22/03/2017

Boa música a más horas [Dervish]

cultura SEXTA-FEIRA, 23 JUNHO 2000

Dervish atuaram de raiva em Santa Maria da Feira

Boa música a más horas

O timbre, a pureza, a força da voz de Cathy... Meu Deus, quando canta, a pequena irlandesa transforma-se numa deusa! Em Santa Maria da Feira, a desoras e com um som impróprio, ela e os Dervish fizeram esquecer as adversidades e levaram-nos para o céu.

Fazendo jus à designação da entidade organizadora do concerto que teve lugar na noite da passada quinta-feira em Santa Maria da Feira, o festival Sete Sóis Sete Luas, os Dervish começaram a tocar duas horas e meia depois do previsto. Assim, em vez das 22h30, a banda irlandesa deu início à sua atuação por volta da uma da manhã. Mais um esforço e tinham esperado até de manhãzinha pelo nascer do sol... Problemas com o som (o costume...) provocaram o atraso.
            Sara Tavares e a sua banda foram os primeiros a sofrer com o desatino da equipa responsável pelo som que, segundo a opinião de alguns, está mais habituada a trabalhar em comícios políticos do que com música tradicional da Irlanda o que, convenhamos, não é exatamante a mesma coisa... Um som que, volta e meia, pura e simplesmente, desaparecia, ia-se abaixo, dava o berro, deixava os músicos no palco a chuchar no dedo. Para uma música que vive da energia e da constância do andamento "funky", pode ser fatal. Eles, apesar de tudo, aguentaram-se bem e souberam aquecer o público.
            Consumada a primeira atuação da noite, já os ponteiros do relógio tinham ultrapassado há muito a meia-noite, tirar os instrumentos do palco e não tirar, experimentar os microfones, ligar e desligar cabos e amplificadores, quando os Dervish subiram para o palco, era uma da manhã. Previa-se o pior. A assistência, saturada com a espera, dava mostras de alguma e justificada impaciência. Quando o violinista do grupo, Tom Morrow, testou o som do seu instrumento, logo alguém da primeira fila lançava o comentário mortífero: "Olha um violino, agora é que vou adormecer!".
            Insensíveis ao ambiente de contestação, os Dervish procuravam o melhor som possível. No mínimo, "um som", fosse ele qual fosse. Lá o encontraram, por fim, partindo, surpreendentemente e dadas as circunstâncias, para um concerto memorável, de raça e de raiva.
            O frio da noite e as agruras da espera desapareceram como que por encanto. O septeto agarrou num ápice a assistência com um "set" inicial de jigs arrebatador. Os corpos agitaram-se, arrancados do torpor para as alegrias da dança. Liam Kelly, o primeiro a solar, na flauta, mostrou que já não falta muito para igualar as proezas de Matt Molloy, o mestre que passou pelos Planxty, The Bothy Band e The Chieftains.
            Quando a vocalista do grupo, a bela e franzina Cathy Jordan, cantou a primeira balada da noite, todo o sofrimento ficou para trás. Cathy está simplesmente divinal. A pureza do timbre, a força, a interiorização, as ornamentações combinam-se num todo sem paralelo no panorama atual da música tradicional irlandesa. A par disto, e ao contrário das anteriores apresentações que vimos dela em Portugal, Cathy aprendeu a tirar partido do corpo e da sua muito peculiar forma de sensualidade, ilustrando cada canção com uma coreografia gestual de cigana céltica. Envergando um vestido vermelho-sangue, Cathy arrebatou os olhares e os corações.
            Os outros músicos da banda são, como se costuma dizer, "uns senhores". Sobretudo Liam Kelly, na flauta, Tom Morrow, no violino, e um notável Shane Mitchell, no acordeão, revelaram um virtuosismo a toda a prova. Uma coisa são os jigs e reels da praxe tocados com competência, outra, bem diferente, para melhor, é ouvi-los tocados por quem os sente na alma e na pele. O coração afeiçoado a esta música sem igual no universo nota a diferença. É o swing, o feeling, a força que vem de dentro para se aliar ao talento e à técnica.
            No meio do público, era visível a satisfação. Tornava-se difícil permanecer quieto, mesmo aqueles para quem a simples visão de um violino é um convite à sonolência. Mesmo esses renderam-se ao entusiasmo, à energia e à entrega dos Dervish que, em certas alturas, pareceram fazer deste concerto uma questão de vida ou de morte.
            Com um reportório baseado sobretudo nos álbuns "At the End of the Day" e o novo "Midsummer's Night", os Dervish provaram em Santa Maria da Feira porque são considerados uma das maiores bandas irlandesas da atualidade. Só foi pena terem tocado tão pouco tempo, cerca de 50 minutos, sem "encores", devido ao adiantado da hora. Mesmo assim, numa atitude de extrema cortesia, pediram encarecidamente ao público para não debandar depois da sua atuação, alertando para a qualidade do grupo que atuaria a seguir, a Ala dos Namorados, que Cathy considerou dos melhores que alguma vez ouviu, "com vocalizações excecionais".
            O vocalista excecional, claro, era Nuno Guerreiro, acompanhado pelo resto da Ala dos Namorados. Quando começaram, passava das duas da manhã. Já era muito tarde para se apreciar em pleno a música do grupo e, no recinto, apesar do pedido dos Dervish, foram poucos os resistentes. A "vingança" da Ala dos Namorados está marcada para Pontedera, em Itália, onde, no próximo mês, decorrerá mais uma das extensões do festival Sete Sóis Sete Luas.

Sem comentários: