03/04/2017

A voz pendurada no estendal [Fátima Miranda]

cultura TERÇA-FEIRA 12 SETEMBRO 2000

Fátima Miranda amanhã no Rivoli do Porto

A voz pendurada no estendal

Fátima Miranda transformou o palco do CCB num estendal de roupa branca sobre o qual passearam fantasmas, fantasias e sombras de um mundo alucinado. Já não há facas atravessadas na cabeça mas a cabeça da cantora espanhola continua trespassada pela loucura. Agora encenada em "ArteSonado", o seu mais recente golpe de génio.

O que mais impressiona e surpreende em Fátima Miranda é a forma como se expõe sem limites aos olhares do público. E como de cada vez parte para uma viagem recheada de perigos sem a garantia de regresso. O que aconteceu na noite de domingo no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, para uma sala quase cheia, e voltará a acontecer amanhã no Teatro Rivoli, do Porto, foi o espetáculo/ritual condensado do nascimento, vida e morte de uma mulher que por companhia tem apenas a sua própria arte.
Primeiro o escuro uterino. A noite. Fátima surge em cena banhada em luz negra para cantar através de um tubo de plástico fluorescente que faz girar sobre a cabeça. É "Llamada!", chamada em chama, o tema que abre o seu mais recente álbum, "ArteSonado", a "arte que soa", entre outros significados mais esotéricos, e é impossível não pensar nos mesmos movimentos circulares feitos por alguns feiticeiros no chamamento dos deuses.
A partir deste momento, a voz segue em direção ao infinito. Violentada, repuxada do avesso, em beijos, gritos, números de contorcionista, de bruxa, de criança, de outros entes que nascem de dentro do inconsciente aberto como uma caixa de Pandora.
O concerto-performance de Fátima Miranda que integra elementos musicais, visuais (Andreas Grainer assina o desenho de luz) e cénico-dramáticos, com base no alinhamento de "ArteSonado", é uma experiência da voz mas também uma experiência de revelação dos mecanismos da mente. Tema após tema, Fátima Miranda vai estendendo roupa branca - ela própria enverga um vestido branco - num estendal montado no palco. Já não há facas na cabeça, como havia na anterior apresentação da cantora há dois anos neste mesmo local, mas lençóis.
Lençóis brancos que se animam com as cores de slides projetados ou que funcionam como testes projetivos para a imaginação. Em "Nila blue", os lençóis suportam o azul do mar, lençóis de água que logo se transformam em fantasmas e em janelas que dão para o outro lado. No meio da aldeia da roupa branca a voz da cantora vai operando prodígios, em contraponto consigo própria numa série de desdobramentos e diálogos com sequências pré-gravadas até à solidão final "a capella".
Fátima Miranda ascende ao sagrado para finalmente o corromper e fazer chafurdar na lama. Se toda a primeira parte de "ArteSonado" aponta para a elevação, graças ao recurso a técnicas vocais das mais diversas proveniências, já os temas finais, "RePercusiones 1: Esto es de lo que no tiene nombre" e "Asaetada" (o único que não faz parte do CD) exploram até à exaustão o lado mais lúdico, carnavalesco e sarcástico da cantora. Despedaçam-se os estereótipos femininos associados à futilidade através de uma sucessão de metamorfoses do rosto, da desmontagem dos gestos e conversações do quotidiano da mulher que lê revistas de sociedade e comunica por telemóvel. Uma delirante solução luminotécnica reduz a condição feminina à dimensão do circo.
Mas Fátima Miranda vai ainda mais longe ao entrar sem vergonha no domínio da escatologia, ligando os sons da voz aos do corpo com uma série de meneios corporais e fonéticos que culminam na explosão final (e literal...) de uma performance de aerofagia que pôs meio CCB de cara à banda.
Por fim, pousada no chão como uma ave exausta, Fátima dirige-se pela primeira vez diretamente ao público, nomeia a sua equipa e volta a abrir as asas com uma vocalização feita de espiritualidade. E assim, quando tudo parecia ter entrado nos eixos de uma "coisa civilizada", eis que a cantora se diverte a confundir o funcionário do CCB que lhe traz o tradicional ramo de flores e agradece com um "muito obrigadinho". Muito obrigadinho? No CCB? Risos curtos, não se faz, é um pequeno escândalo. Mas o público aplaude de pé. Fátima sorri.

FÁTIMA MIRANDA
PORTO Grande Auditório do Teatro Rivoli, amanhã, às 21h30.
Bilhetes entre 2000$00 e 2500$00

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