cultura QUARTA-FEIRA, 4 ABRIL 1990
Perfil
Fred Frith: guitarra toca baixinho
Faça-se justiça. Fred Frith é uma figura tão ou
mais importante que John Zorn. Na passagem dos Naked City por Lisboa os
holofotes incidiram sobretudo no saxofonista maluco. Não que Frith se
importasse muito, mas é sempre bom repor a verdade dos factos.
Na conferência de
imprensa realizada algumas horas antes do concerto dos Naked City, num bar lá
para os lados do Cais do Sodré, Fred Frith fez as despesas da conversa. Mesmo quando
as perguntas eram dirigidas a Zorn, este, numa atitude de muito respeitinho,
remetia-as imediatamente para o companheiro, como quem diz: “Ele é que sabe, é
ele quem lê os livros”.
Durante o concerto foi engraçado
verificar o contraste de atitudes e posturas em palco dos diversos músicos.
Wayne Horvitz, compenetrado e sem tempo para carregar nos botões do
sintetizador, Joey Baron, rindo como um pateta alegre, manifestava a grande
alegria que sentia por tocar ao lado dos seus ídolos. Quanto a Bill Frisell,
sisudo e deslocado, não se percebia muito bem o que estava ali a fazer. John
Zorn, em estado de constante frenesim, disparava a velocidades supersónicas as
suas micro-metragens sonoras.
Discurso do método
No meio de tudo isto, impávido e
sereno, Fred Frith, sorriso nos lábios, fazia deslizar suavemente os acordes do
seu baixo por entre os estertores dos restantes músicos. “É preciso que haja
alguém que se mantenha sereno para pôr as coisas em ordem, dizia-nos Frith, de
regresso ao hotel.
Longe vão os tempos em que o
guitarrista e compositor de bandas como os Henry Cow, Art Bears ou Skeleton
Crew, se divertia a atirar objetos para cima da guitarra: “O humor está sempre
presente na minha música. Por vezes o público não se apercebe do que acontece
sobre o palco. As pessoas encaram os concertos com ideias pré-concebidas. Uma
piada ou um gesto mais teatral ajudam a descontraí-las. O difícil é mantê-las
numa constante tensão entre o relaxamento e a concentração.” Fred Frith não
gosta que o considerem músico de Jazz. Aliás, não gosta que lhe chamem coisa
nenhuma. Quando lhe perguntam se dá mais importância à composição ou à
improvisação, responde que improvisar é apenas uma maneira diferente de compôr.
“Só bastante tarde compreendi o verdadeiro sentido da improvisação. Nos tempos
dos Henry Cow, improvisava de acordo com esquemas previamente preparados.
Muitas vezes a coisa não resultava. Finalmente atingi o ponto em que conseguia
compôr música no próprio instante em que tocava.”
Música planetária
Tem em comum com John Zorn, o gosto
pela assimilação de todas as música do planeta. Mas enquanto o saxofonista
funciona em termos de análise, de separação e colagem sucessiva de peças
musicais autónomas, numa sequência alinhada segundo as regras da compressão e velocidades
máximas, Frith atua por sínteses. Em “Gravity”, por exemplo, utilizou fitas
pré-gravadas com música étnica de diversas origens, integrando-as e
trabalhando-as com os instrumentos e técnicas de estúdio. “Gravity” e o álbum
seguinte, “Speechless”, respetivamente de 80 e 81, foram apelidados por Frith
de “música de dança”. Não é para se tomar à letra, claro. Nestes discos Frith
recorre a membros de bandas europeias importantes, como os suecos Samla Mammas
Manna ou os franceses Etron Fou Leloublan. Embora residindo atualmente em Nova
Iorque, nunca perdeu o contacto com a cena continental. “A diferença
fundamental entre os músicos e bandas europeias e americanas, digamos mais
vanguardistas, é o facto dos primeiros partirem da tradição clássica, na linha
da ‘Música progressiva’ da década de setenta. Na América há uma maior
quantidade de novos músicos e ideias, permitindo talvez uma maior diversidade.
Curiosamente, poré, são cada vez mais os músicos norte-americanos e canadianos
que recorrem a estratégias idênticas às utilizadas do outro lado do Atlântico”.
De resto, há muito que Frith se relaciona com os músicos canadianos, ligados à
seminal editora “Ambiances Magnétiques”, onde pontificam os guitarristas René
Lussier e Andre Duchesne, o saxofonista e flautista Jean Derome e o
multi-instrumentista excêntrico Robert Lepage. Lussier e Derome que integram,
ao lado de Frith, o baterista Charles Hayward e a harpista Zeena Parkins, o
coletivo Keep the Dog.
Passos de perfeição
A importância e o ecletismo do músico
estão bem patentes na série de álbuns fenomenais que foi assinando, ao longo de
uma carreira iniciada com o longínquo “The Henry Cow Legend” e cuja etapa a
solo mais recente é “The Top of his Head”, gravado para o selo belga Made to
Measure. Pelo meio ficam dezenas de participações, como produtor ou músico
convidado, em discos de Brian Eno, Robert Wyatt, Golden Palominos, Residents,
Negativland, Violent Femmes ou Swans. Gravou a solo ou acompanhado inspiradas
brincadeiras como “Cheap at Half the Price” e “Live, Love, Larf and Loaf”, este
ao lado de John French, Henry Kaiser e Richard Thompson. A sua influência
estende-se praticamente a todas as áreas, desde o Rock ao Jazz ou a aventuras
menos facilmente catalogáveis. O bailado também não lhe escapou, ficando para a
posteridade o duplo “The Technology of Tears”, brilhante exercício de acoplação
de todos os géneros musicais disponíveis. “The Top of his Head”, banda sonora
de um filme de Peter Mettler, é composto de pequenas peças, bizarras e
ambientais, e uma canção escrita e interpretada pela nova estrela pop Jane
Siberry. Fred Frith prepara atualmente um trabalho de colaboração com o
baixista francês Ferdinand Richard. Enquanto John Zorn tenta deseperadamente
tocar uma versão completa da tetralogia de Wagner “O Anel dos Nibelungos”, com
a duração de três segundos, Frith prossegue placidamente o seu caminho para
além da perfeição. Quando lhe perguntei, à despedida, por que razão na
integrava a banda de super guitarristas, Les Quatre Guitaristes de L’Apocalypso-Bar,
respondeu simplesmente: “Não precisavam de mim”.
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