois há uma espécie de conclusão que é a exploração máxima do motivo principal, mas que não passa pela estrutura original.

Raise four
(T. Monk)
É um “blues”. Com uma célula musical de um compasso repetido “on and on” dentro da estrutura do “blues”. Tem um lado muito abstrato. E tem outra coisa curiosa: É brincar com o “acorde do diabo”, a quarta aumentada, que era uma coisa de que o Monk gostava muito e que também ouço na música do Messiaen, outra influência muito forte. Foi pegar no “blues” e desconstruí-lo ritmicamente até chegar a um ponto em que não consegui desconstruir mais. A partir daí tem de ser só construção. Nos temas do Monk foi sentar-me e gozar à grande.

Caminho até aqui
Não é original e vem da música clássica. Musicalmente já tudo foi feito até aqui. No séc. XX houve uma avalanche de novas ideias. Procurei, não inovar, mas sentir-me bem a tocar um percurso que tem a ver com o meu conhecimento dos espanhóis, músicos de flamenco. Começa de forma abstrata e depois, lentamente, vai-se transformando numa canção de embalar flamenca, com a sonoridade de uma escala arábica.

Inquietude
O tema mais difícil que gravei até hoje. De longe. É um tema muito pausado. Gosto da ideia do homem, neste caso eu, estático, mas inquieto por dentro. O facto de se chamar “Inquietude” não implica um movimento frenético. É uma forma estática de contemplação, de olhar para o infinito enquanto cá dentro se passa muita coisa, um conjunto de pensamentos que se cruzam.

Prelúdio em sol menor
Foi um tema que escrevi para um filme. Adoro o “ostinato”. Curiosamente é um tema bonitinho, mas que não me interessa tanto como a reviravolta que opero dentro dele. Há um lado muito poético, muito lírico. Gravei-o à procura dessa reviravolta. Poder passar para o outro lado. Pegar no tema, essencialmente um “leit-motiv”, e esquecê-lo.

In walked Bud
(T. Monk)
A procura, como em “Never let me go”, do espaço. Ritmicamente é mais frenético do que qualquer outro, tem uma toada que quase não para. Além disso, não sabia que estava a ser gravado. Gravei o tema todo, só que cheguei ao fim, logo a seguir ao almoço, e parei. No fim, recorri ao “edit” e gravei o tema final, a sua reexposição. É para isso que serve a tecnologia. O resto do disco foi todo de enfiada. Mas neste tema, não sabendo que estava a ser gravado, parei no fim do solo.

My funny Valentine
(Richard Rodgers, Lorenz Hart)
É uma referência para muitas pessoas. Interessava-me pôr este tema de uma forma que expressasse uma das minhas atuais preocupações: quanto tempo é que posso usar um silêncio? Poder lentamente digerir cada nota. Cheguei a um ponto, na minha carreira, em que o que pretendo é tirar a palha. É tão bonito ouvir o interior do piano. A exploração do silêncio na música vai ser o meu próximo passo. O silêncio simbólico.

Descarga!
(Bernardo Sassetti, Ed Simon)
É um compasso todo marado. Um baixo “ostinato” do Ed Simon, um amigo meu e um pianista de eleição que durante muito tempo fez parte do grupo do Terence Blanchard, um génio. Funciona como uma descarga de energia. Vamos lá tocar! Toca a andar! Tem também muito humor.

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