PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 23 JANEIRO 1991 >> Pop Rock >> LP’s
A INSOFISMÁVEL CLAREZA DO
SISTEMA “Q”
The Soul Cages
LP, MC e CD, A&M, distri. Polygram
Desta
vez parece que foi difícil. Ou, pelo menos mais difícil que em ocasiões
anteriores. É o próprio Sting quem o diz. A inspiração não vinha. Somente ao
nível das letras, cuidado, que no resto, tudo bem. Ele esforçava-se,
esforçava-se, mas não havia esforço que lhe valesse. Era sempre o vazio. Pelo
sim pelo não, enquanto se prolongava a espera angustiada, o homem dos Police
foi adiantando trabalho: alugou estúdio (em Paris), alugou músicos (Manu Katche
– bateria; Kenny Kirkland – teclados; e Dominic Miller – guitarra), alugou
produtor (Hugh Padgham).
A música começou a brotar em
grandes torrentes de criatividade. Ele eram melodias, acordes, harmonias,
introduções (musicais), codas, contrapontos, enfim, o compêndio inteiro do
“Escreva você mesmo Uma Canção”, que não paravam de jorrar da cabeça do compositor.
Mas, quanto a letras… o vazio persistia em não se deixar vencer.
Sting tentou tudo, para
alterar tão comprometedora situação: passeou, tomou banhos de mar, enfim, a
acreditar nas suas palavras, passou grande parte do tempo a caminhar ao acaso
por praias áridas, meditando sobre o destino e a inutilidade da existência. Talvez
por isso, grande parte dos temas deste álbum se relacione de algum modo com o
mar.
Colocada de lado a hipótese
de crise da meia idade, terá concluído que “não pode ser só isso”, que “é
preciso ir mais fundo, ao princípio de tudo!...”. A resposta encontrava-se
escondida algures nos meandros mais recônditos da memória. Imagens de um certo
barco… de um rio que desaguava no mar… (há algum que não desague?...). Então,
de repente, no seu espírito, fez-se luz. E fez-se o disco. Disco típico de quem
não tem nada de novo para dizer. Sting deveria ter dado ouvidos ao silêncio e
esperar um pouco mais antes de gravar. Ao invés, optou por esconder a falta de
inspiração, recorrendo à inventividade do produtor e às requintadas técnicas de
estúdio, incluindo o misterioso e revolucionário sistema Q. O sistema Q é um
sofisticado produto da nova geração áudio, que permite, utilizando qualquer
aparelhagem estereofónica convencional, reproduzir na perfeição um palco sonoro
tridimensional. Pensava-se que qualquer boa aparelhagem conseguisse tal proeza,
mas afinal não passava de uma patranha bem engendrada. Reconheça-se que o som Q
atinge de facto uma pureza e claridade excecionais. A que Sting, infelizmente
não deu, em termos musicais, a resposta adequada.
Nove temas chegam para
mostrar que o autor dos trabalhos anteriores, “The Dream of the Blue Turtle” e
“Nothing but the Sun”, está realmente em crise. Lança mão a tudo para tentar
esconder que o rei vai nu, mas em vão. Há a já citada produção (irrepreensível)
e, sobretudo, o truque atualmente na moda, da ornamentação exótica e mais ou
menos “world”, cujo mote é dado logo de entrada, com “Island of Souls”, que
julgaríamos pertencer a um qualquer disco de Stephan Micus. Para o efeito,
recrutaram-se o oboé de Paola Paparelle e a gaita-de-foles de Kathryn Tickell.
O saxofone Branford Marsalis limita-se a ser mais um enfeite que passa
despercebido. Porém, à medida que cada tema se vai desenvolvendo, é o deserto
de ideias, encoberto por nuvens de misticismo, com constantes alusões a “barcos
que singram em direção a terras de sonho”, oceanos imensos, anjos que tombam do
céu, luz, muita luz e a consequente auto-iluminação. O pior é a banalidade das
canções, quase todas baladas de tempo médio em que o cantor se limita a
despejar as palavras e a alinhavar meia dúzia de frases melódicas.
Exceções são o instrumental que abre o segundo lado, “Saint Agnes and the Burning Train”, tecido por uma guitarra acústica desenhando arabescos flamenco-arabizantes sobre um arranjo de extrema limpidez, e o tema seguinte, “The Wild, Wild Sea”, em que, por uma vez, a interpretação de Sting consegue ser convincente. De resto, assiste-se à queda do império, aparentemente sólido, edificado à custa dos anteriores álbuns, substituído pela ditadura assética do sistema Q. **

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