16/11/2009

Bang On A Can - Music For Airports

Sons

11 de Setembro 1998
CLÁSSICA

Música para levantar voo

Bang on a Can
Music for Airports
Point Music, distri. Polygram

Está registado nas Estatísticas: “1/1” (16.39), “2/1” (8.25), “1/2” (11.36), “2/2” (9.38). Esta sequência de números, correspondente às quatro faixas e respectivas durações de “Music for Airports” tornou-se no paradigma de toda a música ambiental, cujas derivações actuais, do “chill-out” à “sombient”, passando pela “new age”, não cessam de dar razão a quem reconheceu, à época da sua composição, em 1978, a importância de uma concepção estética onde muitos não quiseram ver mais do que uma modalidade sofisticada de “muzak”, ou seja, simples música de fundo.
Brian Eno escreveu “Music for Airports” em 1978, dois anos depois da eclosão do “punk” e um ano depois da sua colaboração com David Bowie, em “Low”. É verdade que em “Low”, e em particular ao longo de todo o lado dois do disco, estão já presentes, sob uma forma mutante, as coordenadas da música ambiental. Mas “Low” era uma missa negra que torcia a Kozmisch/industrial music da escola alemã de Düsseldorf (Neu!, Kraftwerk) até a transformar num espectro apocalíptico. O que traía uma das regras essenciais da “Ambient music”, de nunca, em momento algum, se impor à atenção do ouvinte. A posterior colaboração entre Eno e Bowie, “Heroes”, acentua, aliás, o pagamento desta dívida, ao incluir uma faixa, “V-2 Schneider”, que é uma homenagem a um dos elementos dos Kraftwerk, Florian Schneider.
“Music for Airports” pode ainda reivindicar como antepassados directos outros dois momentos na obra do seu compositor: “No Pussyfootin’” e “Evening Star”, frutos da colaboração de Eno com o guitarrista Robert Fripp, respectivamente de 1973 e 1975, e “Discreet Music”, trabalho a solo do ex-Roxy Music, igualmente de 1975, qualquer deles percursores da actual corrente da chamada “systems music”. Mas ainda aqui o lado abstracto confundia-se com o conceito de aleatoriedade, faltando, tanto na combinação das “Frippertronics” da guitarra do ex-King Crimson com as fitas magnéticas e “loops” de Eno, como sistema de ciclos fechados de “input” perpétuo entre gravadores de “Discreet Music”, o factor humanista que é determinante em “Music for Airports”.
Claro que as premissas estéticas de uma música sem princípio nem fim onde os sons gravados se harmonizavam com os ruídos circundantes, constituindo uma unidade de movimento musical que, idealmente, deveria ser perpétuo, estavam já enunciadas em “Discreet Music” que, por sua vez, não passava de uma extensão, caucionada pelo passado pop do músico, do conjunto de doutrinas veiculadas nos anos 60 pelo papa do minimalismo La Monte Young, no seu “Teatro de Música Eterna”. Quanto ao lado não-intrusivo, ou decorativo, da “Ambiente music”, recorde-se que, já no início do século, Erik Satie preconizava que as suas “Gymnopédies” fossem escutadas ao mesmo tempo que se comia uma refeição, de maneira a que as notas musicais se misturassem com o barulho dos garfos e das facas.
“Music for Airports” era, contudo, um objecto “arty”, como os ingleses dizem, envolvido numa embalagem e num conceito minimalistas e num certo ar de mistério cabalístico. O álbum constituiu o primeiro de quatro volumes da série “Ambient” (no prolongamento da anterior série “negra” da colecção Obscure), juntamente com os posteriores “The Plateaux of Mirror”, de Harold Budd com Eno, “Day of Radiance”, de Laraaji, e, de novo, Brian Eno, com “On Land”, álbum que se pode considerar como complemento telúrico da atmosfera rarefeita de “Music for Airports” (Eno sairia para fora da estratosfera, atingindo a imponderabilidade do Cosmos, em “Apollo: Atmospheres & Soundtracks”, outro dos monumentos da música ambiental).
Para a estatística fica ainda a nota de “1/1” ter sido composto de parceria com Robert Wyatt e com o engenheiro de som, Rhett Davies. Na produção de “2/2” encontra-se o nome de Conny Plank, o alemão sem o qual o “krautrock” nunca teria existido.
Vinte anos depois da edição original de “Music for Airports” dá-se o golpe de teatro. De peça de música que parecia irredutível a qualquer processo de escrita e interpretação convencionais, “Music for Airports” passa a fazer parte do reportório “clássico” (ou contemporâneo, como lhe queiram chamar) erudito, através da sua apropriação pelos Bang on a Can, grupo cuja designação trai a formação académica dos seus elementos, “all-stars”, como se auto-intitulam, do circuito norte-americano da música contemporânea. A Maya Beiser, (violoncelo), Robert Black (baixo), Lisa Moore (piano e teclados), Steven Schick (percussão), Mark Stewart (não, não é esse em que alguns estarão a pensar, dos Mafia..., guitarra eléctrica) e Evan Ziporyn (clarinete e baixo clarinete) deparou-se a tarefa de fazer a transposição de uma obra aberta, na aparência flutuante, para uma combinação e arquitectura instrumentais mais ricas, sem cair na armadilha do compasso. Dessa transcrição para a pauta do ensemble foram responsáveis Ziporyn, Julia Wolfe, David Lang e Michael Gordon. Este último garante que Eno, ao contrário da aparente liberdade de que as notas em suspensão da sua “Music for Airports” parecem gozar, procedeu a um meticuloso trabalho de montagem, trocando a ordem das diversas secções. Além disso, para evitar qualquer tipo de cristalização, recorreram a um truque: em cada 40 segundos surge nos auscultadores dos executantes um sinal sonoro que funciona como detonador para o início de um novo ciclo de notas.
“Music for Airports”, na sua nova versão, já foi apresentada mais de vinte vezes ao vivo em diversos locais, entre os quais, o aeroporto de Stansted, perto de Londres, um dos preferidos de Brian Eno. A reacção de Eno ao trabalho dos Bang on a Can revela um misto de apreço e de modéstia: “O meu disco soa como uma maqueta do vosso!”. Eno distingue na nova versão uma maior componente emocional e compara as duas leituras a um conto de Jorge Luís Borges, na qual um escritor, Pierre Ménard, reescreve na íntegra o “D. Quixote” de Cervantes, sendo as duas obras absolutamente iguais na forma e, contudo, absolutamente distintas nos seus respectivos contextos.
O que “Music for Airports”, dos Bang on a Can, faz, em relação a “Music for Airports” de Brian Eno, é pôr em relevo a composição, contrapondo a noção de tecido à da célula, o tom forte à tonalidade esbatida, a pluralidade de timbres às “drones” de sintetizador, cânticos celestiais e pingos de piano original.
Os Bang on a Can não escondem a sua admiração por Brian Eno. Em “Music for Airports” encontraram, segundo dizem, uma abordagem inédita à questão: “Até onde é que a música pode ir?”. Obviamente, a resposta é: ao céu. A diferença está em que os Bang on a Can levaram o título demasiado à letra e a sua “Music for Airports” nunca chega verdadeiramente a descolar. É que, ao contrário do que julgaram, Brian Eno não levantou voo de avião.

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