25/08/2025

Música da terra [Folk]

 Folk

A DISCOTECA

 

MÚSICA DA TERRA

 

Rock, pop, o estardalhaço, a rádio sempre aos guinchos, as banalidades semanais, acabam por cansar. Saturam-se os ouvidos, esgota-se a paciência e procura-se avidamente o refrigério. Vasculham-se os arquivos e de repente, coberto de poeira, encontramos o rótulo já esquecido: “Folk”.

 

Sorrimos e recordamos, nostálgicos, os anos passados. Era na passagem de uma década para a seguinte. Há vinte anos, mais ou menos. Vivia-se a época da música progressiva. Considerava-se progressiva toda a música que incluísse flautas, cítaras, Mellotron e o obrigatório “Moog synthesizer”. O rock atravessava um momento de descrédito. Na Inglaterra, um grupo de jovens a quem os ritmos urbanos não diziam grande coisa, resolveu olhar para o passado e reviver a tradição da sua terra. De fora, chamaram ao movimento “folk revival”. Fairport Convention, Steeleye Span, Trees, Tudor Lodge hesitavam entre o folclore e o rock, logo, praticavam “folk rock”. Foram aceites como mais um bando de malucos, que outro nome se podia dar a quem se preocupava com os costumes dos “velhotes”, coisas antigas, névoas e lendas ancestrais? O movimento foi moda e, como todas as modas, passou. Esgotado o tempo a que tinha direito, a corrente fluiu, subterrânea. Na nova década em que entrámos, de novo a cíclica explosão. Por cá chegam constantemente novos discos e aumenta a legião dos “maluquinhos da folk”. A Nébula foi pioneira, no capítulo das importações. Seguiram-se-lhe a VGM, a Mundo da Canção, do Porto, a cooperativa Etnia, de Caminha, e agora também a Contraverso entra na corrida, dispondo já em stock de preciosidades do catálogo “Topic”, dos mais antigos e prestigiados das Ilhas Britânicas.

 

Sons rurais

 

            Martin Carthy, conhecem-no os mais sabedores destas antiguidades musicais, dos Steeleye Span, onde cantava e tocava guitarra. Mas talvez se desconheça que gravou inúmeros álbuns a solo ou acompanhado pelo violinista, ex-líbris dos Fairport Convention, Dave Swarbrick. “Second Album”, “But Two Came by” e “Prince Heathen”, estes com a participação do homem do arco que consegue tocar em quinta velocidade com o cigarro aceso ao canto da boca, sem se atrapalhar, e “Byker Hill”, “Crown of Horn”, “Out of the Cut” e “Right of Passage”, de Carthy a solo, os dois últimos anteriormente já importados pela Nébula. A voz de entoações ligeiramente nasaladas como convém neste tipo de música e a mestria guitarrística do ex-Steeleye Span encontram na versatilidade e virtuosismo de Swarbrick o contraponto ideal na interpretação de um reportório constituído principalmente por baladas do cancioneiro rural inglês ou (em menor escala) da tradição medieval palaciana. Recente e abordando a matéria de forma original, o quinteto Brass Monkey, de que faz parte e que integra também John Kirkpatrick, utiliza instrumentos de sopro no desenvolvimento das jigas e “reels” tradicionais. Se soubessem, os colegas do jazz corariam, pela heresia do gesto, pela profanação do saxofone sagrado, nascido com o destino traçado – espelhar e cantar a alma negra através de uma música que, por direito e origem, lhe pertence.

            Kirkpatrick, especialista da anglo-concertina e do acordeão de botões, fez parte dos Albion Band e colabora desde longa data com a cantora Sue Harris, que também toca oboé e saltério. Imprescindíveis são os álbuns “Facing the Music” (só de instrumentais), “Shreds & Patches” e “Stolen Ground”, outras tantas corridas por montes e vales no tempo que medeia entre a magia do meio-dia e o piar do mocho no campanário da igreja, prenunciando a meia-noite.

 

Nos lagos

 

            Robin Dransfield, outrora metade do duo formado com o seu irmão Barry, é outro vocalista de inegáveis talentos, acrescidos aos de arranjador e intérprete. Provam-no as canções de “Tidewave”, antigas, sentidas, vibrantes nas cordas da guitarra esquecida do presente, no poder evocativo de uma sanfona trazida do reino da França. Peça indispensável na coleção de um apreciador que se preze.

            Mais ocidental, a Irlanda assombra pelo mistério de castelos perdidos no meio de escuras florestas, das rochas com histórias para contar, do mar infinito de cujo fundo emergem lendas de sereias e pescadores unidos por inconfessáveis laços. E de muitos lagos, sem “Nessies”, mas encantados por elfos, duendes e fadas, seres que a imaginação tece e por isso são reais. Os Boys of the Lough, ao lado dos Chieftains, afirmam-se como um dos mais antigos e conceituados mestres do “irish folk” e o violinista Aly Bain, um dos seus nomes lendários. “In the Tradition” e “Open Road” são a um tempo conservadores e inovadores no modo como interpretam o folclore irlandês, recorrendo exclusivamente à instrumentação tradicional e à clássica combinação violino/”tin whistle”/flauta, para criar sequências respeitadoras dos cânones, na alternância entre as danças e as baladas vocalizadas. Mais tarde entraria em cena a gaita-de-foles de Christy O’Leary, enriquecendo ainda mais o som dos Boys.

 

Tradição presente

 

            Os House Band não serão tão ortodoxos, mas talvez até por isso a sua música revela-se ainda mais excitante. Os álbuns “Pacific” e “Word of Mouth” divergem na apreciação das temáticas originais, no primeiro caso vogando na serenidade dos “airs” interpretados pelo tin whistle e pela flauta, no segundo soltando-se em extroversões instrumentais e vocais em que a gaita-de-foles e a bombarda fazem a festa. Refira-se por último “Fire in the Glen”, do trio composto por Andy Stewart, Phil Cunningham (dos Silly Wizard) e Manus Lunny, semelhante aos Planxty nas vocalizações do primeiro, despreconceituado na utilização do sintetizador e dos teclados eletrónicos apostados em construir uma música que, embora mais sofisticada, não perde de vista as origens que lhe estão na base.

            A audição de qualquer destes discos constitui uma oportunidade única para todos aqueles interessados em conhecer as diferentes vias e ramificações de um género que constantemente se renova e enriquece, apostado, pelo espírito, o sal e a pedra, na edificação do templo dos celtas, de paredes sólidas, totalmente transparentes. Como um prisma de cristal refractando a luz branca nas sete cores do arco-íris.

 

QUARTA-FEIRA, 8 AGOSTO 1990 VIDEODISCOS

Música para camaleões [David Bowie]

 

SEXTA-FEIRA, 3 AGOSTO 1990 local

 

RTP

 

Música para camaleões

 

DAVID ROBERT JONES, aliás, David Bowie, muda de personalidade como quem muda de roupa. Ziggy Stardust é a máscara mais conhecida mas devemos procurar na própria música os genes das constantes metamorfoses. Salta com a agilidade que só a distanciação permite do “glam” para a “soul”, do “rock” para as experimentações eletrónicas mais radicais. É  alienígena, o homem que veio do espaço. Só “major Tom” lhe faz frente, quando indefeso retira a maquilhagem, frente ao espelho. Adolescente, vindo das estrelas armado de guitarra elétrica, toca num bar em Marte. Inquilino da loucura. Palhaço a chorar na praia, na noite americana. Os astros são assim, mudam constantemente, não sofrem, do alto do Olimpo. De vez em quando, raramente, vem a notícia nos jornais: “Rock ‘n’ roll Suicide”. São loucos, os artistas – comentam aliviados os medianos – e correm a comprar o disco póstumo acabado de editar.

            Com David Bowie é assim, tudo a fingir – camuflagem. A visão do conjunto é possível somente através da fotografia aérea.

            A atração pela loucura ganhou-a do irmão Terry, a quem dedicou “All the Madmen”. “Bewlay Brothers”, ele o são, “Alladin Sane”, budista, de rosto raiado e corpo sem sexo. Ao outro deixem-lhe os Valium e o recetor de TV. Mas podem trocar-se os papéis, como ele gosta, e partir para o azul escuro, depois negro, das profundezas do céu. Contagem decrescente e lá vai o major para nunca mais voltar. “Space Oddity”, dele e de Kubrick.

            O duplo da carne e osso das imagens vendeu o mundo, disfarçado de mulher, vestida de noite, recostada no sofá, dama proibida na capa que teve de mudar. “Hunky Dory”, andrógino ainda, em dedicatórias surreais a Dylan, Warhol, Velvets, “Oh you Pretty Thing”, estavas demasiado à frente para te conseguirem ver de frente, apenas seguiam o teu rasto. De poeira de estrelas, “stardust”, “Starman”, sempre as estrelas e tu Ziggy sempre a olhares para o seu brilho refletido nas latejoulas do fato com que iludes as multidões. Enganaste-os a todos, até D. A. Pennebaker que pensou que era tudo a sério e fez um filme do espetáculo onde já não participavas. “Ziggy Stardust – The Motion Picture” soa a Hollywood, parece condizer, mas em ti nada condiz com o que parece. Deixemo-lo cantar “Jean (Genet) Genie” e imitar os seus iguais nas versões de “Pin Ups”: Who, Yardbirds, Pink Floyd, com Angie imitando o anjo, na pose da capa.

            O cinema sim, sempre, mas também a literatura. “1984”, de Orwell. Bowie antiutópico, violento, “Rebel Rebel”, corpo de cão maldito, “Diamond Dogs” raivosos, exigindo carne fresca e eles, os fãs, obedecem e dão-se em sacrifício, em troca do prazer. Fingiu tornar-se jovem e humano, com a alma que os amrecianos gostam, em plástico. “Young Americans”, “Plastic Soul”, finalmente a “Fame”, com ajuda de John Lennon. “Golden Years”, tempo para regressar à terra pela mão de Nicolas Roeg.

            Diz-se que quando chegou a Londres, à estação Vitória, saudou como os nazis. Ele negou e partiu para outras estações, “Station to Station” até Berlim. Esperavam-no Robert Fripp e Brian Eno. Mutante cibernético, converteu-se à fidelidade matemática da máquina, tornando-se ele próprio mecanismo na trilogia do demonismo sintético: “Low”, “Heroes” e “Lodger”, tratado na arte da despersonalização. Assassino da alma, “yassassin” da emoção piegas do mundo pequeno, super-homem de olhar azul gelado de vidro que ganhou o brilho da pantera em “Cat People” de Paul Schrader. Fera devoradora, Bowie trabalha, toca e canta com Pat Metheny, Giorgio Moroder, Lou Reed, Tina Turner, Bing Crosby. Torna-se “gigolo”, soldado inglês de quem o oficial japonês gosta e homem-elefante, como os monstros de “Scary Monsters, Super Creeps”, o mais terrível de todos é “Baal” de Bertolt Brecht. Mas também figura real entre os bonecos de “Labyrinth”. Dança na rua com Mick Jagger como um “Absolute Beginner”. E quando o rodopio acaba, pega no braço da rapariga e diz-lhe simplesmente: “Let’s Dance”, de preferência “Tonight”.

            Canal 1, às 14h50

Roy Harper - Once

 Pop

 

A SOMBRA DO GUERREIRO

 

ROY HARPER
ONCE
LP e CD, Awareness



















 

           A época da canção de intervenção atingiu o auge na década de 60. Bob Dylan foi o seu profeta e teve seguidores. Em Inglaterra, Billy Bragg não se cala e espeta o dedo em todas as feridas. Roy Harper é um senhor já de certa idade, mas nem por isso deixa de incomodar o “establishment”. “Once” é daqueles discos em que as palavras valem mais do que a música. Há uma mensagem a propagar, valores a defender, podres a denunciar.

            Segue um esquema simples, mas eficaz. O habitual neste campo de guerrilha musical: voz, guitarra a acompanhar, e os arranjos para lembrar que o artista também não descura o aspeto formal da embalagem. Roy Harper não é um cantor qualquer. O seu nome é respeitado, tem currículo. Apesar disso, e de ter já gravado qualquer coisa como vinte álbuns (entre os quais os clássicos “Folkjokeopus”, “Flat, Baroque and Bersek” e “Stormcock”, ou o mais tardio “Bullinamingvase”), afirma que se lhe torna “cada vez mais difícil reconciliar-se com o negócio”. Insistiu em que este disco não fosse gravado nem distribuído por qualquer das grandes companhias.

            Das dez canções que o integram, só três não criticam qualquer coisa. A questão que à partida se levanta é a mesma de sempre: até que ponto funciona e vale a pena uma atitude deste tipo, em que a música popular se arvora como arma, quando as pessoas o que procuram cada vez mais é a evasão. Roy Harper, idealista, acha que sim e que “por vezes é importante ser guerreiro”. Está farto de “assistir ao espetáculo da megalomania fascista” e de “respirar o mesmo ar que o dos políticos, que condenam os desprotegidos, exploram os necessitados e poluem tudo aquilo em que tocam”. Há uma fúria sincera neste disparar de acusações. Vê-se pela cara de mau que ostenta na capa.

            Coloca-se o problema de que, concorde-se ou não com as posições assumidas, se é confrontado com a evidência de que, para além das palavras, o álbum não é particularmente exaltante. Limita-se, na maioria dos temas, ao acompanhamento da guitarra e, nalguns deles, os nomes de David Gilmour e Kate Bush funcionam como chamariz.

            Os poemas são duros, claro, as palavras incisivas e agrestes. Referem-se explicitamente os nomes de Dung, Margaret, Helmut e Mikhail. Em “The Black Cloud of Islam”, o mais violento de todos, que o próprio Harper hesitou em gravar, temendo ser acusado de racista e anti-islâmico, a metáfora em que se tornou hoje a condenação de Salman Rushdie serve como ponto de partida para a denúncia radical das atrocidades cometidas no seio da sociedade dirigida pelo Ayatollah, em nome de uma divindade sanguinária.

            A acusação contra o fanatismo e a intolerância religiosa constitui, de resto, a pedra de toque do disco. Encontra o seu contraponto na homenagem, em “Berliners”, a todos aqueles que, nos últimos 50 anos, combateram em prol da construção da paz e do definitivo irradiar das guerras civis no Velho Continente. E aproveita, como já era de esperar, a deixa que agora a queda do Muro sempre proporciona, para celebrar “a demolição de todas as barreiras e a passagem pacífica dos tempos escuros para um futuro brilhante”. Não há dúvida de que o homem, além de idealista, é ingénuo. Aplauda-se, no entanto, o otimismo e o empenhamento que denota em ajudar a construir um mundo melhor. Se não fossem os discos, o que seria de nós?

 

VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 1 AGOSTO 1990

15/08/2025

Sinfonias eletrónicas [Klaus Schulze]

 Pop

A DISCOTECA

 

SINFONIAS ELETRÓNICAS

 

Chamam-lhe o papa da música eletrónica. Começou por tocar bateria num grupo de rock. Depois descobriu umas máquinas em que bastava ligar o interruptor para sair música. Acabara de inventar a “Kosmische Musik”. Ainda hoje não desistiu de ser o novo Wagner.

 


Em finais da década de 60, decorria do escaldo do “fogo” ateado pela geração da paz e do amor. Na Europa e nos Estados Unidos, os “hippies” principiavam a tirar os enfeites e a meter as violas no saco. A ingenuidade era substituída pelas grandes conceptualizações intelectuais. Era a época da música progressiva que desprezava as singelas canções pop do passado para só se satisfazer com longas “suítes” instrumentais de pelo menos vinte minutos de duração. A ambição era fazer frente aos compositores clássicos, compondo obras de grande envergadura, cheias de pompa e circunstância.

            Na Alemanha, sociedade altamente industrializada e, além disso, cujos membros são totalmente destituídos de sentido de humor, a ideia ganhou raízes, deslocando-se, contudo, a ênfase temática para um contexto mais desumanizado e recorrendo-se a meios exclusivamente eletrónicos na tentativa de criar uma música grandiosa e de ressonâncias cósmicas.

 

Berlim Planante

 

            O mote fora dado pelos Pink Floyd do período compreendido entre “Ummagumma” e “Meddle”. Tratava-se de isolar a componente abstrata e eletrónica, acentuando a sua dimensão intemporal. A nova tecnologia eletrónica dos sintetizadores Moog, ARP e VCS3 permitia materializar as fantasias emergentes, avançando com novas sonoridades que, como resposta, exigiam do músico e do auditor um novo tipo de sensibilidade.

            Em Berlim, o núcleo determinante da eclosão do movimento gravava os primeiros discos nas editoras pioneiras Ohm e Cosmic Music, logo seguidas pela Brain. Os seus heróis eram Nietzsche e os poetas e compositores do Romantismo: Holderlin, Novalis, Rilke, Schubert e principalmente Wagner. Nova oportunidade para relançar a cultura germânica, desta vez em direção ao infinito. Os seus seguidores davam pelos nomes de Popol Vuh, Cluster, Wallenstein, Ashra, Guru Guru, Grobschnitt e Neu.

            Klaus Schulze, depois de uma breve passagem pelo rock, passou a integrar duas das bandas míticas do “boom” berlinense: os Tangerine Dream, ao lado de Edgar Froese e Chris Franke, e os Ash Ra Tempel, de Manuel Gottsching. O primeiro álbum dos T. Dream chamava-se “Electronic Meditation”, título emblemático do mundo em que se movimentava a nova geração. As vibrações eletrónicas juntavam-se às mentais, ecoando em concertos realizados no interior de igrejas, numa comunhão extasiada com o universo.

 

Novo Wagner

 

            Em 1972 grava para a Brain o seu primeiro álbum a solo, “Irrlicht”, com um tema de cada lado, como de resto viria a acontecer ao longo de quase toda a sua discografia. Disco planante, naipes sintetizados preenchendo totalmente o palco sonoro. Homenagem a Franz Schubert em “Exil: Sils Maria”. “Cyborg”, duplo de 1973, enuncia os métodos e obsessões que nunca mais o abandonariam: o primado da harmonia sobre o ritmo e a melodia, esta reduzida ao desenhar de arabescos modais, quase sempre improvisados e delineados pela mão direita do intérprete. Vêm estes preciosismos técnicos a propósito das manifestas limitações de Schulze enquanto teclista convencional. A sua arte revela-se principalmente no gosto pelas combinações tímbricas e na utilização dos sintetizadores como intermediários de conceções formais essencialmente sinfónicas.

            Os álbuns a partir de “Picture Music” viriam a ser distribuídos no resto da Europa pela Virgin, na altura apostada da divulgação das novas propostas afastadas das correntes pop e rock. “Picture Music” e “Black Dance” dão a conhecer o músico num dos seus momentos menos inspirados. Com “Timewind” (1975) assina a primeira obra-prima. Álbum wagneriano, na grandiosidade e profundidade dos arranjos, no dramatismo, na abordagem totalitária da massa sonora e até nos títulos, “Bayreuth Return” e “Wahnfried 1883”, referências diretas ao grande mestre alemão. Richard Wahnfried, pseudónimo sob o qual grava esporadicamente, revela até que ponto Schulze se considera o continuador e herdeiro espiritual do autor do “Anel dos Nibelungos”.

 

O Crepúsculo dos Deuses

 

            “Moondawn” (1976) repete a fórmula do disco anterior, revelando, todavia, um maior apuro técnico na utilização do sequenciador. Como convidado especial na percussão, Harald Großkopf, dos Wallenstein, chamado sempre que eram necessários os tambores “reais”. “Mirage” é outro dos pontos altos da carreira discográfica de Schulze, o segundo lado, “Crystal Lake”, cintilação hipnótica indutora de sonhos e viagens interiores.

            Colabora no projeto “Go”, ao lado de Stomu Yamashta e Steve Winwood, iniciando-se como compositor de bandas sonoras em “Body Love”. “X”, décimo da discografia, é a sua obra-chave, cujos títulos são dedicatórias a alguns dos seus heróis: Friedrich Nietzsche, Georg Tackl, Frank Herbert, Friedmann Bach, Ludwig II da Baviera e Heinrich von Kleist. A música de Klaus Schulze eleva-se aqui ao máximo expoente, numa sinfonia a quatro movimentos, digna de ombrear com as dos seus heróis. “Dune” (1979) sonoriza os mundos irreais da Frank Herbert e “Dig it” marca a entrada no universo dos dígitos. Preocupa-se com os labirintos da personalidade e da psicanálise em “Trancefer” (1981) e no duplo “Audentity” (1983), este manifesto derradeiro de uma música entretanto esgotada na repetição de fórmulas que não souberam evoluir. “Dziekuje Poland” (gravado ao vivo na Polónia), “Angst”, “Inter-Face”, “Dreams” e os recentes “Em = Trance” e, já deste ano, “Mediterranean Pads” giram em círculos avançando para lado nenhum. Interessante a sua “Babel”, composta e tocada a meias com Andreas Gosser.

            Klaus Schulze suscita grandes ódios e incondicionais amores. Construiu uma obra única e original no campo, hoje inflacionado, da música eletrónica. Influenciou um número incontável de outros praticantes. A História decidirá qual o lugar a que tem direito no panteão dos heróis.

 

QUARTA-FEIRA, 1 AGOSTO 1990 VIDEODISCOS

A aprendizagem do silêncio [Música ambiental]

Na capa [Música ambiental]

 

A APRENDIZAGEM DO SILÊNCIO

 

Entre o silêncio e a totalidade dos sons disponíveis no universo, as permutações são infinitas. Os jovens fartaram-se de dançar e agora só querem levitar e passar para esferas mais altas. Brian Eno é que tinha razão.

 

O silêncio nasce do recolhimento, da pacificação dos sentidos e da mente. Experiência religiosa, inseparável do conceito “música ambiental”, cujo objetivo, de acordo com o sentido etimológico da palavra “religião”, é religar – o homem a si mesmo, à Natureza e ao transcendente. Ao contrário do rock que explode, dispersando, anova música implode, concentra, num movimento de “a-tensão”.

            Oficialmente, foi Brian Eno o inventor do termo e da atitude, quando, por acidente, numa ocasião em que se encontrava imobilizado num leito de hospital, reparou que certas sonoridades musicais, se escutadas a baixos níveis de volume, tendiam a harmonizar-se com os sons ambiente, criando uma holografia sonora, por vezes erradamente designada como “música de fundo”.

            Os antecedentes remontam, contudo, à escola “planante” alemã (Klaus Schulze, Tangerine Dream, Manuel Gottsching, Cluster, Deuter, Popol Vuh pegaram em baterias e sintetizadores e sequenciadores e transformaram o lado eletrónico dos Floyd em palácios majestosos onde se desenrolaram os sonhos cósmicos da geração pós-hippie), às teorias de La Monte Young firmadas no seu “Theatre of Eternal Music”, ao Zen e à música religiosa ritual (indiana, tibetana). Por outras palavras: êxtase sem “Ecstasy”.

            Parece que a Ambient House é o último grito na periódica reciclagem dos produtos lançados pela indústria e pelos “media”, visando a também cíclica manipulação do gosto das massas consumidoras. O tiro foi disparado pelos KLF, com o álbum “Chill Out”, versão “house” dos Pink Floyd de “Meddle” (na música) e “Atom Heart Mother” (na capa). De repente, surgiram por todo o lado novas bandas a tocar música ambiental, citando como heróis nomes ainda há bem pouco atirados para a lama, como os Floyd, Klaus Schulze e Eno, indiscriminadamente etiquetados com o rótulo depreciativo de “New Age”. As pessoas, diz-se, fartaram-se de dançar e querem é sopas e descanso. Nas grandes metrópoles abrem clubes em que os frequentadores em vez de dançarem, ouvem (pasme-se) apenas a música. Fala-se da Natureza, do Sol, de passarinhos e do mar.

 

A Idade de Aquário

 

            É certo que, por detrás da confusão e das operações de “marketing”, há razões cósmicas concretas. Entrámos na era de Aquário, e quer queiramos quer não, as cabecinhas começam a receber as vibrações transmitidas da grande estação emissora central, situada, quem sabe, no coração do Sol, como cantavam os Pink Floyd em “Ste the Controls for the Heart of the Sun”.

            Ninguém reparou, ocupados que estavam todos com o frenesim da dança e da “techno” qualquer coisa, que dezenas de músicos, espalhados pelo mundo, que nunca se preocuparam com as voltas do tempo e das modas, há muito vinham construindo os alicerces de que hoje os novos se servem para edificar à pressa as “novas” teorias de misticismos requentados.

 

Bons ambientes

 

            Sistematizemos então as principais correntes “ambientais”, de teor mais ou menos contemplativo e compartimentadas por editoras:

            ECM – invenção do produtor Manfred Eischer. Sons puros, cheios de reverberação e gravações impecáveis. Embora voltada para o jazz, cedeu parte do seu espaço às contemplações de Stephan Micus (que gravou um disco na catedral de Ulm, utilizando o som de pedras percutidas e o eco do templo, noutros discos servindo-se de instrumentos exóticos e de vasos afinados), Terje Rypdal (“Odyssey”, “After the Rain”) e Jan Garbarek (“Dis”, “Eventyr” – com harpas eólicas, “The Legend of the Seven Stones “).

            Celestial Harmonies – De ressonâncias clássicas eruditas. Os seus artistas aliam o rigor conceptual a uma atitude geralmente mística. O Oriente é a principal fonte inspiradora. Peter Michael Hamel (teórico e autor de obras fundamentais na exploração dos teclados num contexto religioso, como “The Voice of Silence” ou “Nada”), o argentino Roberto E. Detrée (construtor de uma “Architectura Celestis” soando a cristais vibrando no éter) e Paul Horn (que toca a sua flauta nos espaços sagrados de vários templos do globo, como em “Inside the Cathedral” ou “Inside the Taj Mahal”) são algumas das referências importantes deste catálogo.

            Recommended – Aqui se congregam as experiências mais interessantes e originais neste domínio, segundo uma corrente estética que recorre à pluralidade de fontes sonoras e tradições universais para criar sínteses inimagináveis. Os seus expoentes são Charles W. Vrtacek (“Learn to be Silent”, “When Heaven Comes to Town”), Steve Moore (“A Quiet Gathering”) e Philip Perkins (“Hall of Flowers/The Flame of Ambition”), mestres na arte da colagem e da utilização heterodoxa do “sampler”. Menção especial para a escola italiana, de certo modo já afastada do conceito “ambiental”,partindo para fusões que desembocam em territórios próximos da “world music” (“Water Messages on Desert Sand” e “Urban and Tribal Portraits”, obras geniais da dupla Roberto Musci-Giovanni Venosta), ou da música eletrónica “convencional” (Piero Milesi, Ricardo Sinigaglia). Do lado do pesadelo, os Biota destroem todas as noções e convenções, esculpindo formas distorcidas em “Vagabones & Rockabones”.

            E.G. – Alberga no seu seio o inventor do género, Brian Eno. Todos os seus discos, a partir do seminal “Discreet Music”, incluindo “Music for Films”, “On Land” e “Apollo Atmospheres & Soundtraks”, são bíblias para a nova geração de “ambientais”. Da matriz Eno, destacam-se o pianista do silêncio, Harold Budd (“The Pavillion of Dreams”, “The Plateaux of Mirror”, “Lonely Thunder”) e o exótico Laraaji e as suas mantras hipnóticas no saltério eletrificado em “Day of Radiance”. Jon Hassell reina nas suas músicas do “quarto mundo”. “The Sinking of Titanic”, de Gavin Bryars, alarga o género até às dimensões da tragédia. O trio Budd-Hassell-Bryars gravou, embora para a Sub Rosa, um dos clássicos do movimento, o vol. 2 da série Myths (“La Nouvelle Serenité”), que inclui dez minutos de gravações de sons ambientais como sinos, pássaros e cânticos religiosos.

            Referência ainda para alguns nomes sortidos: Benjamin Lew-Steven Brown (“A Propos d’un Paysage”), O Yuki Conjugate (“Into Dark Water”), Virginia Astley (“From Gardens where we Feel Secure”), Robert Rich (“Numena”), Jeff Greinke (“Timbral Planes”).

            Escolham-se os ambientes e parta-se à descoberta do admirável mundo novo.

 

VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 1 AGOSTO 1990

E não se pode exterminá-lo? [Elton John]

 local SEGUNDA-FEIRA, 29 JULHO 1990

 

RTP

 

E não se pode exterminá-lo?

 

A PERSONAGEM não prima pela discrição. A sua noção de bom-gosto é pintar o cabelo de cor-de-rosa, vestir-se de palhaço e usar óculos de enormes aros verde-alface. E (vá lá compreender-se os artistas...) quando começou a cantar e a tocar piano, Elton John (de seu verdadeiro nome Reginald Kenneth Dwight) até tinha uma certa dignidade, compondo românticas e respeitáveis canções como “Your Song”. Calcule-se que chegou a ser um estudioso dos “blues” e que tirou o nome artístico do saxofonista dos insuspeitos Soft Machine, Elton Dean. Vem de longe a sua associação com o letrista Bernie Taupin, da qual resultaram alguns bons discos. “Elton John”, “Tumbleweed Connection” e “Madman Across the Water” não chocam nem envergonham os ouvidos sensíveis. Depois é que foram elas!... O estrelato subiu-lhe à cabeça e transformou-se em atração circense. Tomou-se por um Liberace de trazer por casa e foi um ver-se-te-avias de adereços, pó-de-arroz e vestimentas espalhafatosas. Passou a tocar piano com os pés e a cantar desavergonhadamente canções cada vez mais pirosas. Passou as suas habilidades para o cinema na figura de “Pinball Wizard”, no filme “Tommy”, desse outro famoso palhaço que é Ken Russell. O título de uma das suas canções, “Too Low for Zero” aplica-se-lhe na perfeição.

 

            Canal 1, às 14h45

Não mas sim [Anderson Bruford Wakeman Howe]

 

SÁBADO, 28 JULHO 1990 local

 

RTP

 

Não mas sim

 

PARA SEREM os Yes falta Chris Squire. Foi ele quem fez birra e impediu que os outros utilizassem a designação a que moralmente têm direito. Mas legalmente o antigo baixista disse-lhes não. Assim, passaram de três para 27 letras. Anderson é Jon, o vacalista de voz angelical que se dedica a inventar mundos de fábula. “Olias of Sunhillow” conta a história de três civilizações perdidas nos confins da imaginação e de viagens por espaços distantes. Com Vangelis, cantou mitos do cinema em “The Friends of Mr. Cairo”. Wakeman é Rick, das seis mulheres de Henrique VIII, do rei Artur e da viagem ao centro da Terra. Toca teclados como se lançasse fogo de artifício. Brufford é William, Bill para os amigos. Fez parte de grandes bandas, a maior das quais os King Crimson, de Robert Fripp. De vez em quando apetece-lhe jazz. Os Earthworks são o fruto mais saboroso desse amor. Howe é Steve, o enorme guitarrista. Escutem-se os seus solos em “Relayer” e perceber-se-á porquê. Juntos gravaram um álbum que é tão bom como os melhores dos Yes. Lutam contra o tempo. Jon Anderson continua a sonhar.

            Canal 1, às 13h10