17/12/2018

Pop alentejana [Adiafa]


CULTURA
DOMINGO, 26 JANEIRO 2003

POP ALENTEJANA

Beja assiste a um fenómeno inédito. Nas suas discotecas dança-se música alentejana. “As meninas da Ribeira do Sado”, dos Adiafa, é o tema que está a fazer furor.

Nunca se viu nada assim. A música alentejana saiu do monte, desceu à cidade e introduziu-se nas discotecas. O “escândalo” rebentou quando um dos temas do álbum de estreia do grupo Adiafa, de Beja, “As meninas da Ribeira do Sado”, começou a passar nas discotecas da cidade.
            Passou e pegou. Hoje torna-se difícil encontar na cidade quem não conheça o tema de cor. Dos estudantes universitários, que nos últimos anos fizeram crescer a população da  cidade, à criançada da escola que, para gáudio dos pais, tem na ponta da língua os versos e a melodia não só da versão electrificada mas também da ortodoxa, em toda a pureza do “cante”, de “As meninas da Ribeira do Sado”, que também faz parte do álbum.
            Fomos conhecer de perto a loucura do que se poderá chamar “pop à alentejana”, rótulo, de resto, também aplicável ao álbum de estreia de outro filho da cidade, Paulo Ribeiro, antigo elemento do grupo Anonimato. Há algo de excitante no ar. Correm rumores de que “As meninas da Ribeira do Sado” avançaram já para Norte e estão a agitar algumas pistas de dança de Lisboa. Rui Veloso e Vitorino expressaram já publicamente a sua admiração pelos Adiafa.
            Curiosamente ninguém na cidade se refere a “As meninas da Ribeira do Sado” por este nome mas por “Estrala a bomba”, aproveitando o início da letra: “Estrala a bomba e o foguete vai no ar”. Os músicos do grupo são reconhecidos na rua e apanham com o mesmo epíteto. “Olha os ‘Estrala a bomba’!” exclamam, apontando, velhos e novos. Os Estrala a Bomba, perdão, Adiafa, não escondem o seu contentamento, ainda algo incrédulos com o sucesso alcançado pela sua música. “Sentimo-nos felizes por, graças a nós, as pessoas darem mais atenção à música alenteja.”
            Ao almoço (afinal “adiafa” é sinónimo de “banquete”), no restaurante Os Infantes, edifício com cerca de 600 anos, antiga discoteca e antes disso sede do extinto partido político MES (Movimento da Esquerda Socialista), na lambança sem pecado proporcionada por divinais feijoada de lebre, migas com carne de porco e perdiz estufada, bem regados por um Vidigueira tinto monocasta “aragonês”, a conversa fluiu com a mesma facilidade com que à noite se dança nas discotecas “As meninas da Ribeira do Sado”.
            Cada um dos sete elementos do grupo, com idades entre os 26 e os 52 anos, acrescenta a sua parte a uma história que parece ser de fadas.
            António Santos, “Toy”, o idealista anarquista, admirador de Bakunine, para quem a liberdade dos homens é possível; Emídio Zarcos, aspeto “hippie” mas respeitável professor de Educação Física; João Santos, “o encarnado”, sócia de Mick Hucknall, dos Simply Red; José Emídio, apaixonado pelos “blues” e outras músicas (“sempre que posso, canto ‘blues’, mas por que raio é que não consigo cantar flamenco?”); Luís Espinho, incondicional do jazzrock (“um dia hei-de ouvir o Joe Zawinul ao vivo!”); Paulo Colaço, o homem da “house” e do “drum‘n’bass” que usou o programa Cubas” para fabricar em casa os beats da versão remisturada de “As meninas da Ribeira do Sado”; e Joaquim Simões, executante de fagote que passou uma noite em claro subjugado por uma partitura de Beethoven. Todos diferentes mas unidos por um sonho: levar a música alentejana cada vez mais longe e a mais pessoas.
            A discoteca UFO’s, antigo bar “underground” onde os músicos do grupo Revisão se juntavam para fazer “jam sessions” (“bom rock e bom ‘blues’”, que ainda hoje continuam a ser tocados num recanto do recinto que Carlos Lopes, gerente da casa, considera “carismático”), faz parte dos locais de diversão de Beja onde “As meninas da Ribeira do Sado” é tocada todas as noites, inclusive na versão tradicional. “A primeira vez que me pediram para tocar a música dos Adiafa achei um bocado esquisito, mas toda a gente aderiu. Até já estamos a pensar em fazer uma sessão de karaoke... as  pessoas cantam por cima”, diz Carlos Lopes.
            Ninguém se recorda muito bem da origem do nome UFO’s, embora Carlos Lopes se lembre de ouvir então falar em discos voadores. Já Emídio Zarcos acha que tem a ver com “o estado da cabeça de algumas pessoas” que frequentavam o estabelecimento. O que já bate mais certo com a semelhança entre este nome e o do mítico clube inglês UFO onde, em 1967, os Pink Floyd e os Soft Machine inventaram a pop psicadélica.
            É quinta-feira e faltam poucas horas para o UFO’s se encher de jovens universitários com a cabeça mais ou menos fora do lugar, desejosos de divertimento. Quinta é a noite de loucura de Beja. “3000 mulheres para cada homem”, segundo avaliação, pouco científica, dos Adiafa. “Estrala a bomba” tornou-se parte integrante dessa diversão.
            A Biblioteca Municipal José Saramago, considerada modelar e uma das melhores do país, entrou nos hábitos da população mais jovem da cidade. Aberta até às onze da noite, com um espaço infantil, café e ambiente informal, além de revistas e livros, permite levar CD para casa. O dos Adiafa “está sempre fora”.
            Sentados às mesas do café, os jovens voltam as cabeças para os sete Adiafa enquanto estes antecipam a folia que daí a poucas horas se instalará um pouco por todos os locais noturnos da cidade. Cristina tem 25 anos e estuda na Universidade Moderna. Investigação Social Aplicada. Vem todos os dias assistir às aulas. As discotecas Caras e Lanterna Azul contam-se entre as suas eleitas. Para dançar “As meninas da Ribeira do Sado”. “Já o fiz muitas vezes, aqui e noutros locais do Sul”. Lídia, 22 anos, a estudar no mesmo curso, já dançou a “remix” em Reguengos de Monsaraz, de onde é natural. Com a mesma idade, Ângela veio do Montijo para estudar “Animação Sócio-Cultural”. O tema dos Adiafa é dos que mais a animam. “Vi-os no outro dia num programa da televisão e achei curioso ter como base uma recolha do cancioneiro popular, uma coisa que estava esquecida.”
            A partir de agora deixou de haver razões para que a música alentejana continue esquecida. Os Adiafa tiraram-na do beco do “cante” e da viola campaniça, criando a partir da tradição novos modelos. Está em curso a invasão da pop alentejana.



Vitorino e companhia

A música do Alentejo, em parte pelas suas especificidades, próprias de uma tradição que tem mais a ver com o Mediterrâneo (o canto corso, por exemplo) e o espólio polifónico medieval do que com as heranças etnográficas de todo o território situado a Norte do Tejo, em parte pelo ostracismo político a que durante décadas foi votado, conservou durante largos anos o estatuto de bolsa marginal. A sua ligação à música urbana, processo agora encetado pelos Adiafa ou por Paulo Ribeiro, tem, no entanto, antecedentes. Deixando de lado o espólio discográfico tradicional fixado nas recolhas de Giacometti, na “Viola Campaniça”, organizado por José Alberto Sardinha ou grupos corais como os das Camponesas de Castro Verde, Camponeses de Pias ou os Ganhões, também de Castro Verde, o selo alentejano está bem marcado na família Salomé, de Vitorino e Janita, ainda que num registo que começou por estar conotado com uma atitude revolucionária que era timbre da primeira geração de músicos da chamada Música Popular Portuguesa. Álbuns de Vitorino como “Semear Salsa ao Reguinho” (1975), “Os Malteses” (1977), “Não há Terra...” (1979), “Romances” (1980) e “Flor de la Mar” (1983), são exemplares dessa conjunção entre folclore, dignidade e ideologia. Após um período mais literário e “lisboeta” encetado com “Leitaria Garrett” (1984), realça-se o recente “Alentejanas e Amorosas”, de 2001, que o autor define como recuperação de um “romantismo mediterrânico e peninsular”. Janita Salomé, numa perspetiva mais “world music” e assumidamente arabizante, assinou trabalhos como “Melro” (1980), o clássico “A Cantar ao Sol” (1983), “Lavrar em teu Peito” (1985) e, numa perspetiva mais abrangente e fusionista, “Raiano” (1994) e o excelente e recentemente premiado “Vozes do Sul” (2001). Ele e Vitorino, mais o irmão Carlos e Filipa Pais (autora de “L’Amar”, 1994, com o delicioso e alentejano “Vox omnes”), encetaram a aventura, tão curta como cintilante, dos Lua Extravagante.



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