cultura SEXTA-FEIRA,
23 JUNHO 2000
Dervish
atuaram de raiva em Santa Maria da Feira
Boa música a
más horas
O timbre, a
pureza, a força da voz de Cathy... Meu Deus, quando canta, a pequena irlandesa
transforma-se numa deusa! Em Santa Maria da Feira, a desoras e com um som
impróprio, ela e os Dervish fizeram esquecer as adversidades e levaram-nos para
o céu.
Fazendo jus à
designação da entidade organizadora do concerto que teve lugar na noite da
passada quinta-feira em Santa Maria da Feira, o festival Sete Sóis Sete Luas,
os Dervish começaram a tocar duas horas e meia depois do previsto. Assim, em
vez das 22h30, a banda irlandesa deu início à sua atuação por volta da uma da
manhã. Mais um esforço e tinham esperado até de manhãzinha pelo nascer do
sol... Problemas com o som (o costume...) provocaram o atraso.
Sara Tavares e a
sua banda foram os primeiros a sofrer com o desatino da equipa responsável pelo
som que, segundo a opinião de alguns, está mais habituada a trabalhar em
comícios políticos do que com música tradicional da Irlanda o que, convenhamos,
não é exatamante a mesma coisa... Um som que, volta e meia, pura e
simplesmente, desaparecia, ia-se abaixo, dava o berro, deixava os músicos no
palco a chuchar no dedo. Para uma música que vive da energia e da constância do
andamento "funky", pode ser fatal. Eles, apesar de tudo,
aguentaram-se bem e souberam aquecer o público.
Consumada a
primeira atuação da noite, já os ponteiros do relógio tinham ultrapassado há
muito a meia-noite, tirar os instrumentos do palco e não tirar, experimentar os
microfones, ligar e desligar cabos e amplificadores, quando os Dervish subiram
para o palco, era uma da manhã. Previa-se o pior. A assistência, saturada com a
espera, dava mostras de alguma e justificada impaciência. Quando o violinista
do grupo, Tom Morrow, testou o som do seu instrumento, logo alguém da primeira
fila lançava o comentário mortífero: "Olha um violino, agora é que vou
adormecer!".
Insensíveis ao
ambiente de contestação, os Dervish procuravam o melhor som possível. No
mínimo, "um som", fosse ele qual fosse. Lá o encontraram, por fim,
partindo, surpreendentemente e dadas as circunstâncias, para um concerto
memorável, de raça e de raiva.
O frio da noite e
as agruras da espera desapareceram como que por encanto. O septeto agarrou num
ápice a assistência com um "set" inicial de jigs arrebatador. Os
corpos agitaram-se, arrancados do torpor para as alegrias da dança. Liam Kelly,
o primeiro a solar, na flauta, mostrou que já não falta muito para igualar as
proezas de Matt Molloy, o mestre que passou pelos Planxty, The Bothy Band e The
Chieftains.
Quando a
vocalista do grupo, a bela e franzina Cathy Jordan, cantou a primeira balada da
noite, todo o sofrimento ficou para trás. Cathy está simplesmente divinal. A
pureza do timbre, a força, a interiorização, as ornamentações combinam-se num todo
sem paralelo no panorama atual da música tradicional irlandesa. A par disto, e
ao contrário das anteriores apresentações que vimos dela em Portugal, Cathy
aprendeu a tirar partido do corpo e da sua muito peculiar forma de
sensualidade, ilustrando cada canção com uma coreografia gestual de cigana
céltica. Envergando um vestido vermelho-sangue, Cathy arrebatou os olhares e os
corações.
Os outros músicos
da banda são, como se costuma dizer, "uns senhores". Sobretudo Liam
Kelly, na flauta, Tom Morrow, no violino, e um notável Shane Mitchell, no
acordeão, revelaram um virtuosismo a toda a prova. Uma coisa são os jigs e
reels da praxe tocados com competência, outra, bem diferente, para melhor, é
ouvi-los tocados por quem os sente na alma e na pele. O coração afeiçoado a
esta música sem igual no universo nota a diferença. É o swing, o feeling, a
força que vem de dentro para se aliar ao talento e à técnica.
No meio do
público, era visível a satisfação. Tornava-se difícil permanecer quieto, mesmo
aqueles para quem a simples visão de um violino é um convite à sonolência.
Mesmo esses renderam-se ao entusiasmo, à energia e à entrega dos Dervish que,
em certas alturas, pareceram fazer deste concerto uma questão de vida ou de
morte.
Com um reportório
baseado sobretudo nos álbuns "At the End of the Day" e o novo
"Midsummer's Night", os Dervish provaram em Santa Maria da Feira
porque são considerados uma das maiores bandas irlandesas da atualidade. Só foi
pena terem tocado tão pouco tempo, cerca de 50 minutos, sem
"encores", devido ao adiantado da hora. Mesmo assim, numa atitude de
extrema cortesia, pediram encarecidamente ao público para não debandar depois
da sua atuação, alertando para a qualidade do grupo que atuaria a seguir, a Ala
dos Namorados, que Cathy considerou dos melhores que alguma vez ouviu, "com
vocalizações excecionais".
O vocalista excecional,
claro, era Nuno Guerreiro, acompanhado pelo resto da Ala dos Namorados. Quando
começaram, passava das duas da manhã. Já era muito tarde para se apreciar em
pleno a música do grupo e, no recinto, apesar do pedido dos Dervish, foram
poucos os resistentes. A "vingança" da Ala dos Namorados está marcada
para Pontedera, em Itália, onde, no próximo mês, decorrerá mais uma das
extensões do festival Sete Sóis Sete Luas.
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