Y 7|MARÇO|2003
música|capa
Carlos Paredes
A GUITARRA QUE VENCEU O FADO
Se Amália foi o
fado, Paredes é a sua transcendência. Amália foi a onda, nítida e exacta.
Paredes, o mar revolto e uma ideia de liberdade que não se esgota no dizer.
Disse-o mesmo assim - com a raiva e a ternura de quem se deu e coroou a
solidão. A integral O Mundo Segundo Carlos Paredes, agora editada, é o
testemunho vivo desse caminho.
“Carlos
Paredes era de uma dimensão muito difícil de definir. O Carlos vagueava no
espaço: é um ser etéreo. Ele não estava cá, estava para além e acima de nós.
Pairava no espaço. Quando o Carlinhos aparecia para tocar, era um deus”. É
desta forma que Luiz Goes, um dos mestres do fado de Coimbra e dos primeiros
músicos a privar com a arte de Paredes, define a personalidade musical e humana
do autor de “Verdes Anos”, cuja obra integral acaba de ser compilada pela
EMI-VC em forma de caixa, com o título “O Mundo Segundo Carlos Paredes,
Integral, 1958-1993”.
O mundo segundo Carlos Paredes é um
mundo que a todos fascina mas também um mundo cuja originalidade se torna
difícil de enquadrar sob a lupa da análise mais fria. A música deste “ser
etéreo” que, como dizia Goes, parecia pairar no espaço enquanto tocava,
atinge-nos irremediavelmente na dimensão mais trágica do ser português, nesse ponto
onde a mais despojada e apaixonada das solidões se sublima amorosamente pela
Saudade.
Para além de Amália, Paredes foi,
enquanto músico, o mais alto expoente desta interioridade, tornada beleza e
arrebatamento absolutos nas cordas e na alma de uma guitarra portuguesa. Por estas
razões, pelo valor documental e pelas não razões, de ordem emocional, que cada
um descobrirá dentro de si, “O Mundo Segundo Carlos Paredes” é, desde já, no
capítulo das reedições, o acontecimento editorial do ano.
Apresentado sob a forma de livro
forrado interiormente com 37 páginas explicativas, incluindo um texto de
apresentação de Ruy Vieira Nery, compõe-se de oito CDs organizados por ordem
cronológica, abrangendo a totalidade do material gravado por Paredes, disperso
por EPs e álbuns lançados entre 1958 e 1993. 35 anos de carreira ao longo dos
quais Paredes deixou vincada a sua arte, parca em quantidade (a sua obra é
escassa, comparada por exemplo, com o acervo legado por Amália), mas absolutamente
imbuída de uma intensidade inigualável na música deste século.
nascer do dia
“Despertar”, título do CD de abertura, é composto por 26
temas, dos quais os primeiros quatro, os mais antigos gravados pelo guitarrista,
correspondem ao EP “Fado de Coimbra”, do Dr. Augusto Camacho, excluindo-se obviamente
as colaborações prévias de Paredes com o seu pai, Artur Paredes.
Descobre-se nesta introdução a
nostalgia e o típico “rubato” coimbrões que marcariam, sem o esgotar, o estilo
do guitarrista, vislumbrando-se desde logo sinais do seu virtuosismo. Entre os
temas 5 e 8 deparamo-nos, cara a cara, com o génio musical presente no EP “Carlos
Paredes”, de 1962.
Os desenvolvimentos melódicos, em
forma de rapsódia, e, sobretudo, a sua exposição em termos técnicos, de
imediato entraram em conflito com os dogmas ligados ao instrumento. Hugo
Ribeiro, engenheiro de som presente em inúmeras gravações do mestre, ao ouvi-lo
pela primeira vez numa sessão em casa de Amália, comentou: “Aquilo não tinha
nada a ver com guitarra portuguesa. Ninguém tocava daquela maneira”. Não
tocava, de facto. Quanto à guitarra portuguesa, tornou-se desde esse momento um
instrumento nobre e arquétipo pelo qual todos os guitarristas das gerações
posteriores se guiariam.
Outro EP, de 1964, apresenta “Guitarradas
sob a Forma do Filme ‘Verdes Anos’”. Não era ainda o tema com o mesmo nome que
se tornaria o cálice onde vamos beber a transcendência, mas as sementes,
regadas, como no disco anterior, pela guitarra de Fernando Alvim, estavam já
preparadas para fazer florescer uma música ainda mais sofisticada. “Frustração”,
a faixa final, fere como um punhal, o derradeiro tom menor assombrando como a
revelação do destino. Noite sem véus.
“Guitarra Portuguesa” (1967)
constitui o álbum de estreia, através do qual o seu autor entrou em definitivo para
a galeria dos imortais. Todos guardamos, no ouvido, no subconsciente ou no
coração alguma destas melodias. “Dança” evidencia o lado mais enraizado na música
tradicional de Paredes, enquanto “Fantasia” e “Pantomina” ilustram as suas
ligações à música antiga, respetivamente da Renascença e da Idade Média. “Divertimento”
sintetiza, entre a euforia e o sonho, o modo de construção melódica, rítmica e
harmónica do músico. Muitas músicas numa música. Paredes e Alvim, genialmente
irmanados no mesmo delírio, formam uma orquestra subliminar, atuante nos vários
planos de escuta. “Romance Nº1” e “Romance Nº2” são harpa de luz e água.
Paredes e Alvim, guitarras em dança sagrada. Precisamente no meio do
alinhamento está “Verdes anos”. E aqui, de tão próximos e tão misteriosamente e
para sempre distantes (não é isto, também, a Saudade?) resta-nos o silêncio e a
entrega. Porque de silêncio e entrega, mas também de uma solidão exposta com
nudez quase cruel, se trata. Música em estado puro, verdadeiro “movimento
perpétuo” do qual o executante se faz puro agente mediúnico. Aquele que recebe,
dá e revela.
Alguns segredos técnicos ajudaram a
criar esta obra-prima. Recorda Hugo Ribeiro: “O Paredes não custava nada
gravar. A grande dificuldade era conseguir ouvir a guitarra através dos
altifalantes e da aparelhagem como se estivesse a um metro de distância. Eu
procurava ouvir a guitarra através do microfone do ‘ponto de vista’ dos meus
ouvidos em relação ao instrumento. Acabei por arranjar uma solução: fui vendo
onde ouvia bem a guitarra, o que era já muito longe de Paredes. E pus lá um
microfone, um outro junto de Paredes, que estava desligado; e afastava dele ao
máximo a viola do Fernando Alvim...”. Completam o “Despertar” três temas extraídos
do LP “Coimbra de Ontem e de Hoje” (1967) de Luiz Goes.
água
corrente
“Na Corrente”, CD Nº2, abre com o
tema com o mesmo nome, registado em 1969 para o documentário televisivo de
Augusto Cabrita mas publicado pela primeira vez em Cd apenas em 1996. Nesta
faixa Paredes tocou guitarra clássica improvisando em tempo real sobre as
imagens projetadas. Um Paredes diferente, abstrato, por vezes quase ausente que
desfalece para logo recuperar o fogo e o fôlego, umas vezes próximo do espírito
da bossa-nova, outras num abandono triste ou na perplexidade de quem escutando
fora de si, a si mesmo se escuta. O “mundo segundo Carlos Paredes” é Carlos
Paredes. Em seu redor: paredes de água, paredes de diamante, paredes de
cristal. Transparentes. Inquebráveis. Doze minutos e meio de vida como ela é,
ou seja, música: Movimento. Enigma. Tempo. “Na corrente” é um título perfeito.
Por isso se cai aos trambolhões
quando, sem aviso, a voz de José Carlos Ary dos Santos se faz a ouvir lendo poemas
medievais e contemporâneos, com Paredes a acompanhá-lo. O álbum chamava-se “Espiral
Op.70” (foi uma oferta de Natal da agência de publicidade Espiral, onde o poeta
era um dos criativos...) e teve edição privada em 1969. Alguns solos (já na
guitarra portuguesa) soam distantes. Ary declama “Meu amor, meu amor”, poema seu
que Amália cantaria com música de Alain Oulman.
Vem a seguir uma raridade: “Meu
País” (1970), de parceria com a cantora e atriz Cecília de Melo, então companheira
de Paredes. Seis tradicionais mais outros tantos originais do guitarrista,
sobre poemas de Manuel Alegre, Mário Gonçalves e Carlos de Oliveira. A voz faz lembrar
a de Cândida Branca Flor nos tempos folk com a Banda do Casaco. Paredes ouve-a
embevecido e dá-lhe um céu repintado da obra anterior. Mas céu, seja como
for...
“Danças”, CD Nº3, traz “Movimento
Perpétuo”, de 1971. Um clássico. Ao lado dos inéditos, o LP incluía um par de
temas compostos para a banda sonora de “Mudar de Vida”, de Paulo Rocha, com a
participação de Tiago Velez, na flauta, o que confere à música uma sonoridade
com ressonâncias “new age” na linha da música de Paul Horn. É o álbum em que a
veia improvisadora de Paredes se sedimenta num estilo reconhecível, feito de
reminiscências de frases antigas projetadas, paradoxalmente, de acordo com um
desejo de superação e descoberta constantes.
“Quando entrávamos para estúdio”,
recorda Hugo Ribeiro, “o Paredes dizia sempre que íamos fazer experiências, nunca
era para gravar. ‘Vamos ver, se calhar, talvez...’, dizia ele, e ficávamos
sempre em suspenso, com a sessão adiada para o dia seguinte. O Paredes tocava por
ali fora e no outro dia vinha ouvir. E depois dizia-me: ‘Oh Ribeiro, você tinha
razão! Aquilo ficou bem!’. Ele entusiasmava-se a tocar. Aquela força anímica
era fenomenal.
Há ainda “O fantoche” (outra melodia
entranhada nos ouvidos de todos) que sobrou destas sessões, e outras duas
versões, de fado de Coimbra que, pela sua especificidade, foram editadas
separadamente em “single”. Uma delas, “Balada de Coimbra”, com arranjo de Artur
Paredes, foi responsável por um desentendimento entre pai e filho. Consta que
Artur se terá insurgido contra o facto do filho gravar um arranjo seu sem tocar
suficientemente bem... Os restantes seis temas fazem parte de um álbum encetado
em 1973 mas apenas editado em 1996 na compilação de raridades “Na Corrente”.
Carlos Paredes reformulara entretanto alguns destes temas para inclusão em
álbuns posteriores, “Concerto em Frankfurt e “Espelho de Sons”, bem como para
uma edição exclusiva alemã, “O Oiro e o Trigo”, feita sem o consentimento da editora
Valentim de Carvalho, com quem tinha contrato, o que motivaria um corte de
relações entre ambas as partes.
o
destino nas mãos
“As Mãos” reúne material de “É
Preciso um País” (1974), com poemas e voz de Manuel Alegre, e “Que Nunca Mais”
(1975), com Adriano Correia de Oliveira. No primeiro, Carlos Paredes socorre-se
do “guitarrão”, uma guitarra portuguesa modificada que abrangia as escalas da
guitarra clássica e da guitarra portuguesa normal. A revolução de Abril ainda
fervia e os poemas de Alegre afirmavam-se em conformidade. Tempos de idealismo que
o tempo não cumpriu. Paredes, com a sua proverbial generosidade e o
empenhamento político, deu-se de corpo e alma a esta luta que também foi a sua
mas da qual outros se aproveitaram. Digamos, para abreviar, que a guitarra de
Paredes casava mal com um comício. A sua revolução era outra e foi essa que
verdadeiramente modificou a música em Portugal.
Já o encontro, em dois temas, com
Adriano Correia de Oliveira, seu “companheiro de estrada”, está mais próximo da
corrente politizada da MPP do pós-25 de Abril, com uma veia tradicional menos
dependente da mensagem e do tom panfletário veiculada pelo tom declamatório de
Alegre.
A gravação ao vivo de 1982, na Ópera
de Frankfurt, que deu origem a “Concerto em Frankfurt” fecha o alinhamento de “As
Mãos”. O concerto foi gravado sem o conhecimento de Paredes, para não o
enervar, e nele encontramos um músico em que a tristeza (o desespero?)
substituíra já a melancolia romântica e o poder de afirmação de “Guitarra Portuguesa”.
É fado, realmente fado, a escuridão que escorria então da sua guitarra. Tocava
já como se adivinhasse um desfecho trágico, numa luta titânica contra a tirania
das notas, procurando esventrá-las, magoando-as porque elas o magoavam.
Redimindo-as, afinal, num “lado de lá” que chega a ser aflitivo, nomeadamente
nos seis cantos que compõem a “suite” ”Seis Cantos Improvisados sobre a
Cidade”, ficando o lado mais lírico reservado para as “Seis Guitarras sobre uma
Fábula”.
inventar
a solidão
Outra colaboração, desta feita com
Carlos do Carmo, em “Fado moliceiro”, para o álbum “Um Homem no País” (1983),
abre o CD seguinte, genericamente intitulado “Improvisos”. Mas a “peça de
resistência” é constituída pelos dois longos “diálogos” da guitarra de Paredes
com o piano de António Victorino d’Almeida que formam “Invenções Livres”
(1986). Desse encontro, surgido como consequência do interesse manifestado por
Paredes em encontrar pontes com outras músicas, resultaram esporádicas confluências
mas, acima de tudo, a evidência de duas visões divergentes da música. Paredes
tocava voltado para dentro. Vitorino d’Almeida é um extrovertido. As cascatas
de piano afogaram a guitarra, outras vezes teimosamente tentando chamar a
atenção da guitarra para espaços comuns, procurando atrair, aproximar mas, por
fim, resignando-se à hipotética aproximação de dois monólogos em vez da
comunhão. Paredes exigia, sem querer, subserviência. Ou uma complementaridade como
aquela que lhe era oferecida por Fernando Alvim. Para o maestro tal seria
impensável. E a Paredes um só labirinto chegava.
Em “Asas” arruma-se o imprescindível
“Espelho de Sons”, revisto e aumentado na primeira transição de LP para CD.
Antologia de temas antigos retrabalhados, nela descobrimos o guitarrista na sua
melhor forma, conquistando a música o domínio de si mesma nas suas mais ínfimas
“nuances”. Paredes tornara-se senhor do seu destino enquanto músico. Sente-se
lucidez em cada frase, a visão e a sabedoria do que antes era intuição e
mediunidade. Paredes ataca as notas, já não para as fazer sangrar, mas para se
afirmar como igual. Não toca “contra” mas “com”. A tragédia, de inevitável, é
integrada num patamar de existência superior. Paredes ganhara “Asas sobre o
Mundo” (dois inéditos acrescentados ao conceito original de “Espelho de Sons”,
em edição exclusiva para a TAP) e é com elas que desce o pano sobre o sexto CD
de “O Mundo Segundo Carlos Paredes”.
A vida, segundo a segundo
É sabida a incompatibilidade de
Paredes em dialogar com outros músicos, outras músicas. Mas nem por isso os
outros músicos deixaram de tentar. Charlie Haden, nome histórico do contrabaixo
no jazz, insistiu no acasalamento, propondo a descoberta a dois de novos caminhos.
Tentativa de união que em 1990 foi editada em álbum, “Charlie Haden &
Carlos Paredes”, no qual o contrabaixista cedeu ao guitarrista o maior espaço possível
do alinhamento. Assim se inicia o CD número sete desta Integral, “Diálogos”. De
Haden, apenas o hino “Song for Che”. O resto, em temas como “Dança dos
camponeses”, “Marionetas”, “Balada de Coimbra”, “Divertimento” ou o
incontornável “Verdes anos”, saiu da pena e do transe de Paredes. Haden
remete-se a um papel discreto. A improvisação, segundo Paredes, não segue os
parâmetros do jazz. É caminho escuro, mas também cravejado de estrelas e
cometas. Diante da guitarra ergue-se um espelho. Onde se reflete o mundo, mas
só à sua imagem. Três temas finais completam estes “Diálogos”, todos gravados
na sessão realizada em 1992 no Coliseu de Lisboa com os Madredeus. Paredes interpreta
só “Mudar de vida”, acompanhando o grupo de Teresa Salgueiro e Pedro Ayres
Magalhães em “Canto de embalar” (com assinatura de Pedro Ayres e Paredes) e no
original do grupo, “O navio”.
Faltava a viagem final, a que
preenche o derradeiro CD, “Memórias”. Paredes, o músico, eternizou-se. Paredes,
o homem, fraquejava ao fundo do túnel, desamparado, as mãos presas nas garras
da doença. “Canção para Titi”, de 2000, sobrevive como testemunho pungente de
uma arte que procurou – e conseguiu – redimir o mundo da dor. Foi preciso
montar “takes”, colar frases e notas. Para erguer, no final, intacta, a estátua
de um homem simples que quando tocava guitarra se transformava em mito. Entre o
cataclismo de amor que é “Guitarra Portuguesa” e a “Valsa diabólica” que é uma
das múltiplas mágoas de “Titi”, a música de Paredes cresceu, como escreve João
Lopes no posfácio da Integral, “uma pura identidade em construção: uma música
carnal, quase animista, ao mesmo tempo que cerebral, pedagogicamente a enunciar
a sua própria ideia de liberdade (...) uma arte de não abdicar das razões da
solidão”.
Ao escutarmos e – melhor ainda,
ouvirmos – “O Mundo Segundo Carlos Paredes” sentimo-nos mais sós e menos sós. Mas
essa é a essência da Saudade. Saudade do que somos.
CARLOS PAREDES
O Mundo Segundo Carlos
Paredes. Integral, 1958 – 1993
Ed. e distri. EMI-VC
10|10
Sem comentários:
Enviar um comentário