22 MARÇO 2003
JAZZ
DISCOS
O jazz tanto pode ser um bunker de metal como
um canteiro de flores. Sei Miguel e Jacinta exemplificam, em Portugal,
estes dois extremos do jazz. A sabedoria louca de um contrasta com a felicidade
aos caracóis da outra.
Com a felicidade estampada nos ‘blues’
Jazz
além. Mas além de que lugar? Segundo as coordenadas de Sei Miguel, ir pelo jazz
é arriscar-se numa aventura interior sem retorno, de transmutação,
transcendência e transferência da personalidade para uma máscara de enigmas.
“Ra Clock” é, na forma, uma homenagem a Sun Ra, que o trompetista português
considera como avatar da música contemporânea, nomeadamente através da suite
com o mesmo título, espécie de livro de horas que ilustra o percurso musical e
espiritual do autor de “It’s after the End of the World”. Disco diluviano, no
sentido de precipitação e revelação, transporta consigo os mesmos estigmas e a
imagética mitológicos que ilustravam a obra do teclista americano, na
reapropriação de uma ancestralidade por onde passa, afinal, a decifração do
labirinto tecido em “Astérion” ou do microclima de 33 segundos intitulado
“Isobel”.
Não há madeiras, apenas metal:
trompete de bolso, trombone, guitarra, gongos, piano, percussões e água
elementar. E, em “Astérion”, uma “drone” de órgão Hammond a calcar a pedra e o
cristal. Pressente-se aqui algo carregado com a mesma energia mágica das
florestas virtuais do quarto mundo de Jon Hassell, os mesmos rituais de
utilização dos sonhos como via de acesso ao interdito. E o espectro de Miles a
espreitar nesta transmigração.
“Ra clock”, da “viagem da alma até
ao planeta Terra” até ao “caminho de regresso para as estrelas”, instala-se no
âmago desse tal “além” situado entre as cinzas do jazz e a música concreta, com
citações, pelo meio, às sonoridades siderais de Sun Ra. Um disco difícil, como
são todos os de Sei Miguel, exercício de sublimação da loucura em discurso do
método.
Nos antípodas de “Ra Clock” está o
novo e triplo álbum dos Telectu, de Jorge Lima Barreto e Vítor Rua. A dupla,
que, curiosamente, nos últimos anos cultivou processos vários de clonagem e
mimetismo de géneros musicais que iam da eletrónica lúdica à eletroacústica,
retoma em “Quartetos” a estética do “free jazz” e da livre improvisação que
marcaram os primeiros anos do coletivo.
Com Lima Barreto ao piano (incluindo
o preparado), Vítor Rua na guitarra de 18 cordas e eletrónica, e Tom Chant no
saxofone soprano, cada um dos três CD conta com um convidado de peso, na
bateria: Sunny Murray, protótipo da bateria “free”, no primeiro, Eddie Prévost,
elemento da mítica formação AMM, no segundo, Gerry Hemingway, “avant-gardista”
e “sideman” de Anthony Braxton e Marilyn Crispell, entre outros, no terceiro.
Nada de novo nem de particularmente
excitante acontece nesta ressurreição do espírito libertário dos anos 60, um
“tour de force” que, para além de mostrar Lima Barreto em arroubos de lirismo
pianístico (no intervalo dos omnipresentes “clusters”), tem como principais
focos de interesse as conversas travadas entre o saxofone de Chant e as
percussões livres de Murray, Prévost e Hemingway. Chant que, no disco 3, chora
encostado ao piano, com Hemingway a desmultiplicar-se nos efeitos percussivos,
naquele que será um dos momentos mais conseguidos de “Quartetos”.
Mas o “free” era uma guerra. A luta
pela liberdade em nome de uma causa. É difícil descortinar nestes “Quartetos”
mais do que cicloturismo ao redor do parque dos clichés em que certa música
improvisada é fértil. No jazz grande, o gesto vale enquanto manifestação ou
manifesto de uma necessidade ou motivação profunda. “Quartetos” é grande na
luta contra o tempo, esperando que o milagre aconteça.
Comparada com as de Sei Miguel e dos
Telectu, a música de Jacinta é um refresco. A nova “coqueluche” do canto
jazzístico português, senhora de uma voz grave e com razoável controlo de
modulações, presta no seu álbum de estreia — impressa na subsidiária nacional
do prestigiado selo Blue Note — homenagem à
rainha
dos “blues”, Bessie Smith.
“A Tribute to Bessie Smith”, com
produção de Laurent Filipe, mostra uma voz empenhada em revitalizar e recriar com
sucesso (“Outro segredo de Jacinta: ser intérprete, logo autora”, escreve José
Duarte nas notas de apresentação) o “jazz” na sua costela mais emotiva — com um
ou outro sopro “lounge”, uma corrida pelo rhythm’n’blues e a assunção dos
“blues”, mesmo, numa balada tão tocante como “Baby won’t you please come home”.
Conta com notáveis participações instrumentais, nomeadamente de Mário Santos,
nos saxofones e clarinete baixo, Greg Moore, no trombone, e de um Rodrigo Gonçalves
capaz de percorrer ao piano uma gama larga de subtilezas e contrastes.
A “A Tribute to Bessie Smith” só
faltará o drama que apenas a vida concede ou retira a cada um. Mas como desejar
um fado e um fardo assim a quem, como Jacinta, coloriu desta maneira o jazz feito
em Portugal, com a felicidade do seu sorriso e uma alma aos caracóis?
De volta ao jazz mais urbano
depara-se-nos “Fast Living”, com assinatura do guitarrista Pedro Madaleno (também
nos sintetizadores), em quarteto com Ruben Alves (piano e teclados), Yuri
Daniel (baixo acústico e elétrico) e Dejan Terzic (bateria). Não será por aqui que se encontrarão motivos
que permitam descortinar novos sons e novas terras para o jazz, mas o que o
guitarrista e os seus companheiros fazem fazem-no bem. Trata-se de “jazz rock”,
inspirado nos mestres americanos como Weather Report ou Return to Forever, mas
também na abordagem mais “snob” e progressiva da corrente inglesa de Canterbury
personificada por grupos como os Soft Machine, Hatfield and the North ou
National Health (temas como “Alien visitor” ou “What intelligent thing?” são
bem ilustrativos desta tendência).
Já em “Spirit of the world” e “Late
night in Hamburg” o estilo guitarrístico de Madaleno lembra o do holandês Jan
Akkerman, dos Focus, enquanto “Different places to go” denota a influência de
John Scofield. Mesmo não estando isento da “comercialite” fácil, que é pecado
em que amiúde incorre o “jazz rock”, “Fast Living” pertence àquela categoria de
discos que não magoa nem maltrata o jazz, mais preocupado em distrair e
provocar boas vibrações do que em deitar as garras de fora.
Sei Miguel
Ra Clock
Ed. e distri. Headlights
8 | 10
Telectu
Quartetos
3xCD Clean Feed, distri.
Trem Azul
6 | 10
Jacinta
A Tribute to Bessie Smith
Blue Note, distri.
EMI-VC
7 | 10
Pedro Madaleno
Fast Living
Edição de autor
6 | 10
Sem comentários:
Enviar um comentário