30/11/2014

Uma voz tocada pela graça [Savina Yannatou]



cultura DOMINGO, 13 FEVEREIRO 2000

Savina Yannatou e Primavera en Salonico deslumbram no CCB, em Lisboa

Uma voz tocada pela graça

Sublimes. A voz e o canto de Savina Yannatou, cantora grega com alma do tamanho do Mediterrâneo. Num concerto que fez as pessoas sentirem-se, primeiro deslumbradas, depois felizes. Ficou a sensação de estarmos em presença de alguém tocado pela graça.

Nada fazia prever uma coisa assim. Os álbuns de Savina Yannatou são, sem dúvida, magníficos – “Primavera en Salonica”, “Songs of the Mediterranean” e o novo “Virgin Maries of the World” –, mostrando uma voz que facilmente se percebe ser de exceção. Mas todos aqueles que tiveram a felicidade de estar presentes, na noite de sexta-feira, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, para a escutar, na companhia do grupo Primavera en Salonico, no âmbito do Festival das Músicas e dos Portos, receberam algo mais, irrepetível: uma voz abençoada e uma música que extravasa do Mediterrâneo para a eternidade.
            Savina é uma mulher bela. Mesmo sem cantar, a sua presença irradia força, brilho, majestade. Envolta num longo vestido verde-musgo a cantora grega começou por cantar “a capella” um tema tradicional da sua Grécia natal. A partir daí, ao longo de duas horas de êxtase, teve início uma viagem pelas músicas do Mediterrâneo e dos Balcãs com passagem pelo reportório sefardita, Albânia, Itália, Israel, Bulgária, Roménia, Turquia, Andaluzia, pela música antiga, em dois temas das “Cantigas de Santa Maria”, de Afonso X, o Sábio, rei de Espanha e por um “Agnus Dei” cm origem no Congo.
            Percebeu-se, ao longo desta viagem – que para muitos terá sido iniciática… – que a voz de Savina Yannatou não se esgota num único registo. Canção a canção, foram-se abrindo portas que davam para salas com outras portas abertas para outras salas com outras portas. Acenderam-se luzes. Revelaram-se segredos.
            Uma vezes abraçando-nos numa ternura impossível, noutras mergulhando ameaçadora na escuridão de graves guturais, Savina Yannatou modulou a voz a seu bel-prazer, pondo-a em sintonia ora com o canto multifónico (houve quem procurasse desesperadamente no palco um inexistente tocador de didjeridu, não acreditando que o som pudesse vir da voz…), ora, sobretudo nas canções italianas, com o júbilo de um vibrato de uma riqueza tímbrica rara de encontrar.
            Além de ser uma extraordinária cantora de música tradicional, Savina mostrou no CCB que o seu universo não se esgota no património do passado, por mais rico que este se possa apresentar.
            Foram frequentes as vezes em que se entregou a improvisações onde o arrojo só encontrou paralelo na forma quase inacreditável como colocou a voz.
            Desceu ao inferno e subiu ao céu, fez scat de jazz, brincou com as técnicas árabes, foi criança e monstro, entrando sem cerimónias nos territórios sob a vigilância de feiticeiras como Shelley Hirsch, Joan LaBarbara, Meira Asher, Diamanda Galas e, sobretudo, Fátima Miranda. E a sua compatriota Irene Papas. E, coisa espantosa, quando se poderia pensar na dificuldade da tarefa, num esforço olímpico, aconteceu outro prodígio. Savina Yannatou mal se mexe ao cantar, o corpo repousado num qualquer yoga secreto onde apenas o rosto se ilumina ou escurece, como se o ato de cantar em uníssono com os deuses fosse a coisa mais natural do mundo.
            Diante de todas estas maravilhas torna-se quase ingrata a tarefa de escrever sobre o grupo que nos últimos anos tem acompanhado a cantora, os Primavera en Salonico – a base, o edifício sólido que permitiu a Savina voar. Michalis Signadis foi um contrabaixista transbordante de swing, Haris Lambrakis um flautista na tradição dos antigos tocadores de “aulos” gregos, Kostas Vomvolos, no saltério (na ocasição o “qanun” árabe), um oásis, e Kyryakos Gouventas, no violino, uma chama irrequieta, em comparação com os mais discretos Yannis Alexandris, na guitarra e no alaúde árabe, e Nikos Psofoyrogos, nas percussões.
            Dois “encores” e um ramo de flores premiaram a atuação de Savina Yannatou, uma das maiores vozes femininas que passou nos últimos anos por Portugal.
            No penúltimo, a cantora fechou o círculo mágico, juntando, uma a uma, as ondas do Mediterrâneo na lagoa de uma canção de embalar. Alguém sussurra que parece um sonho. É difícil não sentir assim, ao ouvir esta voz tão próxima de nós e ao ver este corpo de musgo iluminado por um único holofote. Não era preciso o holofote. Savina Yannatou tem luz própria.

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