21|MARÇO|2003 Y
roteiro|discos
carlos
nuñez
peregrino
do caminho francês
CARLOS NUÑEZ
Un Galicien en Bretagne
Saint
Georges, distri. Sony Music
8|10
Quem
tinha por certo que o homem jamais passaria de um artista de circo, capaz
apenas de cometer proezas técnicas em todos os instrumentos a que deita mão, e
de um aglutinador de épicos projetos centrados em torno de uma tradição céltica
modernizada, com recheio de convidados sonantes, mas incapaz de ultrapassar os
tiques impostos pelo estrelato, pode espantar-se. “Un Galicien en Bretagne” é o
disco de Carlos Nuñez por quem os apreciadores de folk esperavam e, outros,
desesperavam. É verdade que “A Irmandade das Estrelas” ou “Os Amores Libres”
demonstravam já que o “virtuose” galego tinha todas as potencialidades para
assinar um trabalho cuja dignidade e profundidade o afastassem de uma
“comercialite” que ameaçava tornar-se crónica. “Un Galicien en Bretagne” é esse
trabalho.
Centrado na tradição da vizinha
Bretanha, conta com um naipe de convidados com nomes menos sonantes mas não
menos empenhados, na recuperação dos velhos “an dro” e outras danças e
modalidades tradicionais desta região céltica do Noroeste de França. Na
quantidade de instrumentos utilizados, Nuñez, pelo contrário, “exagerou” (gaita
galega, guimbarda, “biniou koz”, whistles, flautas, flauta medieval, ocarina, “uillean
pipes”, gaita-de-foles do séc. XIX, “aulos” grego, flautas de bisel...) ao
mesmo tempo que é visível um entusiasmo, diríamos mesmo euforia, nesta
aproximação de culturas gémeas, em parte gerada graças ao impulso de Dan Ar
Braz, outro “superstar” da nova “celtic music”. Da mesma forma que os The
Chieftains renovaram sucessivamente a sua música no encontro, entre outras, com
a “country”, a Galiza, a China e também a Bretanha, também Nuñez surge agora
como a criança deslumbrada que recuperou a chama nessa renovada assunção de
novos sentidos e travessias. Entre as diversas maravilhas estão um imparável “Tro
breizh” (Nuñez notável na flauta de bisel alto e no “biniou koz”), a impensável
“ressurreição” de Alan Stivell, que o gaiteiro galego em boa hora chamou para
tocar em “Noite pecha” (espantoso é o bretão ter aceite!...), cuja harpa
céltica e canto regressam aos bons velhos tempos de “Chemins de Terre”, e a
invasão de uma floresta viva de “ents” pela Bagad Ronsed Mor, em “Une Autre fin
de terre”, um clamor de emoções a empurrar-nos para aquela “finis terra” onde
outro mundo se abre para nos receber. “The Three pipes”, uma das peças-chave do
disco, é um jogo a três entre a gaita galega (que associa à terra), as “Highland
pipes” escocesas (conotadas com o fogo) e as “Uillean pipes” irlandesas
(elemento água, tocadas por Liam O’Flynn). Pareceria fácil destrinçar o som das
três, mas são trocadas as voltas e tudo se enovela num diálogo de cumplicidades
e ilusões tímbricas. “Saint Patrick’s na dro” fará arrepiar aqueles para quem o
celtismo tem a forma de uma espiral profundamente enrolada no ”chakra” da base
da espinha pronta a desenrolar-se. ”Ponthus et Sidoine” com adaptação de Jordi
Savall, é um diálogo entre este mestre da música antiga, na viola de gamba, e o
galego, no ”low whistle”. Gravado num mosteiro, adivinha-se o ambiente de
mistério. Mesmo o tom, levemente pimba, da vocalização feminina de Eimear
Quinn, a fazer lembrar o lado mais pop de Gabriel Yacoub, acaba por adquirir um
gosto e um sentido singulares. Conta uma peregrinação a Compostela. Esse
Caminho que, cada vez mais, urge cumprir dentro de cada um de nós. Nuñez ousou
empreendê-lo. O caminho francês, o mais sagrado que conduz à catedral. A partir
de agora será difícil perdoá-lo se voltar atrás.
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