24/07/2014

Como um pássaro mecânico [Amon Tobin]



Sons
9 de Junho 2000

Entrevista com Amon Tobin, a propósito de “Supermodified”

Como um pássaro mecânico

Um título como “Supermodified” é todo um manifesto de métodos e intenções, protagonizados neste novo álbum por Amon Tobin, um dos músicos mais originais e criativos na área da eletrónica atual. Caleidoscópio de metamorfoses, por vezes violentas, em que a natureza dos sons não é nunca aquela que parece. Como o pássaro mecânico de um dos filmes de David Lynch.

Escolher, cortar, alargar, comprimir, acelerar cada som até nada restar dele senão o estrato indefinível que dá forma a uma visão é o método seguido por Amon Tobin, músico brasileiro há anos residente em Inglaterra, que ao longo da sua discografia tem vindo a operar uma revolução no seio do drum’n’bass. “Supermodified” é já outra coisa. Um mutante de eletrónica e metal cujo corpo foi desvendado ao PÚBLICO pelo seu criador.
PÚBLICO – A propósito do álbum anterior, “Permutations”, afirmou que a música foi criada, em primeiro lugar, a partir de uma específica relação com os meios tecnológicos que tinha disponíveis. O que é que foi “supermodificado” neste seu novo trabalho?
AMON TOBIN – “Supermodified” foi feito, na íntegra, a partir de várias coisas diferentes. Cada som é proveniente de um lugar específico. Tudo o que fiz foi arrancar cada elemento para fora do seu contexto, torcê-lo e reinseri-lo dentro daquilo que pretendia fazer.
P. – Foi uma “supermodificação”?...
R. – Super, ultra! Foi tudo esmagado, comprimido ao máximo! Através de “plug-ins” como o programa Cubase que acabei, no fim, por não utilizar muito, devido a não sair muito do compasso de 4/4. Mas o aparecimento de novas tecnologias vai tornando o processo de criação musical cada vez mais interessante.
P. – Até que ponto o seu trabalho se baseia na intuição?
R. – Não tenho outro remédio, senão usá-la! O meu conhecimento académico sobre música está longe de ser impressionante…
P. – Uma vez, afirmou que se via a si próprio apenas como um DJ. Mantém essa afirmação?
R. – Não… Apenas disse isso porque o sampler não é propriamente um instrumento convencional, mas a forma como o uso é certamente a de um músico. Não tenho qualquer interesse em usar instrumentos “reais”, embora toque alguns deles, mas só em casa, para mim próprio. Não se trata de chamar o melhor saxofonista, pianista ou clarinetista do mundo, o meu “input” parte dos arranjos, da escolha e do arranjo dos sons. Não preciso de me tornar um saxofonista tecnicista para conseguir isso. Trata-se de “arranjar” os sons, não de os tocar (“perform”), como faz um músico tradicional. Em geral, quando se fala em “musicianship”, associa-se o termo a esse ato de interpretar e eu, em definitivo, não sou um intérprete, um executante…
P. – Mas esse termo, associado ao executante, não se pode transferir para o sampler, ou para um computador?
R. – É verdade, mas ainda neste caso não se trata de uma execução ao vivo, como faz um performer tradicional. Uma das virtudes de tocar ao vivo um instrumento é a possibilidade de se ser espontâneo. A minha música não tem nada disso, não pretende ser espontânea. Talvez na fase de produção haja lugar para ela, mas o produto final é absolutamente controlado.

“Fala-me da tua cabeça”

P. – Encontrei na Net um “site”, mais ou menos oficial, sobre si, bastante bem construído, à semelhança da sua música, em constante mutação. Estabelece uma relação curiosa entre alguns conceitos musicais presentes em “Supermodified” e partes do corpo. Conhece-o? Teve alguma interferência ou intervenção da sua parte?
R. – Sei qual é! Foi criado por Clifford Gilberto, da editora para onde gravo, a Ninja Tune. Ele entrevistou-me por telefone e fez-me algumas perguntas bastante loucas (risos), do estilo: “Fala-me da tua cabeça, fala-me dos teus dedos, fala-me do teu estômago.” O “site” acabou por ficar muito bom, muito “sci-fi”.
P. – “Supermodified” dirige-se mais à cabeça, ao cérebro, do que às outras partes do corpo, não acha?
R. – Há uma ligação entre a cabeça e o resto do corpo. Não sei fazer música para as pessoas analisarem. O que eu pretendo é estabelecer um elo com o “groove” natural das pessoas.
P. – O sample de guitarra acústica, em “Deo”, lembrou-me a música dos Faust. Ouve muita música das décadas passadas?
R. – Com certeza! Uma das particularidades da minha música é a inclusão de elementos dos anos 70, mas também dos 60 e 50, de velhas bandas sonoras, por exemplo. Não conheço os Faust, vou ter de investigar. Aos 17, 18 anos, ouvia sobretudo blues acústicos, Sonny Terry, Brownie McGhee, Lightnin’ Hopkins. E música brasileira, claro, Jobim, Astrud Gilberto, Baden-Powell… Também muito hip-hop.
P. – Que discos costuma passar nas sessões de djing?
R. – Bastante drum’n’bass do antigo, misturado com material novo, de preferência o mais excêntrico possível, coisas inapropriadas (risos)…
P. – Tem alguma coisa a responder àqueles que assistiram à sua atuação no ciclo “Blue spot”, em Matosinhos, e se lamentam dos escassos 40 minutos que durou o seu “set”?
R. – Sim, eu sei… Penso que os promotores se depararam nessa ocasião com alguns problemas. A sala era enorme e a assistência bastante reduzida… Não me lembro exatamente das razões que me levaram a atuar durante tão pouco tempo, mas recordo-me de ter sido uma noite um bocado caótica…

Tangentes

P. – Voltemos a “Supermodified”. Numa das canções, “Percursor”, o ritmo é feito com pedaços de vozes…
R. – Usei uma “beat box”, a Quadraceptor, que me chegou de Montreux. Já tinha na cabeça uma série de breakbeats acelerados, de 170 bpm. Gravei a sequência inteira no estúdio e, mais tarde, em casa, reestruturei-os de maneira diferente.
P. – Em “Saboteur”, criou uma atmosfera de “filme negro”. Existe uma apropriação consciente da linguagem cinematográfica na música que faz?
R. – Sem dúvida. Existe um paralelo entre o cinema e a música, por exemplo, no modo como uma cena dramática se torna dez vezes mais dramática quando aparece a seguir a uma cena calma. Um estratagema que consiste em criar primeiro uma sensação de aparente segurança para depois introduzir um elemento violento. O mesmo se aplica à música. Cria-se um som leve e delicado e de repente, colado a ele, um som de extrema violência.
P. – Esse contraste entre suavidade e violência é percetível na estrutura de cada tema de “Supermodified”, algo que não acontecia em “Permutations”, onde os temas eram mais lineares…
R. – Se reparar bem, em “Permutations” também acontece isso. Os temas começam por ser uma coisa e acabam noutra totalmente diferente. Mas percebo o que quer dizer, talvez o novo álbum tenha sido arranjado de uma forma mais dinâmica. Não se trata de usar a fórmula coro-verso-coro, é muito mais interessante desenvolver uma estrutura em tangente, algo que pode evoluir até regressar ao ponto de origem mas que também pode não regressar… Algo imprevisível.
P. – Quando começa a gravação de um álbum, tem alguma ideia sobre a sua forma definitiva?
R. – Quem me dera ter!... Mas a gravação demora tanto tempo que, a meio do processo, as ideias já se alteraram por completo. “Supermodified” levou quase dois anos a fazer, entre digressões de promoção a “Permutations”. Mesmo assim, a fase mais intensiva coincidiu com os últimos 12 meses. Cada tema foi-se desenvolvendo por si próprio, ao longo de sucessivas metamorfoses.
P. – Quando é que decide que essa metamorfose tem de parar para o tema assumir a forma definitiva?
R. – Quando já tem sobre o corpo mais roupas do que aquelas que pode vestir. Acontece o mesmo com a pintura, pode continuar-se a pintar indefinidamente mas no final tem de corresponder minimamente a um modelo original.
P. – “Rhino jockey” soa muito industrial…
R. – Esse tema foi feito a partir de breaks de samba, tirados de diferentes instrumentos de percussão brasileiros. Alterei-os de maneira a soarem industriais, o resultado acabou por não ter nada a ver com ritmos brasileiros.
P. – O tema de abertura, “Get your snack on”, é um dos meus favoritos. Como é que faz para arrancar o “swing” às máquinas?
R. – Tomara ter um sistema em que pudesse confiar para obter sempre esse resultado. Não sei… É apenas mais uma faixa em que dispus de sons interessantes, neste caso um break fantástico tirado de um disco trazido de uma loja por um músico meu amigo. Todos os breaks foram construídos a partir desse break inicial.
P. – O álbum termina com “Natureland”, paradigma de uma Natureza inteiramente virtual.
R. – É tudo mecânico e virtual. Como o pássaro mecânico que aparece em “Blue Velvet”.

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