Y 21|MARÇO|2003
música|sparks
Chamaram
nos anos 70 “glam” a uma música e a uma atitude que misturavam pompa, teatro e
uma enorme dose de exagero. Teve génios e farsantes. Os Sparks atuam no circo
do lado.
Estrelas de zero a dez
“Lil’ Beethoven” e, em geral, toda a
discografia prévia dos Sparks inscreve-se numa noção da pop enquanto espetáculo
de teatro de revista ou, em casos desesperados, de circo, isto é, palco de
exageros, proezas técnicas, maneirismos em doses mais ou menos razoáveis de
ridículo, que remonta aos anos 50 e 60 e a personagens bizarras em roupão e de
olhos esbugalhados como Liberace, Screaming Lord Sutch e Arthur Brown.
Periodicamente
a música popular é assaltada por esta vontade de transgressão que, ao invés de
quebrar regras estabelecidas, prefere insuflá-las com o supérfluo e tirar-lhes
de cima a responsabilidade de pretender mudar o mundo. Com trono no “musichall”,
na ópera, nos cenários de Hollywood ou até como máscara para disfarçar dramas e
tragédias pessoais, a pop e o rock travestiram-se, no início dos anos 70, de
tecnorock, “pomp rock”, “ópera rock”, acabando por alcançar o reconhecimento e sedimentar-se
como moda através do movimento a que se convencionou chamar ”glam”.
A
verdade é que o “glam” misturou no mesmo saco maricagem e sacanagem, palhaços e
travestis, impostores mas também uma mão cheia de génios, melodias-larilas da
treta com pop que genuinamente chupava na teta de vacas sagradas da
canção-sem-falhas como os Beatles, Beach Boys e The Kinks.
Condição
essencial do “glamrocker”: ser uma estrela e estar presente nos tops. Ganhava
quem calçasse botas com tacões mais altos ou conseguisse trajar mais luzes e
plástico. Claro que farsantes como Gary
Glitter, Suzi Quatro, Mud, Slade ou Sweet
deixaram, entre 1970 e 1975, pouco espaço nas “charts”. Tinham em comum serem
tão exibicionistas como maus músicos. Mas “exibicionismo” era mesmo a palavra
chave mesmo para aqueles que, como Marc
Bolan (ex-hippie convertido), David
Bowie ou Roxy Music camuflavam
sob as camadas espessas de maquilhagem os germes de uma música verdadeiramente
provocatória e inovadora.
É
que, se os básicos atrás mencionados tinham da história da pop uma ideia
semelhante à que uma dona de casa tem de um catálogo de “shampôs” ou
detergentes, os veteranos e os verdadeiros músicos tinham outras ambições e o
exagero revestia-se neles de um barroquismo e de uma ânsia de espetacularidade
que não se compadecia com os míseros três minutos de uma simples canção saloia,
muito menos com os traques vocais dos seus intérpretes. Artistas como David
Bowie, Brian Eno ou Bryan Ferry, eleitos estrelas do “glam”
por força das circunstâncias, possuíam outro ”background” e uma cultura apurada
no jazz, na música erudita e no psicadelismo.
Consideremos
dois álbuns como Roxy Music e The Rise and Fall of Ziggy Stardust and
the Spiders from Mars, ambos de 1972, respetivamente dos Roxy Music e David
Bowie. Em ambos encontramos a pose e as pinturas de guerra do “glam” mas a direção
apontada é o futuro. Ziggy, o rapaz que veio de Marte para salvar o rock &
roll, era o romântico-suicida, o adolescente iluminado para quem a guitarra elétrica
era um descarregador de orgasmos. Tudo soa artificial e redundante neste disco.
No entanto sem ele o “punk” e os seus protagonistas não teriam talvez a ousadia
de levantar a crista. O mesmo se pode dizer dos Roxy Music, de Bryan Ferry, que
se fazia passar por Elvis (ele próprio pioneiro do glam?) e de Brian Eno, um
intelectual que em palco se vestia com plumas de um pavão enquanto arrancava de
um sintetizador VCS3 alguns dos sons maios alienígenas que o rock conheceu.
Mas
se a pose se moldava na perfeição aos cânones das estrelas “glam”, a música
passava ao lado do simplismo, mais ou menos amaneirado, dos “charttoppers” para
consumo imediato. A provocação e o teatro dos Roxy Music não se deixavam
agarrar. Jazz, minimalismo, música de variedades, cabaré, ambientalismo, música
concreta e uma noção sofisticada de colagem projetavam no imaginário dos anos
70 um filme com a mesma complexidade do rock progressivo, então em plena fase ascensional,
mas imbuído de um espírito totalmente diferente que serviria de motivo
principalmente aos anos 80 e à degenerescência do “glam”, mas em versão
futurística, dos “novos românticos” de discoteca, Visage, Classix Nouveau, Spandau Ballet, Duran Duran e quejandos. Here Come the Warm Jets (1973), que
assinala a estreia a solo de Brian Eno, apesar da capa “glam” revela um
inspirado escritor de canções e uma canção, “Baby’s on fire”, que faz parte da
galeria de hinos imortais do rock & roll.
Quanto
a Bowie, decerto não desconheceria a importância de um seu antepassado direto
chamado Ray Davies, dos The Kinks, que lhe terá ensinado a
coser a melodia dolente, uma “britishness” vagamente doentia e, como em “Arthur
or the Decine and Fall of the British Empire” (1969), o barroquismo de
orquestrações tão imponentes como o antigo império mas que no “glam” pacóvio não
passavam de lixo recoberto de verniz. Mesmo os The Who, ícones do rock másculo e decibélico, caíram na tentação da
teatralidade sem freio na ópera-rock Tommy
(1969), embora neste caso as personagens fossem fantoches animados por uma mente
encharcada em LSD.
No
outro lado do Atlântico, as estrelas “glam” como Alice Cooper ou os New York
Dolls prenunciavam, por seu lado, a emergência de algo mais violento que na
Inglaterra se chamaria punk e nos EUA agonizaria alguns furos ao lado na escala
do niilismo, sob a designação “no wave”. O caso Sparks radica, no entanto,
noutro antecedente, gloriosamente impresso na obra de um dos mais menosprezados
criadores do rock americano, de seu nome Todd
Rundgren, que, aliás, reservou para si a produção do primeiro álbum dos
irmãos Ron e Russell Mael.
Antigo
elemento da banda de “acid rock” The Nazz, uma mistura explosiva de droga e
misticismo empurrou-o para os limites da esquizofrenia mas também para uma obra
ímpar onde a auto-descoberta, a mitologia UFO e a alquimia se combinavam com
uma música tão genial como desvairada, nomeadamente na obra-prima A Wizard, A True Star (1973), visão irredutível
de uma mente a operar no último andar da consciência, onde o rock, a música eletrónica,
a “verve” zappiana e uma irresistível queda para a melodia perfeita (mas de uma
perfeição que não é deste mundo) se aglomeram num caleidoscópio em que tudo faz
sentido num momento para logo a seguir se desagregar no caos, como o chapitô de
um circo que subitamente implodisse.
“Lil’Beethoven”
faz parte da mesma companhia. Sentamo-nos lá dentro a ver, num misto de
excitação e piedade, a parada de “freaks” e mutações (cerne do rock & roll,
alguém ainda tem dúvidas?) e medo de que tudo não passe afinal de um monumental
embuste miraculosamente tecido por um alfaiate espertalhão. A resposta, a haver
uma, está em que o ouvido guarda ciosamente cada canção.
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