16/11/2009

Quatro pistas para uma identidade [Amélia Muge]

Sons

11 de Setembro 1998

Amélia Muge responde “Taco a Taco” a recusa de três anos

Quatro pistas para uma identidade

“Taco a Taco” é o terceiro álbum de originais de Amélia Muge. Editado com três anos de atraso, porque antes não foi considerado “suficientemente interessante para o mercado”, é nele que a cantora se descobre e desdobra vocalmente através dos sintetizadores para chegar a uma nova forma de irreverência.

“Taco a Taco” permitiu a Amélia Muge avançar mais uma etapa no seu percurso de autodescoberta e de pesquisa de novas formas de intervenção estética. Mais do que politicamente correcto, o álbum deixa ao ouvinte completa liberdade de interpretação. Um jogo de escondidas com a modernidade que passa pela interacção com a tecnologia para chegar à descoberta de uma nova identidade musical.
PÚBLICO – Que diferenças existem, ao nível da lógica e dos processos de criação, entre “Taco a Taco” e os seus dois álbuns anteriores, “Múgica” e “Todos os Dias”?
AMÉLIA MUGE – À medida que fui avançando para este trabalho – e talvez muito marcada pela morte de uma pessoa a quem eu admirava especialmente, o Mário Viegas, em particular por um dos seus últimos trabalhos, “Europa Não, Portugal Nunca” – questionei-me sobre o que se poderá entender como politicamente correcto no sentido de uma maior liberdade musical. Todos os modelos, por muito bons que sejam, com o tempo acabam por caducar. Não na sua natureza, mas na sua eficácia.
P. – Refere-se à transição de um modelo essencialmente ético para um modelo estético?
R. – Se calhar a passagem de uma ética para uma outra ética diferente... Ainda tomando como referência, ao nível da intervenção, o Mário Viegas, ele tinha uma lucidez e uma capacidade de crítica social que, inclusive, passava pela música. Era capaz de pegar em coisas do Zeca e dizê-las. Havia nele uma tentativa, quase trágica, desesperada, de voltar um pouco ao contrário esses valores, no sentido de ir ao encontro da necessidade das pessoas de se sentirem mais leves em relação ao seu passado e ao seu futuro. Era aí que entrava a lucidez, a inteligência e o humor, uma arma perigosa.
P. – Como definiria a linha estética de “Taco a Taco”?
R. – O principal foram cada momento, cada tema e o que se passa dentro de cada tema. Como se, de repente, aquilo que nos preocupa no nosso dia-a-dia, coisas monstruosas, como a poluição, deixassem de ser determinantes para eu trabalhar melhor. No fundo, tentei encontrar respostas novas nos próprios materiais de criação. Como se tivesse havido um corte com as coisas a que eu estava mais apegada para me voltar sobre aquilo que, de facto, estava a fazer. Senti-me completamente liberta. Esse mundo antigo de referências, sociais e políticas, era como se não estivesse presente.

Pós-moderna?

P. – Comparando com os discos anteriores, cresceu a importância dos arranjos e da produção?
R. – Digamos que houve mais espaço e mais tempo. Normalmente, a pressão para se fazer as coisas é enorme. Enquanto se decide como se faz ou não se faz, anda-se ali muito tempo sem perceber, até os próprios recursos que se tem à disposição. Neste caso, como todo o álbum foi gravado antes de haver uma editora, sobrou um espaço menos condicionante.
P. – Nota-se que o estúdio esteve mais presente do que é habitual, nos tratamentos electrónicos da voz, por exemplo...
R. – Passei daquela fase, quase elementar, de gravar em casa, directamente, a voz, um piano ou um adufe, para um estádio onde, de repente, passei do gravador normal para um gravador de quatro pistas. [N.R.: Na verdade, de oito pistas, como explicou António José Martins, produtor de “Taco a Taco”, que acompanhou de perto as gravações do disco, ainda nesta fase doméstica.] Comecei a ter vontade de perceber o que era esse mundo. A grande questão não é a do som sintetizado em si – e este disco começou por ser gravado só com sons sintetizados –, mas a forma como esse som actua sobre nós. Que novas estéticas é que essa tecnologia e esse novo som determinam. Cheguei a uma forma final em que essa tecnologia age como uma espécie de interferência no som acústico.
P. – Essa questão, da tecnologia electrónica e das suas aplicações, introduz um outro tipo de discussão mais vasta. Até que ponto é que essa interiorização, digamos assim, da tecnologia, determinou uma inflexão profunda na sua música?
R. – Já em “Múgica” essa questão me espantava. Será que havia dois caminhos paralelos, eu a puxar para um lado e o José Martins e o mundo dele, dos instrumentos electrónicos, a fugir para o outro? Quanto mais ouvia músicos como o Hector Zazou ou a Laurie Anderson fui percebendo que mesmo algumas das tecnologias que eles usam serão no futuro artefactos tradicionais velhíssimos. Descobri neste novo disco o papel que as novas tecnologias poderão ter nas músicas tradicionais ou simplesmente acústicas. Para mim representou a descoberta de mim própria como intérprete. Enquanto antes compunha umas linhas melódicas mais ou menos adaptadas ao sentido do texto, um trabalho, digamos, de registo do real, agora como que descobri em mim outras vozes, a partir da análise das vozes sintetizadas. Um efeito de microscópio, de penetrar mais fundo. Claro que se o Bobby McFerrin ou a Laurie Anderson me estivessem a ouvir fartavam-se de rir, porque eles já descobriram isto há muito tempo. Eu não. E não cheguei aqui por um desejo de ser mais “moderna”, mas pela entrada progressiva, no meu universo sonoro, que sempre foi muito acústico, do trabalho do José Martins.
P. – Uma Amélia Muge pós-moderna?
R. – Sempre fui muito reticente em relação a esses conceitos. Nunca houve, como agora, uma modernidade tão igual. A tendência é sermos modernos todos da mesma maneira. A ideia de modernidade manifestou-se sempre através dos símbolos e da forma como estes estabilizam. Dou-lhe um exemplo. O tema de abertura, “Ai, flores”. Fiz este tema durante uma campanha política. Aquela coisa de levantar o braço porque estamos nesta estação mas se calhar na estação seguinte vão ser outros a levantá-lo. O tema tinha um bocado essa carga política. E de repente, quando estava a ordenar o alinhamento do disco, reparei que alguns dos primeiros versos dos nossos cancioneiros são “as flores do verde pinho dizei-me novas do meu amigo”? Surgiu uma segunda leitura do tema a partir de uma interacção, um “taco-a-taco”, entre o que tinha escrito e essa presença longínqua, que anunciava as novidades, das cantigas de amigo. As flores adquiriram um valor simbólico. É toda uma simbologia que também está presente nas imagens da capa, que juntam desde sinais da informática a hieroglifos egípcios. Descobri neste disco a força que têm os próprios significados, independentemente das intenções prévias da escrita.
P. – Se José Afonso tivesse sido mulher, poderia perfeitamente ter assinado interpretações como as de “Inda bem que há esquimós”. É outra das facetas interessantes de “Taco a Taco”, uma correspondência com o lado mais experimental daquele compositor...
R. – Concretamente, nesse tema, trata-se de um poema do António Grabato Dias, que sempre teve pena que o Zeca não musicasse: “Isto era mesmo para o Zeca!” “Inda bem que há esquimós” está de facto muito afonsino, talvez porque o sentisse quase como uma encomenda... Cantei-o imaginando o Zeca a cantá-lo. Depois, lá está, este é um disco onde o lado mais irreverente dos artistas de quem gosto veio mais ao de cima. Existe uma falsa irreverência nos dias de hoje. Parece que basta haver meia dúzia de palavras de ordem e meia dúzia de gritos no “proscenium” e já somos todos revolucionários. Mas no que continuamos a fazer todos os dias continuamos a estar prisioneiros das convenções. Na própria liberdade de criação há limitações, para não falar de proibições... “Taco a Taco” só não saiu há três anos porque não o acharam suficientemente interessante para o mercado...
P. – Para além dos espectáculos com Jorge Palma e o grupo búlgaro Pirin Folk Ensemble, colaboração da qual sairá em breve um registo em disco, em que ponto se encontra outro dos seus projectos, um álbum baseado em romances tradicionais portugueses?
R. – O projecto “Romances” é uma encomenda da Comissão dos Descobrimentos, onde, além de mim, colaboram Sérgio Godinho, João Afonso, os Vai de Roda, Brigada Victor Jara e Gaiteiros de Lisboa. Eu participo com dois temas, acompanhada por músicos dos Gaiteiros, aquele romance da donzela guerreira e um romance da D. Olívia, recolhido na Madeira, para o qual não se conhece, sequer, qualquer versão musicada, com arranjo do José Manuel David, dos Gaiteiros.

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