25/01/2022

O canto da sobrevivência [Egberto Gismonti]

 

cultura SEXTA-FEIRA, 4 MAIO 1990

 

“Dança dos Escravos” é o mais recente álbum gravado por Egberto Gismonti

 

O canto da sobrevivência

 

Egberto Gismonti dança e avança pelos sons como os exploradores desbravando os medos do sertão. Danças de academia, do interior das cabeças ou dos escravos presos só por fora são outros tantos movimentos, do corpo e do espírito, fundidos no caldeirão caótico da música e cultura brasileiras. Egberto demanda a quintessência primordial.

O seu trabalho é o de alquimista.

 


“Dança dos Escravos” é o mais recente álbum gravado para a editora alemã ECM. “A música dos escravos brasileiros expressa-se através de formas variadas. Para além de canto de sobrevivência, constitui também um modo de libertação, uma fora de comunicação com o sagrado”. A escolha da guitarra, único instrumento utilizado no disco, prende-se a uma atitude muito especial de “ver” e ouvir os sons. “Já gravei discos com toda a espécie de combinações instrumentais. A guitarra é, por oposição ao aristrocático piano, mais romântica, ‘cantadora’ e, no caso do Brasil, mais africana, daí a escolha. Procuro ainda desenvolver uma linguagem guitarrística introduzida há trinta anos atrás por Baden Powell, vulgarmente designada por ‘Afro Samba’”. Para o efeito, Egberto utiliza guitarras que vão até às de 14 cordas. “O número de cordas é diretamente proporcional ao número de vindas à Europa. Para a próxima o número de cordas aumentará ainda mais!...”

 

Trocas

 

            A discografia de Gismondi estende-se a 45 álbuns, bem contados, desde a música para crianças, “delírio de alguns editores, que a etiquetaram como tal”, teatro, antigas colaborações com nomes da MPB ou, mais recentemente, com Charlie Haden ou Jan Garbarek, até inúmeros projetos a solo, dos quais só uma pequena parte chega à Europa, aquela que Manfred Eicher, patrão da ECM, tem vindo cuidadosamente a registar. “A ECM proporcionou-me um tipo de música que eu antes nunca tinha experimentado. Até 77/78, altura em que comecei a gravar para a editora, como solista. Até então trabalhara sobretudo como arranjador e orquestrador. Em “Dança das Cabeças”, primeiro da série alemã, descobri em mim próprio uma nova maneira de traduzir a música do Brasil. Em “Sanfona” utilizei um grupo de músicos brasileiros e uma aproximação, digamos que mais clássica, das origens. Ao mesmo tempo comecei a gravar discos no Brasil, como “Alma”, próximos do conceito estético ECM. Houve uma inversão, uma troca. Toda a minha música é uma constante troca, de técnicas musicais que mutuamente se influenciam, de culturas, de diferentes maneiras de sentir.”

            Egberto Gismonti assimilou processos e ensinamentos que vão desde Villa-Lobos, ou a cultura dos índios Xingu, entre os quais viveu durante alguns anos, à literatura e música ocidentais contemporâneas.

            Acerca de Heitor Villa-Lobos, Egberto desenvolve um curioso raciocínio: “Villa-Lobos significa quantidade e não qualidade. Nós brasileiros só atingiremos a qualidade através da quatidade. À partida não temos nenhuma forma estabelecida. No Brasil coexistem tribos desconhecidas como a dos Xingu a par de problemas com centrais nucleares. É o caos apocalíptico das origens e do fim. Vale tudo. A minha música reflete isto mesmo, aproveito tudo, retendo o essencial e deitando fora o que não presta. Sempre procurei dar um caráter sintético a tudo o que penso e faço. Creio que o consegui nalguns casos, sempre a partir da quantidade, do maior número possível de misturas”.

            O método utilizado se em parte é intuitivo (“O que eu sei é deixar impregnar-me pelos sons. Não tenho a menor capacidade de organicidade”), não dispensa, todavia, o rigor da escrita direta no computador ou uma perspetivação intelectual e cultural de todo o trabalho.

            Essa auto-consciência e faculdade de distanciação deve-a, segundo afirma, ao que aprendeu entre os Xingus, “saber falar, executar e saber escutar. O momento fundamental desta aprendizagem consistiu precisamente em saber dizer e escutar o silêncio”, mas também aos ensinamentos recebidos na infância. “O meu pai é libanês e desde cedo habituei-me a escutar os sons orientais. A minha mãe é italiana e fez-me ouvir as árias de ópera. Ouvia as típicas ‘seresteiras” brasileiras, música de bandas, tudo”. Para Egberto Gismonti qualquer som pode ser musical (“outro dos meus mestres, Edgar, chefe de banda, disse-me coisas como ‘bata numa mesa, sopre numa garrafa, isso é música também’”), perspetiva compartilhada com Hermeto Pascoal, seu companheiro de aventuras em muitas ocasiões.

 

Música absoluta

 

            Como Hermeto, também o autor de “Corações Futuristas” utiliza a arte como uma forma de contestação não panfletária, mas partindo do pressuposto estético de que a originalidade, por ambos naturalmente cultivada, é, pela sua diferença, pelo criar de uma realidade oposta à estabelecida, uma forma de contestação e afirmação de liberdade. Liberdade que, em última instância se confunde já com uma experiência religiosa, de ligação a um nível superior, transcendente, de existência. “Em ‘Dança dos Escravos’ existe uma ligação íntima com formas de religiosidade tradicionais como o espiritismo, o ‘Candomblé’... Tenho como grande objetivo na minha vida a ligação a algo superior, que consigo sentir mas não compreender”.

            Quem já teve oportunidade de ver Gismonti atuar ao vivo, agarrado à guitarra, um pouco à maneira do nosso Carlos Paredes, perdido e totalmente imerso nessa superior forma de comunicação que é a música, decerto compreenderá o sentido de tal liberdade. “Tocar é o momento em que o intérprete, o instrumento e a música passam a ser um todo tocado por alguma coisa que não consigo definir. Gravo os meus discos num estúdio em casa, pra conseguir atingir esse estado de total recetividade”.

            Recetividade que também não tem faltado por parte do público português, às aventuras e viagens musicais deste peregrino do Absoluto. “O meu grande projeto futuro é um trabalho global baseado nas sistemáticas recolhas e estudo do folclore brasileiro levados a cabo nos anos 20 pelo musicólogo Mário de Andrade, em que utilizarei o atual grupo mais uma orquestra sinfónica com perto de cem elementos”. A obra, com futuro discográfico ainda incerto, será apresentada em Novembro próximo e já tem título: “Melodias Registadas Por Meios Não-Mecânicos”. Apoteose grandiosa de um percurso exemplar.

 

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