Sons
9
de Junho 2000
Entrevista
com Amon Tobin, a propósito de “Supermodified”
Como um pássaro mecânico
Um título como “Supermodified” é todo um manifesto de métodos e
intenções, protagonizados neste novo álbum por Amon Tobin, um dos músicos mais
originais e criativos na área da eletrónica atual. Caleidoscópio de
metamorfoses, por vezes violentas, em que a natureza dos sons não é nunca
aquela que parece. Como o pássaro mecânico de um dos filmes de David Lynch.
Escolher,
cortar, alargar, comprimir, acelerar cada som até nada restar dele senão o
estrato indefinível que dá forma a uma visão é o método seguido por Amon Tobin,
músico brasileiro há anos residente em Inglaterra, que ao longo da sua
discografia tem vindo a operar uma revolução no seio do drum’n’bass.
“Supermodified” é já outra coisa. Um mutante de eletrónica e metal cujo corpo
foi desvendado ao PÚBLICO pelo seu criador.
PÚBLICO – A propósito do álbum anterior,
“Permutations”, afirmou que a música foi criada, em primeiro lugar, a partir de
uma específica relação com os meios tecnológicos que tinha disponíveis. O que é
que foi “supermodificado” neste seu novo trabalho?
AMON TOBIN – “Supermodified”
foi feito, na íntegra, a partir de várias coisas diferentes. Cada som é
proveniente de um lugar específico. Tudo o que fiz foi arrancar cada elemento
para fora do seu contexto, torcê-lo e reinseri-lo dentro daquilo que pretendia
fazer.
P. – Foi uma “supermodificação”?...
R. – Super,
ultra! Foi tudo esmagado, comprimido ao máximo! Através de “plug-ins” como o
programa Cubase que acabei, no fim, por não utilizar muito, devido a não sair
muito do compasso de 4/4. Mas o aparecimento de novas tecnologias vai tornando
o processo de criação musical cada vez mais interessante.
P. – Até que ponto o seu trabalho se baseia
na intuição?
R. – Não tenho
outro remédio, senão usá-la! O meu conhecimento académico sobre música está
longe de ser impressionante…
P. – Uma vez, afirmou que se via a si
próprio apenas como um DJ. Mantém essa afirmação?
R. – Não…
Apenas disse isso porque o sampler não é propriamente um instrumento
convencional, mas a forma como o uso é certamente a de um músico. Não tenho
qualquer interesse em usar instrumentos “reais”, embora toque alguns deles, mas
só em casa, para mim próprio. Não se trata de chamar o melhor saxofonista,
pianista ou clarinetista do mundo, o meu “input” parte dos arranjos, da escolha
e do arranjo dos sons. Não preciso de me tornar um saxofonista tecnicista para
conseguir isso. Trata-se de “arranjar” os sons, não de os tocar (“perform”),
como faz um músico tradicional. Em geral, quando se fala em “musicianship”,
associa-se o termo a esse ato de interpretar e eu, em definitivo, não sou um
intérprete, um executante…
P. – Mas esse termo, associado ao
executante, não se pode transferir para o sampler, ou para um computador?
R. – É
verdade, mas ainda neste caso não se trata de uma execução ao vivo, como faz um
performer tradicional. Uma das virtudes de tocar ao vivo um instrumento é a
possibilidade de se ser espontâneo. A minha música não tem nada disso, não
pretende ser espontânea. Talvez na fase de produção haja lugar para ela, mas o
produto final é absolutamente controlado.
“Fala-me
da tua cabeça”
P. – Encontrei na Net um “site”, mais ou
menos oficial, sobre si, bastante bem construído, à semelhança da sua música,
em constante mutação. Estabelece uma relação curiosa entre alguns conceitos
musicais presentes em “Supermodified” e partes do corpo. Conhece-o? Teve alguma
interferência ou intervenção da sua parte?
R. – Sei qual
é! Foi criado por Clifford Gilberto, da editora para onde gravo, a Ninja Tune.
Ele entrevistou-me por telefone e fez-me algumas perguntas bastante loucas
(risos), do estilo: “Fala-me da tua cabeça, fala-me dos teus dedos, fala-me do
teu estômago.” O “site” acabou por ficar muito bom, muito “sci-fi”.
P. – “Supermodified” dirige-se mais à
cabeça, ao cérebro, do que às outras partes do corpo, não acha?
R. – Há uma
ligação entre a cabeça e o resto do corpo. Não sei fazer música para as pessoas
analisarem. O que eu pretendo é estabelecer um elo com o “groove” natural das
pessoas.
P. – O sample de guitarra acústica, em
“Deo”, lembrou-me a música dos Faust. Ouve muita música das décadas passadas?
R. – Com
certeza! Uma das particularidades da minha música é a inclusão de elementos dos
anos 70, mas também dos 60 e 50, de velhas bandas sonoras, por exemplo. Não
conheço os Faust, vou ter de investigar. Aos 17, 18 anos, ouvia sobretudo blues
acústicos, Sonny Terry, Brownie McGhee, Lightnin’ Hopkins. E música brasileira,
claro, Jobim, Astrud Gilberto, Baden-Powell… Também muito hip-hop.
P. – Que discos costuma passar nas sessões
de djing?
R. – Bastante
drum’n’bass do antigo, misturado com material novo, de preferência o mais
excêntrico possível, coisas inapropriadas (risos)…
P. – Tem alguma coisa a responder àqueles
que assistiram à sua atuação no ciclo “Blue spot”, em Matosinhos, e se lamentam
dos escassos 40 minutos que durou o seu “set”?
R. – Sim, eu
sei… Penso que os promotores se depararam nessa ocasião com alguns problemas. A
sala era enorme e a assistência bastante reduzida… Não me lembro exatamente das
razões que me levaram a atuar durante tão pouco tempo, mas recordo-me de ter
sido uma noite um bocado caótica…
Tangentes
P. – Voltemos a “Supermodified”. Numa das
canções, “Percursor”, o ritmo é feito com pedaços de vozes…
R. – Usei uma
“beat box”, a Quadraceptor, que me chegou de Montreux. Já tinha na cabeça uma
série de breakbeats acelerados, de 170 bpm. Gravei a sequência inteira no
estúdio e, mais tarde, em casa, reestruturei-os de maneira diferente.
P. – Em “Saboteur”, criou uma atmosfera de
“filme negro”. Existe uma apropriação consciente da linguagem cinematográfica
na música que faz?
R. – Sem
dúvida. Existe um paralelo entre o cinema e a música, por exemplo, no modo como
uma cena dramática se torna dez vezes mais dramática quando aparece a seguir a
uma cena calma. Um estratagema que consiste em criar primeiro uma sensação de
aparente segurança para depois introduzir um elemento violento. O mesmo se
aplica à música. Cria-se um som leve e delicado e de repente, colado a ele, um
som de extrema violência.
P. – Esse contraste entre suavidade e
violência é percetível na estrutura de cada tema de “Supermodified”, algo que
não acontecia em “Permutations”, onde os temas eram mais lineares…
R. – Se
reparar bem, em “Permutations” também acontece isso. Os temas começam por ser
uma coisa e acabam noutra totalmente diferente. Mas percebo o que quer dizer,
talvez o novo álbum tenha sido arranjado de uma forma mais dinâmica. Não se
trata de usar a fórmula coro-verso-coro, é muito mais interessante desenvolver
uma estrutura em tangente, algo que pode evoluir até regressar ao ponto de
origem mas que também pode não regressar… Algo imprevisível.
P. – Quando começa a gravação de um álbum,
tem alguma ideia sobre a sua forma definitiva?
R. – Quem me
dera ter!... Mas a gravação demora tanto tempo que, a meio do processo, as
ideias já se alteraram por completo. “Supermodified” levou quase dois anos a
fazer, entre digressões de promoção a “Permutations”. Mesmo assim, a fase mais
intensiva coincidiu com os últimos 12 meses. Cada tema foi-se desenvolvendo por
si próprio, ao longo de sucessivas metamorfoses.
P. – Quando é que decide que essa
metamorfose tem de parar para o tema assumir a forma definitiva?
R. – Quando já
tem sobre o corpo mais roupas do que aquelas que pode vestir. Acontece o mesmo
com a pintura, pode continuar-se a pintar indefinidamente mas no final tem de
corresponder minimamente a um modelo original.
P. – “Rhino jockey” soa muito industrial…
R. – Esse tema
foi feito a partir de breaks de samba, tirados de diferentes instrumentos de
percussão brasileiros. Alterei-os de maneira a soarem industriais, o resultado
acabou por não ter nada a ver com ritmos brasileiros.
P. – O tema de abertura, “Get your snack
on”, é um dos meus favoritos. Como é que faz para arrancar o “swing” às
máquinas?
R. – Tomara
ter um sistema em que pudesse confiar para obter sempre esse resultado. Não
sei… É apenas mais uma faixa em que dispus de sons interessantes, neste caso um
break fantástico tirado de um disco trazido de uma loja por um músico meu
amigo. Todos os breaks foram construídos a partir desse break inicial.
P. – O álbum termina com “Natureland”,
paradigma de uma Natureza inteiramente virtual.
R. – É tudo
mecânico e virtual. Como o pássaro mecânico que aparece em “Blue Velvet”.
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