04/12/2025

Folclore, por tudo e por nada [Folk Tejo]

 

PÚBLICO TERÇA-FEIRA, 4 JUNHO 1991 >> Cultura

 

Folk Tejo

 

Folclore, por tudo e por nada

 

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Feito o balanço final do Folk Tejo, ressalta a necessidade de, para a próxima, se corrigirem os erros deste ano. Se a música, na generalidade, não foi de molde a entusiasmar, louve-se, pelo menos, o esforço de dar a conhecer à capital alguns dos nomes mais importantes da “folk” atual. Só por isso, terá valido a pena.

 

Agora que a poeira começa a assentar, importa fazer o rescaldo e tirar algumas conclusões sobre o que foi e poderá vir a ser, num futuro próximo, o Folk Tejo, iniciativa que neste ano de arranque terá incorrido em alguns equívocos e erros de cálculo que, de futuro, convirá evitar. Do papel à prática, algo falhou. Não faz sentido, por exemplo, concentrar num só dia, quatro nomes de cartaz, todos conotados com a mesma área musical, deixando para o outro uma mescla desequilibrada de estilios que só terá servido para confundir e, nalguns casos desmotivar, o potencial auditor e consumidor das chamadas “músicas tradicionais”. Se os portugueses Vai de Roda e Júlio Pereira se incluem sem dificuldade naquela categoria, já a banda do brasileiro Paulo Moura ou os americanos Moore by Four fariam melhor figura, respetivamente numa festa dos subúrbios do Rio de Janeiro e no casino do Estoril. Depois, quatro nomes por noite, é excessivo: no final da noite de domingo, estariam pouco mais de meia centena de pessoas a assistir à atuação dos Moore by Four.

Quanto à escolha do Coliseu dos Recreios, para um acontecimento deste género, também não terá sido das decisões mais acertadas. Demasiado fria para uma música que exige a proximidade e a cumplicidade do público, a “catedral”, como lhe chamam, ainda por cima não ajuda em termos acústicos, sobretudo quando, como foi o caso, não está cheia. Finalmente, o que é mais grave, ao “Folk Tejo” terá faltado um adequado enquadramento estrutural (ao contrário do que aconteceu recentemente com o 2º Festival Intercéltico), traduzido em atividades paralelas, capazes de o transformar em verdadeiro acontecimento cultural e não, como por vezes deu a desagradável impressão, numa mera jogada de oportunismo eleitoral. Uma referência final positiva para o programa, elaborado com mão de mestre pela equipa da “MC – Mundo da Canção”, que constitui o relançamento desta revista de boa memória, preparada para arrancar com novos voos.

E a música, como foi? Excelente, a dos Vai de Roda, como já vai sendo hábito, pese embora a proverbial e salutar insatisfação do seu mentor, Tentúgal, sempre em busca da impossível perfeição. Destaque para as prestações instrumentais de todos os músicos que desta feita se sobrepuseram às partes vocalizadas, prejudicadas, sobretudo a partir de “São João”, pelo som “assassino”. No final, os Vai de Roda apresentaram um tema inédito, a incluir num provável terceiro álbum (“nem que seja daqui a mais sete anos”), introduzido por uma notável improvisação de Tentúgal, na sanfona, a imitar o fraseado e a sonoridade da gaita-de-foles e concluído, de forma algo hesitante, pela voz de uma cantora convidada, pouco habituada ainda a estas andanças pelos “Coliseus”.

Júlio Pereira entrou de seguida, em força, empunhando uma espécie de mini-guitarra elétrica (uma bandolarra? Um guitarrim?) pondo de imediato a assistência a bater palmas de acompanhamento, empolgada pela alegria contagiante e pelo reconhecimento do virtuosismo do homem das cordas. Dedilhando primeiro a braguesa, depois o cavaquinho, Júlio Pereira percorreu o caminho que vai da foz, das “Janelas Verdes” até à nascença, do álbum da “guitarra pequenina”. Acompanhado por uma banda de cinco músicos (destaque para Paulo Curado, nos “saxes” e flauta), Júlio Pereira recriou, à sua maneira (quer se goste ou não dela) o folclore português, evidenciando uma frescura e uma alegria de tocar que terão surpreendido muita gente. Referência muito especial para a voz maravilhosa da Minela e para a não menos maravilhosa forma como interpretou “Senhora dos Remédios”, num dos momentos mais altos de todo o festival.

 

Bem-vindos ao cabaré

 

Paulo Moura, saxofonista e clarinetista brasileiro, responsável pela fusão do Jazz com o “chorinho” e a “gafieira” dos bailes cariocas, desiludiu. Música de cabaré, sem “punch” nem imaginação, deixou saudades de feitos passados, acentuadas ainda mais pelas desinspiradas prestações vocais da “crooner” sambista Marilu Moreno. Quando Paulo Moura tocou “Lisboa antiga”, apeteceu deitar uma moeda na caixa ds esmolas.

Aos Moore by Four competia fechar em apoteose o “Folk Tejo”. Pura ilusão. O adiantado da hora e a vulgaridade dos músicos (versão de terceira dos” Manhattan Transfer) provocou a debandada geral do público, que, no final, ficou reduzido a uma pequena legião de fanáticos, disposta a aproveitar até à última gota as contorções e a postura “Hollywoodesca” dos músicos (a saxofonista, com pinta de “streaper”, soprava um saxofone tenor mais comprido que a saia, enquanto ia atirando a perninha para trás, num arremedo de fúria “swingante”…) mas já desesperada com o “top” da vocalista loura, que teimava em não cair.

À saída, alguém do público, vindo especialmente de Bragança para assistir ao “Folk Tejo”, bradava, entusiasmado, para quem o quisesse ouvir: “Fabuloso”. Pena Jorge Sampaio não precisar dos votos bragantinos.

 

Som quase estragou a festa [Folk Tejo]

PÚBLICO SEGUNDA-FEIRA, 3 JUNHO 1991 >> Cultura

 

Folk Tejo

 

Som quase estragou a festa

 

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Lisboa iniciou as suas festas juninas ao som da música folk. O cartaz de sábado era aliciante: duas vozes femininas de chegar ao céu, três escoceses dos copos e um gaiteiro de cortar o fôlego. Na luta contra o som, péssimo, só June Tabor venceu e comoveu. Mas o público queria era dar ao pé.

 

Música folk, tradicional, étnica, nos últimos tempos, tem sido um fartote. Lisboa aderiu à onda, com o Tejo ao lado e as eleições à porta. Coliseu dos Recreios. Cerca de meia casa, composta pelos indefectíveis do género, mais os curiosos, mais aqueles que vão a todas. Os primeiros saíram com um sabor a frustração. Os curiosos aguçaram ainda mais a curiosidade. Os outros não devem ter percebido nada, até porque o som não deixava.

Um grupo nacional de zés-pereiras, gaiteiros e tocadores de bombo circulou pelas artérias junto ao recinto, antes de subir ao palco para uma atuação, no mínimo, bombástica.

Maddy Prior, voz lendária da cena folk britânica, estandarte dos Steeleye Span e atualmente mais apaixonada do que nunca pela música antiga (no seio dos Carnival Band) e pelo marido, desiludiu, sem que a culpa tivesse sido inteiramente sua. Entre dois amores, optou por trazer o marido – Rick Kemp – e cantar umas melodias que seriam certamente bonitas, se acaso fosse possível perceber alguma nota. Não há, de facto, adjetivos que cheguem para desancar um som exageradamente amplificado, empastelado, impróprio para um comício quanto mais para um concerto de música. Salavaram-se os momentos em que Maddy Prior, sozinha, sentada à beira do palco, ou acompanhada unicamente pelo piano e pelo contrabaixo, deixou perceber a voz maravilhosa que realmente tem.

 

A emoção da cerveja

 

Das terras altas da Escócia, os McCalmans, trio já veterano nestas andanças, chegaram de guitarras e latas de cerveja em punho para pôr toda a gente aos pulos, com as suas harmonias vocais emocionadas e toda a fluência que só o álcool é capaz de proporcionar. O homem da mesa de mistura, experimentador nato, desta vez apostou tudo nos agudos metálicos, testando a capacidade de resistência dos tímpanos às frequências mais elevadas. Os escoceses acabaram por perceber – no “encore” da praxe dispensaram a amplificação, cantando abraçados, eufóricos e voltando a dar um empurrãozinho publicitário à tal marca de cerveja.

Depois, chegou o momento mais alto da noite, graças à voz e postura sublimes de outra grande senhora da Folk, June Tabor. Acompanhada apenas por dois violinistas, tornou claro que a verdade do canto tradicional exige silêncio e contensão. Foi até ao fundo, contando e cantando histórias trágicas de amor e ódio, de alegria e morte. Houve quem não compreendesse e assobiasse, exigindo o que nessa altura soaria despropositado – a dança e o delírio telúrico. June Tabor só no fim soltou as pontas à rede de sortilégios – saltando e batendo palmas, como uma menina que por dentro continua a ser – não sem que antes a sala escurecesse e calasse vergada a uma arrebatadora interpretação de uma canção de Brecht. O próprio som, como por artes mágicas, melhorou.

 

Música “a metro”

 

Davy Spillane, gaiteiro de reconhecidos méritos, revelou-se mestre de duas coisas: das suas “uilleann pipes” (que maneja com a agilidade de quem não deve fazer outra coisa) e na arte de música “a metro”. O irlandês mistura tudo – os blues, o rock ‘n’ roll, a country e a música de baile. A solo, mostrou-se realmente “virtuose”, interpretando, entre outros, um tema dedicado a esse outro grande gaiteiro que é Paddy Moloney, dos Chieftains. O pior foi o resto, as “desbundas” coletivas, o tom piroso da guitarra, embevecida nos acordes de “samba pa ti” e se calhar na lembrança de convívios que decerto deve ter havido também lá pela Irlanda. Davy não quis saber de purismos e lançou-se a mil à hora, tocando as suas “pipes” como um danado. Em frente ao palco, os mais entusiastas entregaram-se, extasiados, aos prazeres da dança.

Quem não deve ter sentido prazer nenhum foi aquele jovem espancado e atirado pela escada abaixo, já perto do fim, por três “agentes da autoridade, apenas por ter pedido que o deixassem entrar. Final triste para um acontecimento que se propõe dar um ar mais saudável e civilizado à capital.

 

Toyah Willcox - Ophelia's Shadow

 

Pop Rock

 

8 MAIO 1991


TOYAH WILLCOX
Ophelia’s Shadow
LP e CD, E.G., distri. Edisom

 

Atriz, cantora e casada com Robert Fripp, Toyah passou em pouco tempo de “punk” mal amanhada a dama do “music-hall”, ou quase… O atual marido pegou-lhe na carreira e deu-lhe a volta. O pior é que, por mais voltas que lhe dê, a carreira da senhora teima em avançar devagarinho, sobretudo em termos de vendas de álbuns, já que os singles lá vão conseguindo chegar aos tops. Vai-se mudando o estilo até encontrar a receita mágica. No álbum estreia (“The Blue Meaning”) era a poesia, longas histórias de encantar adultos (o título sugere os “blues minnies” do desenho animado “Yellow Submarine”), pontuadas pelas “frippertronics” do marido. “Prostitute” procurava ser experimental e ao mesmo tempo fazer dançar. Não era mau disco. “Ophelia’s Shadow”, de ressonâncias shakespeareanas, a recordar tempos passados, opta pelo meio termo, com nítida influência da vertente discretamente equilibrada e muito “crafty guitarists” de Fripp (que co-assina dois temas) e procurando a todo o custo uma aura de mistério e sensualidade. Refira-se, a propósito, que a voz de Toyah cada vez mais se vai tornando, em todos os aspectos, uma cópia muito perfeita da de Kate Bush. Sobra-lhe em mimetismo o que lhe escasseia em originalidade. Como será a fase seguinte? **

 

Entre o brilhantismo e o bocejo [Kronos Quartet]

 

PÚBLICO TERÇA-FEIRA, 7 MAIO 1991 >> Cultura

 

Kronos Quartet

 

Entre o brilhantismo e o bocejo

 

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Os Kronos Quartet tocaram domingo no Tivoli vestidos de todas as cores, às riscas e aos quadrados. Serviram-se dos instrumentos de corda como se fossem tambores. Apanharam o comboio de Steve Reich e, no fim, quase saltaram das cadeiras, para interpretar um clássico de Jimi Hendrix. A música de câmara já não é o que era.

 

Sobre o palco do cinema Tivoli, em Lisboa, discretamente iluminado, três homens e uma mulher, de vestes garridas e pose descontraída. Dois violinos, uma viola, um violoncelo. O bastante para, mal as cordas começaram a vibrar, fazerem desaparecer num instante as ideias preconcebidas sobre como aqueles instrumentos devem soar. De resto, os Kronos Quartet fizeram aquilo que deles se esperava, ou seja, uma demonstração de diferentes abordagens à música contemporânea, filtrada pela sensibilidade muito própria dos quatro músicos e traduzida numa criteriosa e diversificada escolha de repertório.

Do programa constavam obras dos compositores africanos Dumisani Maraire e Foday Musa Suso (respetivamente “Mai Nozipo” e “Tilliboyo”), do nova-iorquino supersónico John Zorn (“The Dead Man”), do polaco Henrik Mikolaj Gorecki (“Already it is Dusk”) e do holandês Louis Andriessen (“Facing Death”).

Logo na primeira peça se viu que, para David Harrington, John Sherba, Hank Dutt e Joan Jeanrenaud, o termo “instrumentos de corda” não é um conceito linear. As respetivas caixas de ressonância pareciam ter sido construídas de propósito para servirem de tambores, suporte de complexos e delicados batuques. Desconfia-se que, em certas passagens, os músicos terão utilizado, em cada mão, mais um ou dois dedos sobresselentes. Em “Tilliboyo” (“Pôr-do-sol”) – ênfase para o rendilhado de “pizzicatos”, criadores de intricadas tapeçarias rítmicas. A escolha destas duas obras serviu pelo menos para demonstrar a importância que os Kronos Quartet dão às músicas não-ocidentais e para convencer as sensibilidades mais empedernidas da imensidade de notas clandestinas escondidas entre os meios-tons da nossa querida escala.

Com John Zorn as coisas aceleram inevitavelmente. Dividido em pequenas células autónomas, “The Dead Man” deu para tudo – serrotes com o freio nos dentes, explosões, respiração asmática, ranger de portas, ou simplesmente a vibração do ar agitado freneticamente pelos arcos dos instrumentos, foram alguns dos timbres, mais ou menos agradáveis ao ouvido, com que os Kronos Quartet presentearam uma assistência ávida de bizarrias. Mal imaginava ela que a “pior” parte estava para vir, a da música “séria”, sorumbática, de fazer descair os cantos da boca e franzir as sobrancelhas. Falemos então de coisas sérias.

“Already it is dusk”, assombrosa de intensidade dramática, mergulha nas pulsões humanas mais obscuras, progressão majestosa pelos meandros da alma em busca da luz, culminando na total suspensão temporal, num silêncio e paz tumulares acentuados pela iluminação de palco, reduzida a uma penumbra crepuscular.

Louis Andriessen compõe sempre a partir de temas grandiosos. Seja no tríptico “Il Duce”, baseado na vida do ditador italiano, no “Il Principe”, de Maquiavel, no “magnum opus”, “De Staat”, inspirado na “República” de Platão ou na ópera “Passion selon Saint Matthieu, Orpheus et George Sand”, há sempre motivos para profundas especulações metafísicas. Foi o que aconteceu na sala do Tivoli, durante “Facing Death”, já que grande parte dos presentes baixou as pálpebras, abandonado-se aos prazeres soporíficos da contemplação. A luz súbita do intervalo serviu para despertá-los do êxtase.

“Different Trains”, obra minimal-ferroviária do compositor americano Steve Reich, ocupou integralmente a segunda parte do concerto. Encomendado pela CP, por ocasião da inauguração do troço Rossio – Cais do Sodré, “Different Trains” é uma espécie de contraponto erudito da “Autobahn” (“auto-estrada”) dos germânicos Kraftwerk ou de “Station to Station” de David Bowie. As cordas juntam-se a outras pré-gravadas e a vozes aleatórias que periodicamente vão determinando as progressões melódicas dos instrumentos ao vivo, segundo um processo semelhante e radicalmente assumido por Scott Johnson na obra-prima “John Somebody”.

“4/4 Tango”, de Astor Piazzolla, cumpriu de forma brilhante o primeiro encore. Finalmente, no segundo e último, o tema por que todos esperavam – “Purple Haze”, de Jimi Hendrix. Delírio generalizado, dos músicos (“atacaram” o tema de tal forma que por pouco iam rebentando as cordas) e do público, infelizmente pouco numeroso. Aos Kronos Quartet só faltou pegarem fogo aos violinos. Bem vistas as coisas, até pegaram…

 

O quarteto da corda [Kronos Quartet]

 

PÚBLICO DOMINGO, 5 MAIO 1991 >> Cultura

 

Kronos Quartet, hoje, em Lisboa

 

O quarteto da corda

 

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Hoje à noite, no Teatro Tivoli, em Lisboa, os Kronos Quartet vão causar estragos nos hábitos auditivos mais enraizados. Que se desiluda quem estiver à espera de um quarteto de câmara convencional. O jazz, a pop e a clássica vibram nas suas cordas com a mesma intensidade. E a mesma loucura.

 

São considerados a “big thing” da atualidade, no capítulo das cordas. Eruditos, não pretendem sê-lo nem parecê-lo. Tocam (e de que maneira) instrumentos de corda, os mais vulgares: violino (dois), viola (acrescente-se “de arco”, não vão ficar confundidos os nababos) e violoncelo. Os nomes: David Harrington, John Sherba (violinistas), Hank Dutt (violista), Joan Jeanrenaud (violoncelista). “Kronos Quartet” – a designação escolhida. “Kronos”, do grego “Chronos”, que significa “tempo”. “Quartet”, acredite-se ou não, porque tem a ver com serem quatro.

Tecnicamente são perfeitos. Utilizam os instrumentos, algumas (poucas) vezes de forma convencional, mas na maior parte do tempo dedicam-se a arrancar-lhes sons que se diriam emitidos por alienígenas. O que não admira, se levarmos em consideração o repertório diversificado, constituído por obras, na maioria escritas e encomendadas pela nata dos compositores contemporâneos: Terry Riley, Steve Reich, Philip Glass, John Zorn, Jon Hassell, Ärvo Part, John Lurie, Ornette Coleman, István Márta, entre outros. Mas a lista de nomes importantes que interpretam não fica por aqui, num total de cerca de 4 mil peças que engloba trabalhos de Anton Webern, Charles Ives, Conlon Nancarrow, Bela Bartok, Astor Piazzolla, Samuel Barber, Aulis Sallinen e… Jimi Hendrix. Há planos para, num futuro próximo, trabalharem com Sting.

O seu mais recente álbum, gravado para a Elektra Nonesuch, como é costume e de bom tom nestas coisas da vanguarda, intitula-se “Black Angels” e inclui temas de Charles Ives, George Crumb, István Márta, Dmitri Shostakovich e, numa inflexão à música antiga, Thomas Tallis. O disco, tal como os anteriores, “Salome dances for Peace” (música de Terry Riley), metade de “Different Trains” (Steve Reich), uma composição (“Forbidden Fruit”) em “Spillane” de John Zorn, “Winter Was Hard”, “White Man Sleeps”, “Kronos” e a banda sonora de “Mishima” (composta por Philip Glass), está repleto de humor e de proezas virtuosísticas de espantar, já que os quatro Kronos Quartet primam em fazer da pauta papel de rascunho para escrever, e da escrita, reescrita. No último álbum, uma das seleções, “Spem in Alium”, da autoria do compositor inglês do séc. XVI, Thomas Tallis, originalmente um moteto para quarenta vozes, transmutou-se numa mistura de oito gravações do quarteto, em estúdio, de maneira a soar como um naipe orquestral de trinta e dois instrumentos. No extremo oposto, o rock – Jimi Hendrix jamais sonharia ver “Purple Haze” ser tocado por um quarteto de cordas. A música do quarteto californiano materializa os sonhos mais impensáveis.

 

Liberdade formal

 

Os Kronos Quartet sentem-se à vontade em todos os géneros musicais e permitem-se todas as liberdades. Diz um dos seus membros, David Harrington: “Se não tocasse com este grupo, provavelmente seria jardineiro. De facto, ele permite que todas as minhas fantasias se tornem realidade”.

Afirmam-se próximos do espírito do jazz. Ao vivo mais parecem, de facto, um agrupamento desse tipo, em pleno delírio de improvisação. Nos espetáculos utilizam jogos de luzes e adereços variados (uma vez trouxeram um “robot” para o palco), criando um ambiente característico de concerto rock. Há quem veja neles os Velvet Underground da moderna música de câmara. Não gostam de etiquetas e preferem que lhes chamem apenas “Kronos”, para evitar as conotações de académica respeitabilidade que a designação “String Quartet” comporta e que de todo renegam. Assumem, como principais influências, David Bowie, Charles Dickens, Isaac Asimov, Rainer Maria Rilke, os Police, Van Gogh, o jazz dos ghettos do Soweto, Beethoven e Hendrix.

No concerto de hoje à noite, vão tocar, na primeira parte, obras de Dumisani Maraire, Foday Musa Suso, John Zorn, Gorecki e Louis Andriessen e, na segunda, a totalidade de “Different Trains” de Steve Reich. Uma experiência a não perder.

 

03/12/2025

Canções do Quinto Império [Madredeus]

 

PÚBLICO QUINTA-FEIRA, 2 MAIO 1991 >> Cultura

 

Os Madredeus no Coliseu dos Recreios, em Lisboa

 

Canções do Quinto Império

 

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Para os Madredeus foi a consagração. Para os milhares de pessoas que encheram o Coliseu, a oportunidade de reencontro com uma música que aprenderam a amar. Teresa Salgueiro cantou como só os anjos sabem. Carlos Paredes juntou-se ao grupo para “mudar de vida” e seguir com “o navio” pela noite fora.

 

Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Noite de terça-feira. Sala a abarrotar de gente de todas as idades, ansiosa para assistir à prova de fogo da banda de Teresa Salgueiro, Pedro Ayres Magalhães, Rodrigo Leão, Francisco Ribeiro e Gabriel Gomes – os Madredeus – a meio de uma digressão iniciada em março na cidade de Braga e que os levará, já dia 4, ao Porto, e, no Verão, aos Açores, Rio de Janeiro, Florença e Macau.

Sobre o palco, desenhado pelo escultor António Campos Rosado, uma escada e uma casa, pequena, sem paredes. Escada por onde se sobe para chegar ao céu. Cá em baixo, na terra, a casa, transparente, portuguesa, com certeza. Iluminação discreta e eficaz. A luz colorida contrastando com o negro das vestes dos músicos. Som límpido e potente, permitindo ouvir distintamente as palavras, projetando bem alto as notas e a clareza dos arranjos, na nave majestosa do Coliseu. Acontecimento único que a televisão, felizmente, gravou.

 

A voz e a guitarra

 

A sequência de canções seguiu o alinhamento prometido, a mostrar que nada foi deixado ao acaso. “Matinal”, “A Saudade”, “A Península”, “Cuidado” e o hino “O Ladrão”, num ápice, conquistaram o público. Ovações estrondosas, estrelinhas e isqueiros acesos, palmas de acompanhamento, a festa, enfim. E no entanto a música dos Madredeus sabe guardar um espaço de silêncio. As canções de Pedro Ayres são capazes de mover multidões ao mesmo tempo que parecem ter sido compostas especialmente para cada um de nós. Música fraterna e solidária. Esquece-se a vida a fingir, o ruído da turba, a espuma dos dias e fica-se sozinho. Na companhia extasiada de uma voz transcendente ao corpo feminino que a sustenta, a voar nas cadências, nossas desde sempre, de um violoncelo, um teclado, uma guitarra acústica e um acordeão. O uno e o múltiplo, juntos na mesma pessoa e na mesma música. “Existir” no Quinto-Império.

Quando Carlos Paredes, acompanhado por Luísa Amaro, tímido como sempre e é característico da sua pessoa exceto na música que faz, subiu ao palco, sentiu-se no ar a emoção dos grandes momentos. Só, dobrado sobre o seu corpo verdadeiro – a guitarra – interpretou “Mudar de Vida”. A seguir, já acompanhado por todos os músicos da banda, improvisou ao sabor do “Canto de Embalar” (música sua, letra de Pedro Ayres) e de “O Navio”. Retirou-se debaixo de uma monstruosa salva de aplausos. Haveria de voltar. Antes do intervalo, a extroversão e alegria de “O pastor”, canção vivida pelo crítico de forma apocalíptica, rendido à força da música e ao magnetismo da multidão, enquanto um “arrumador de retardatários” lhe apontava um foco de lanterna aos olhos e berrava obscuras séries algébricas. Aos ouvidos aturdidos chegavam, incertas, as palavras do poema: “ao largo ainda arde a fila L, números 22 e 24, a barca da fantasia/e o meu sonho mostre-me os seus bilhetes por favor acaba tarde/acordar é o lugar ao lado que eu não queria”.

“As Ilhas dos Açores”, instrumental de colorações eruditas, abriu serenamente a segunda parte do espetáculo. Rui Machado, poeta açoriano, escreveu a propósito: “Na ilha o deus do tempo dorme entre pedras e flores. Ilhas dos Açores, do Espírito Santo, Ilha dos Amores”. Depois, sempre em crescendo, as canções guardadas no coração: “Vontade de Mudar”, a suite “A Sombra”/“Solstício” (instrumental com novo e inspirado arranjo)/“Estrada do monte” e finalmente a explosão da “Vaca de Fogo” – vaca deleite.

 

Interpretação sublime

 

Carlos Paredes regressou no “encore”, para a segunda interpretação da noite de “As Ilhas dos Açores”, fazendo contrastar o tom arrebatado e as cicatrizes da sua guitarra com a fluência e o vigor jovial dos outros instrumentos. Já no segundo regresso ao palco, Teresa Salgueiro, iluminada por um foco intenso de luz branca e bem apoiada pela guitarra de Pedro Ayres e o violoncelo de Francisco Ribeiro, interpretou de forma sublime, “O Menino” – momento de pura religiosidade, com a multidão, suspensa do canto de uma mulher, escutando-se e vivendo-se a si própria no corpo crístico do infante.

“Mindelo” e de novo “Vaca de Fogo” fecharam em apoteose um concerto inesquecível. Depois da noite de anteontem a música portuguesa ficou um pouco mais próxima de Deus.

O cântico dos eletrões [Editora Badland]

 

Pop Rock

 

1 MAIO 1991

 

O CÂNTICO DOS ELETRÕES

 

O catálogo francês Badland, especializado em música electrónica, passou a ter representação em Portugal, através da Ananana, coletivo apostado em divulgar os sons alternativos que vão surgindo um pouco por todo o planeta. Os discos, capazes de fazer as delícias dos amantes dos “bits” e “bites” musicais, podem ser obtidos via postal.

Do programa de intenções da Badland, que prevê apenas a edição de discos compactos, consta a gravação e distribuição de obras incidindo nas diversas áreas da denominada “new music” – do rock alternativo às músicas electrónica, minimal, progressiva, repetitiva, “new wave”, industrial, “funk” e étnica. Para já, os seis volumes até agora editados incluem-se no território vasto da electrónica e refletem, segundo a própria editora, “uma alteração de tendências no mundo da música”. Passemos em revista os discos em questão, do primeiro ao mais recente.

Robert Rich cria música capaz de provocar estados físicos e psíquicos de relaxação, propícios ao sonho e à contemplação. Do seu currículo fazem parte  uma obra de nove horas ininterruptas de música electrónica, baseada em “ondas vibratórias que induzem ao sono”, e uma escultura “quadrifónica com três ‘lasers’ apontados a uma fonte”. Integrou grupos de música ritual/industrial e “rítmica minimal”. “Numera” estende-se por atmosferas oníricas, vibrando em cristais de silêncio no interior de uma imensa catedral. Avançando para além do conceito “ambiental”, Robert Rich prolonga os transes hipnóticos de Klaus Schulze até os diluir no espaço estelar. O disco, construído sobre “sistemas de entoação precisa”, dá uma atenção particular às “séries harmónicas”, o que não chega para nos tirar o prazer da sua audição.

Dos seis discos, “Flow” é o mais fraco do lote. Praticantes de “high-tech dance music”, os Quiet Force são óptimos a demonstrar as possibilidades da nova tecnologia áudio. Os computadores e sequenciadores não têm segredos para eles. Falta-lhes conhecer o mais importante: saber transformar a luxúria digital em música interessante e inovadora.

“Traces”, do compositor norueguês Erik Wollo, figura desde já como uma obra-prima definitiva das novas correntes da música electrónica. “Ambiental”, “romântica”, “impressionista”, “étnica”, são outras tantas designações incapazes de descrever e englobar a riqueza e sobrenatural beleza de uma música que parece mover-se noutras esferas. Erik Wollo serve-se dos sintetizadores e de toda a panóplia electrónica ao seu dispor, como se fossem desde sempre instrumentos da floresta e do mar. Transcendente.

Mais próximo da sensibilidade rock, seja lá o que isso for, “The Secret Convention”, assinado pelos Propeller Island (alter-ego do alemão Lars Strosschen), joga num experimentalismo divertido, aliando os ritmos maquinais dos sequenciadores a atmosferas estranhas em constante mutação, capazes de provocar no auditor um estado de constante surpresa e excitação. Na caixa, somos avisados de que certos efeitos mais bizarros se devem não a um qualquer defeito de fabrico, mas à própria estrutura musical.

Conrad Schnitzler, um dos fundadores da escola “planante” berlinense dos finais da década de 60, integrou a formação original dos Tangerine Dream, ao lado de Klaus Schulze e Edgar Froese. Mais tarde passou pelos Cluster (de Dieter Moebius e Joachim Roedelius). Trabalhou com Peter Baumann (outro ex-Tangerine Dream, actual responsável pela editora Private Music). Detentor de uma já extensa discografia a solo, ou em dueto com o experimentalista americano Gen Ken Montgomery, sob a designação “Gencon”, Conrad Schnitzler tem, contudo, em “Constellations” a sua primeira edição em CD. Música dita “de computador”, “Constellations” viaja durante mais de uma hora pelo interior de uma “realidade virtual”, alucinatória e deslumbrante, sensibilizando o auditor para novas formas de sentir e compreender a organização dos sons.

“Solo: Observed” – título estranho para a música do duo Becker/Lehnhoff composta exclusivamente através de processos computorizados, dificilmente se descreve por palavras. Há quem se lhe refira como uma “pintura surrealista de Berlim no ano 2000”. Gravado nesta cidade, com o auxílio de Chris Franke (ainda um ex-Tangerine Dream…), “Solo: Observer” explode em múltiplas direções. Ritmos rock, fragmentos de vozes e sons transformados via “sampler”, naipes orquestrais sintéticos, entrelaçam-se e colidem entre si, criando um universo paralelo cuja lógica obedece exclusivamente aos arquétipos significantes do inconsciente.

“Polyrische variationen”, do alemão Stefan Tiedje (a Alemanha sempre à frente, no capítulo da música eletrónica), revela-se uma obra mais conceptual, mas não menos interessante. Um dos temas (“The Voice”) é construído a partir de um “sample” da voz de Diamanda Galas. Outro (“Water you Have for”), criado em 1987, para o Festival “White Waves”, utiliza tratamentos electrónicos de sons oceânicos. “Murmelmusik”, declaradamente ambiental, procura, nas palavras do compositor, criar “um efeito semelhante ao murmúrio do riacho”.

Refira-se por último que na Ananana se podem encontrar obscuras preciosidades, em álbuns de Asmus Tietchens, Blackhouse, Esplendor Geometrico, Jeff Greinke, Jorge Reyes, Roedelius, Mecanica Popular, Pascal Comelade, Peter Frohmader, PGR, Reyvision, Thomas Koener ou Vasilisk, alguns de entre muitos nomes e mundos a descobrir (Ananana, apart. 3164, 1304 Lisboa).