19
de Maio 2000
David Thomas lança “Bay City”
inspirado em Raymond
Chandler
Mudar
o rock de um lugar para outro
Não é fácil captar o que David Thomas tem para dizer. “Há uma mosca na
pomada.” “O rock é uma mudança de uma grande caixa preta de um extremo da
cidade para o outro nas traseiras do carro.” Nem o vírus da linguagem de
Burroughs serve para explicar o mundo idiossincrático do líder dos Pere Ubu – a
“membrana que separa o indivíduo do mundo”. “Bay City” é o seu novo álbum a
solo. Inspirado na obra de Raymond Chandler. O PÚBLICO falou com o “senhor das
moscas”.
David
Thomas é o cantor, ideólogo e líder carismático dos Pere Ubu, a mais importante
banda norte-americana da geração pós-punk, juntamente com os Devo, Talking
Heads e Suicide. Se a discografia do grupo tem sido o filme clandestino das mil
e uma paranóias do “way of life” americano, em álbuns históricos como “The
Modern Dance”, “Dub Housing”, “New Picnic Time” ou, mais recentemente, “Ray Gun
Suitcase” e “Pennsylvania”, a carreira a solo de Thomas diverge ainda mais de
qualquer manifesto de intenções ou da crítica social mais redutora. Thomas é um
filho de Alfred Jerry (“Pere Ubu” é uma personagem criada por este escritor
surrealista), o seu discurso, musical e poético, está pois longe de ser linear
e as suas elucubrações escapam a qualquer interpretação ou ideologia, quando
seria fácil enquadrar os delírios deste gordo com voz de criança em agonia num
cenário freudiano, de psicologia de pacotilha. “A música rock é quase toda
sobre transportar grandes caixas pretas de um extremo da cidade para o outro,
na traseira do carro” é uma das tiradas elípticas deste músico que uma vez
afirmou que “havia música a mais”. Instado pelo PÚBLICO a explicar um pouco
melhor aquele conceito, respondeu: “Sim!”
“Bay
City” é o capítulo mais recente de uma viagem pelos meandros de uma mente
inquieta. Depois de formações erráticas como The Pedestrians – com os quais
gravou o seu primeiro álbum a solo, “The Sound of the Sand” –, os Wooden Birds
e os The Pale Boys (presentes no álbum anterior do cantor, “Erewhon”), David
Thomas chamou deste feita para o acompanhar, três músicos dinamarqueses, P. O.
Jørgens (bateria, percussões e vibrafone), Jørgen Teller (guitarras e órgão
Casio) e Per Buhl Acs (clarinete, melódica, guitarra “slide” e baixo) e chamou
ao novo grupo The Foreigners.
“Bay
City” tomou como fonte (curiosamente, como nos conta o cantor, o encontro entre
ele e o nórdico teve lugar num concerto organizado em redor de uma fonte em
Copenhaga) de inspiração a obra do escritor de livros policiais Raymond
Chandler. O jazz, a folk e o cinema encontram-se numa paisagem, como sempre,
sem centro definido. Como faziam os surrealistas. “Procuro sempre inventar
histórias a partir de recordações, experiências e visões partilhadas. Sons e
palavras são sinais de código úteis para concretizar este propósito. Ao longo
da minha carreira debrucei-me sobre aquilo que existe debaixo da superfície, do
conhecido. O que envolve memórias folk”, explica.
As
palavras e as ideias nem sempre são perceptíveis. Seja numa escala larga como o
show “Disastodrome” que Thomas montou há dois anos em Londres, no “musical”
“Mirror Man”, gravado com convidados como Peter Hammill e Linda Thompson, entre
outros, ou numa frase como “Está uma mosca na pomada” (do álbum de 1979, “Dub
Housing”), a suspeita de segundos e terceiros sentidos instala-se. Apesar disto,
David Thomas não quer ouvir falar de uma frase como “a linguagem é um vírus”,
proferida por William Burroughs: “Tenho por hábito nunca concordar com nada que
Burroughs tenha dito… ou possa dizer, ou pensar que tenha dito…”
Além dos álbuns já citados, David
Thomas gravou a solo “Variations on a theme”, “Winter Comes Home”, “More Places
forever”, “Monster Walks the Winter Lake” e “Blame the Messenger”. Proferiu
a conferência “The Geography of Sound in the Magnetic Age”, promoveu o
espectáculo correspondente, “The Fall of the Magnetic Empire” e é dele a maxima
“A arte existe para revelar segredos e, ao mesmo tempo, preservá-los”.
Também
cantou a “Aria”, de John Cage. “Foi interessante, sobretudo, a maneira como foi
feito”, explica Thomas, sobretudo “para alguém, como eu, para quem a
improvisação é como que uma segunda natureza. O desafio foi a abordagem de uma
peça escrita com a finalidade de obrigar músicos de formação clássica a saírem
dessa formação e a improvisar. Senti-me estranho, a seguir uma partitura e, em
simultâneo, a procurar sair dela”.
“Bay
City” faz o ponto da situação no percurso musical e ideológico de uma
personalidade ímpar. “O meu trabalho é serial”, explica o seu autor, “tudo flui
de um projecto para o seguinte. Não faço parte do negócio de arranjar uma
carreira pop. Preocupo-me antes em manufacturar cultura. Sob este aspecto, o
álbum não fala de mim. É sobre o interface, sobre a membrana que separa o
indivíduo do mundo”.
No
horizonte perfila-se já um novo álbum dos Pere Ubu, a sair no final do ano, com
o título “Radioshacking America”. Entretanto, o grupo gravou um tema intitulado
“Wasteland” para o próximo projecto de Wayne Kramer. O “pai Ubu” a inquietar,
como sempre fez, a “mãe América”.
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