Y 21|MARÇO|2003
música|sparks
“Lil’
Beethoven”, a mais genial das óperas bufas dos Sparks, vai ser tocada ao vivo em Lisboa, dia
26, no CCB. Escandaleira em perspetiva.
Uma noite na ópera
A pergunta é: pode a pop ser arte e
entretenimento ao mesmo tempo? Ou, dito de outra maneira, exercício perene de
criatividade tanto como objeto de consumo e de prazer imediato? Para o grupo
americano Sparks, 33 anos no ativo, a resposta é de uma simplicidade
desarmante: a pop pode e deve ser ao mesmo tempo uma provocação, uma rutura com
o gosto dominante, uma invenção e um pátio de recreio.
Depois de nos anos 70 terem sido cómoda e
apressadamente arrumados no pesiché barroco do glam rock, prosseguindo pelos 80
com aproximações bizarras à pop eletrónica e à dance music nascida do disco,
segundo as profecias do robô das pistas de dança de discoteca, Giorgio Moroder,
e pelos 90 com uma insistência em produções contra a corrente, a banda dos irmãos
Russell e Ron Mael, respetivamente responsáveis pela música e pelas letras do
grupo que viu nascer a luz do dia em 1970 na Califórnia do Sul, acaba de
espantar o mundo com a obra maior da sua carreira: o álbum “Lil’ Beethoven”,
premiado com a pontuação máxima pelo Y e aclamado pela crítica no resto do
mundo. É o disco que vêm apresentar a Lisboa, CCB, dia 26, Às 21h. Escandaleira
em perspetiva.
“Lil’ Beethoven” amplia o que nos clássicos
álbuns dos anos 70, “Kimono My House”, “Propaganda” e “Indiscreet”, causaram um
misto de repulsa, paixão e admiração, consoante a disponibilidade de cada um
para aceitar os excessos, mas também as inovações estilísticas constantes que o
grupo cunhou neste três discos. Para os irmãos Mael a pop, ontem como hoje, é
um circo romano onde as feras e as convenções se digladiam. “Lil’ Beethoven”
vai um pouco mais longe. A desmesura e o lado operático de algumas vocalizações
continuam presentes mas o que mais distingue este objeto com conta, peso e
medida (ainda que de acordo com escalas não oficiais) é a espantosa capacidade
de gerar a cada segundo melodias viciantes e de as colorir com uma produção
simultaneamente ultramoderna e enfarpelada com a peruca e o fato de fantasia de
Luís XV, enquanto outras vozes não se coíbem de convocar, na comparação,
monstros sagrados como os Beatles e os Beach Boys.
Mas “Lil’ Beethoven”, a par do verniz de
classicismo que enforma temas como “The rhythm thief”, opereta a deitar a
língua de fora às modas atuais que derrama o crude do sarcasmo nas areias hedónicas
de Ibiza, dispõe as melodias em blocos sonoros que se distribuem pela música
minimal e o rock & roll, a canção suburbana e o puro abstracionismo eletrónico.
As letras de Russell Mael reduzem-se, por seu lado, a “slogans” repetidos até à
exaustão até, num súbito golpe de rins, revelarem novos e inesperados ângulos
poéticos. Russell ri-se do efeito, para alguns exasperante, provocado por esta
tática e explica que se trata tão-só de uma forma de fazer tropeçar os
auditores, empurrando-os para um lado da história somente para no momento
seguinte os fazer cair no outro, iludindo num instante o que era aceite como
certo nos versos anteriores.
Surpreendente é que nenhuma destas
operações soa pretensiosa, antes convida a assobiar as melodias e a bater o pé
no compasso de ritmos insidiosos. Particular em que “My baby’s taking me home”
– Steve Reich intoxicado e aos soluços a escrever cartas de amor à namorada tão
ridículas como as de Fernando Pessoa mas capazes de pôr uma pessoa a chorar,
inclusive de riso – se revela absolutamente imbatível. Russell e Ron Mael são
os Irmãos Marx na ópera mas, ao contrário dos iconoclastas da comédia americana
dos anos 30, não destroem os cenários. Até porque, vendo bem as coisas, a sua
música é toda ela um imenso cenário, gigantesco painel de ilusões.
génios da propaganda. A história dos
Sparks acompanha a evolução da pop nas últimas três décadas. Recuando aos
primórdios da sua fundação torna-se fácil perceber qual a escola primária onde
os irmãos aprenderam a conjugar melodia, energia e excentricidade, ao tomarem
como professores os The Kinks, os Pink Floyd de Syd Barrett e os
norte-americanos de “psychadelic garage”, The Seeds. Ligações com o
psicadelismo que, na sequência de um primeiro álbum produzido por Todd Rundgren
(um dos génios ignorados da pop mais hollywoodesca e esquizofrénica feita na
América, autor de trabalhos inesquecíveis como “A Wizard, a True Star” e
“Initiation”) se mantiveram até ao segundo álbum, “A Woofer in Tweeter’s
Clothing” que tinha a participação de James Lowe, dos Electric Prunes.
Em 1974 e 1975, os Sparks assinaram os três
álbuns que ficaram como imagem de marca, os atrás citados “Kimono My House” (do
qual foi retirado o hit “This town ain’t big enough for both of us”),
“Propaganda” e “Indiscreet”, este último já em plena fase de associação do
grupo ao exibicionismo do “glam rock”, com produção de Tony Visconti, que já
trabalhara com Marc Bolan e David Bowie. Mas “Indiscreet” é muito mais que
trejeitos e androginia. Sob as camadas cerradas de “make up” agita-se um magma
de melodias e contramelodias, hinos e aberrações, cânticos e onomatopeias que
contrariam a noção de espetáculo gratuito do “glam rock”.
O
final dos anos 70 passa com “Introducing Sparks”, de 1977, e enquanto o punk
fazia os seus estragos os Sparks recebiam encómios e eram comparados a um
cruzamento dos Beach Boys com Randy Newman. Nova viragem nos anos 80. A
tecnologia eletrónica apontava as baterias às discotecas e às bolas de luzes. O
disco sound fazia a sua entrada triunfante, assumindo-se por sua vez como uma
provocação kitsch e “middle class” ao niilismo do punk. Impressionados com a
reviravolta provocada por “I feel love”, o hit-pimba de Donna Summer que alguns
erigem como o maior golpe de génio do produtor Giorgio Moroder (espécie de Clemente
do electropop em oposição ao distanciamento erudito dos Kraftwerk), os Sparks
enveredam pelo “synth pop” em “Number One in Heaven”, fechando a década com
“Terminal Jive”.
Nos anos 80 e 90 andaram um pouco perdidos.
Passaram de moda e a ser encarados como múmias transvertidas de um género
decadente. Mesmo assim ainda houve quem notasse as profundas dissidências e
contravenções à pop dominante contidas no álbum de 1986, “Music that you Can Dance
to”. Em compensação, exploraram o lado mais cinematográfico da sua música –
algo que remontava aos anos 70 e a uma colaboração com Jacques Tati, além da
participação de uma série de vídeos inovadores – adaptando para uma versão
“music hall” a “manga” japonesa “Mai, the Psychic Girl”, conquistando deste
modo mais um fã, o realizador Tim Burton.
Em 1993, os escoceses Finitribe (há
admiradores dos Sparks espalhados pelas áreas mais insuspeitas, como os Sonic
Youth) convidaram o grupo para a sua editora, daí resultando o single “National
Crime Awareness Week”, cuja vocalização, em tom declamado, sobre fundo eletrónico,
refletia a admiração de Ton Mael pelos rappers Public Enemy. O álbum de 1994,
“Gratuitous Sax and Senseless Violins” (por esta altura já toda a gente deve
ter reparado no tom de farsa da maior parte dos títulos…) alertou ainda alguns
ouvidos mas a impressão geral era a de que os Sparks estavam deslocados na pop,
prolongando a existência de dinossáurios através de sucessivas mutações que
poucos reconheciam como obedecendo afinal à lei inexorável da evolução das
espécies. Ainda que em 1998, “Plagiarism” fosse uma auto-homenagem (re)composta
com base em velhos êxitos que contou com as colaborações dos Erasure, Jimmy
Somerville e Faith No More. O 18º e penúltimo álbum, “Balls” e o DVD “Live in
London” prepararam o terreno onde haveria de cair a bomba.
“Lil’ Beethoven” sintetiza tudo o que de
excitante, decadente, pomposo, inspirado, pirotécnico e genuinamente original
contém a música dos Sparks. Que é a única maneira que Ron e Russell Mael
conhecem de a fazer. E a única maneira que temos para a ouvir. Maior espetáculo
do mundo, o circo dos Sparks está montado na sala de espelhos do Palácio de
Versalhes.
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