11/12/2025

"Gosto da liberdade de improvisação" [Nuno Rebelo]

 

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 19 JUNHO 1991 >> Cultura

 

Nuno Rebelo, depois da vitória no Concurso de Música Moderna

 

“Gosto da liberdade de improvisação”

 

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Dos computadores, Nuno Rebelo passou para os delírios da improvisação em palco. Duas faces de uma mesma moeda: a paixão pela música. Há anos, o concurso do Rock Rendez-Vous lançou-o e aos Mler Ife Dada. Agora a história repete-se, com os Plopoplot Pot.

 

Os Plopoplot Pot, projeto há muito acalentado por Nuno Rebelo, venceram o Concurso de Música Moderna, promovido pela Câmara Municipal de Lisboa. Como sempre acontece nestas ocasiões, houve polémica. Vitória da competência sobre a imaginação, disse-se a propósito. Colagem aos Naked City, “exercício masturbatório”, “mutíssimo competente execução” foram algumas das “acusações”. Nuno Rebelo não tinha o direito de ser o melhor.

PÚBLICO – Que motivos o levaram a participar num concurso aparentemente vocacionado para a divulgação de novos nomes, o que não é o seu caso nem dos outros Plopoplot Pot?

NUNO REBELO – Os Plopoplot Pot são um projeto surgido há cerca de três anos. O nome era outro mas a ideia era a mesma. Houve alguns ensaios e desistimos. Mas fiquei com essa “fisgada”. Em relação aos concursos, vejo-os como uma oportunidade de concretizar ideias. São uma motivação. Quando era pequeno, fazia histórias de banda desenhada. Pensava em escrever histórias de 50 páginas mas nunca passava da segunda, porque sabia que não as ia publicar. Preciso imenso desses objetivos concretos. Em relação à banda, como não houve nenhuma editora que viesse ter comigo a dizer “forma uma banda que eu gravo-te o disco…”

P. – Mas a vossa participação no concurso pode ser encarada como uma forma de promoção que, na prática, está a tirar a oportunidade a músicos mais novos…

R. – Antes de eu apresentar as maquetes, telefonei para a organização a pôr essa questão. Foi-me dito que havia vários grupos a concorrer com músicos profissionais, um com o Rui Júnior e a Paula dos Ban, falava-se de um grupo com o Jimba e alguns dos Censurados. Disseram-me mesmo que o prémio do concurso era muito bom, precisamente para cativar os profissionais, de modo a aumentar a qualidade, para não se chegar ao fim e o júri dizer “bem, ora vamos lá dar o prémio ao mal menor”.

P. – E se os Plopoplot Pot não tivessem ganho?

R. – Teria sido uma vergonha tremenda, para mim. Foi um risco que tive de assumir. A partir do momento em que entreguei a maquete, passei a funcionar só em termos de “vou ganhar este concurso”.

 

Projeto para continuar

 

P. – Os Plopoplot Pot são projeto para continuar?

R. – Isto foi a concretização da ideia do grupo. A segunda etapa é tentar arranjar, o mais rápido possível, maneira de gravar um LP. A terceira, tentar ir lá para fora, uma vez que nos movemos numa área em que competimos em pé de igualdade, o que não acontece com grupos como os Delfins ou os Xutos, que têm de competir com mega-estruturas, ao nível das dos Simple Minds ou Rolling Stones.

P. – Há quem compare a música dos Plopoplot Pot à dos Naked City. Em relação a si, que no grupo toca baixo e violino, vem à baila o nome de Fred Frith. Aceita este tipo de comparações?

R. – O que se passa é haver uma relação de identidade. Há dias, a seguir a um concerto, a propósito da tal influência dos Naked City, respondi que “lá por duas pessoas falarem francês, não quer dizer que se andem a imitar uma à outra”. Dito isto, em termos de referências, é preciso recuar aos anos 70 e aos Gentle Giant, ou aos 80, quando ouvia Fred Frith, com quem me identifico, em termos de sensibilidade musical. Já John Zorn e os Naked City são referências mais remotas. A cena de contrastes dos Naked City é uma coisa que eu já desenvolvia com os Mler Ife Dada.

P. – As pessoas tendem a associá-lo aos computadores e à música eletrónica. Como explica a passagem repentina para um contexto tão diferente?

R. – Nesta banda reencontrei a energia que tinha perdido quando deixei os Street Kids, que vinham da “new wave”. Havia uma carga energética em palco que se foi perdendo nos Mler Ife Dada e de que comecei a sentir falta. Posso dizer que nunca na minha vida dei um concerto em que tivesse descarregado tanta energia, como na final do concurso. Saí com os músculos da barriga completamente doridos, as pernas pareciam de gelatina. Não me aguentava de pé.

P. – Houve mesmo quem chamasse à vossa prestação um “exercício masturbatório”…

R. – Nós o que fizemos foi reencontrar o velho prazer de tocar ao vivo. Em palco, há toda uma comunicação entre os músicos, à base de sinais, de olhares, de gritos. Quase um ritual. Subimos para o palco, fechámo-nos sobre nós próprios e carregámo-nos de energia. A pensar: “vou explodir a seguir, vou dar o máximo”.

 

O prazer de fazer música

 

P. – Como encara o futuro da música portuguesa alternativa?

R. – Há uma situação interessantíssima na cena atual. Acho tão importante a atividade individual de maturação dos músicos, como depois partilhar isso com os que passaram pelo mesmo processo. No meu caso, há um mês estava no Johnny Guitar com um computador, em improvisações eletrónicas, e o Sei Miguel na trompete. Um mês depois estou num palco a partir as cordas do baixo. Isto é ser músico, em 1990. Gosto da eletrónica, mas também da energia rock e da liberdade de improvisação. Movimento-me pelo prazer de fazer música.

P. – Em que ponto se encontra a hipótese de edição no estrangeiro, nomeadamente na belga Made to Measure (MTM), subsidiária da Crammed?

R. – A “Sagração do Mês de Maio” funcionou como uma espécie de cartão de visita para o Marc Hollander. Mandei-lhe depois material como o “Auto da Índia”, da peça de Gil Vicente, composta sobre música do séc. XVI, vista por um prisma atual, e música étnica dos lugares por onde os portugueses passaram. Disse-me que nunca tinha ouvido nada igual, mas lamentou não poder editar. Ele edita discos de John Lurie ou Arto Lindsay que vendem 40, 50 mil exemplares. Quantos venderia o Nuno Rebelo? O objectivo de Marc Hollander é chegar o dia em que as pessoas comprem um disco da MTM só porque é MTM, seja do José da Silva ou do Mike Stangerman. Só nesse dia o Nuno Rebelo terá lugar na Crammed.

 

 

Cao na Mãe d'Água [Emilio Cao]

 

PÚBLICO DOMINGO, 16 JUNHO 1991 >> Cultura

 

Cao na Mãe d’Água

 

NA MÃE D’ÁGUA, em Lisboa, continua a decorrer (até dia 18) um ciclo dedicado aos instrumentos de corda, à semelhança aliás do que, em local diferente, aconteceu no ano passado. Anteontem à noite foi a vez do duo Carmen Cardeal/Pedro Teixeira da Silva, repetivamente em violino e harpa clássica, e do galego Emilio Cao, em harpa céltica. A Mãe d’Água, situada na zona das Amoreiras, é uma imensa cisterna aberta a meio do aqueduto das águas livres ou, se quisermos, uma catedral de água, cuja ressonância de 55 segundos constitui uma característica interessante (se bem aproveitada) para a prática de música acústica. Espaço mágico, em boa hora dado a descobrir aos lisboetas.

Ao centro da superfície aquática, enquadrado por quatro imponenetes colunas, erguem-se esculturas (da autoria de Susanne Themlitz e Paula Valente) imitando instrumentos de corda, que a iluminação (concebida por Pedro Leston) e a reflexão da água transformam em simetrias luminosas, vibrando em sintonia com o elemento líquido.

Carmen Cardeal e Pedro Teixeira da Silva interpretaram, com a sensibilidade que o espaço circundante pedia, peças de Donizetti, Debussy, Bach e Bartok, entre outros. Se a ressonância, por um lado, dimensiona o som de maneira a dilatar o espectro vibratório, por outro, não tem quaisquer contemplações para com o mínimo deslize dos intérpretes, o que, na ocasião aconteceu algumas (raras) vezes – uma ligeiríssima saída de tom nos registos mais agudos do violino ou uma corda grave da harpa a soar desagradavelmente lassa – mas não chegou para comprometer nem a prestação dos músicos nem o prazer da audição.

Emilio Cao, um dos expoentes da harpa céltica e da música tradicional da Galiza, por seu lado, estava positivamente encantado com a acústica e o ambiente do local. A sua harpa poucas vezes terá soado tão pura e ao mesmo tempo tão majestosa, como na ocasião. Jogando, por várias vezes, com “clusters” prolongados, conseguiu criar acordes e harmónicos que mais se assemelhavam às emanações de um órgão celestial. Cascatas de notas (o músico aludiu ao paralelo entre os sons da harpa e a água) que desaguaram no dedilhar preciso (arrancou estrelas das cordas, trazendo o céu da Galiza para o lago oculto no centro de Lisboa) dos instrumentais célticos e na suavidade contida do canto, de “Fonte do Araño” ou “Amiga Alba e Delgada”. Silêncio interior, reverberado nas notas infinitas da harpa e na comoção das centenas de pessoas que, ostentando no rosto expressões de autêntico êxtase, comungaram com a água, a luz e as intimistas liturgias tradicionais do músico galego. No final, muitos foram aqueles que, querendo talvez continuar a ascese, subiram a estreita escada de pedra que conduz ao terraço da construção, agora transformado em esplanada, para ver, como se fosse a primeira vez, a linha quebrada que une o céu aos telhados de Lisboa.

 

10/12/2025

Rosa Zaragoza - Les Nenes Bones Van Al Cel; Les Dolentes, A Tot Arreu

 

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 12 JUNHO 1991 >> Pop Rock >> LP’s

 

ROSA ZARAGOZA
Les Nenes Bones Van al Cel; les Dolentes, a Tot Arreu
CD, Saga, distri. Mundo da Canção
 
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     As raparigas boas vão para o céu, as más (Rosa Luxemburgo, Violeta Parra, Safo de Lesbos, Angela Davies, Camille Claudel ou Janis Joplin, entre outras mencionadas na capa) não se percebe bem, mas deve ser para o inferno. Se bem que isto de raparigas “boas” ou “más” seja muito relativo, dependendo da maneira como se olha. Cicciolina, por exemplo, é “boa” ou “má”?

Rosa Zaragoza é boa, nos dois aspetos. No segundo, contudo, já foi melhor, em álbuns anteriores – como “Cançons de Noces del Jueus Catalans / Canciones Judeo-Españolas” e “Cançons de Bressol del Mediterrani” –, nos quais canta a música que lhe é mais querida, dos judeus sefarditas do Sul de Espanha. Em “Los Nenes...”, pelo contrário, Rosa opta pela “canção de protesto”, colocando a sua voz magnífica (terna e intimista ou angustiante e próxima do grito, tal qual uma Diamanda Galas da folk) ao serviço de minorias étnicas como a cigana e a índia, ao mesmo tempo que vai defendendo a causa feminina.

“L’esperança de la meua vida”, melopeia árabe encantatória, “Niggum”, um tema tradicional hassideano (hassideanos – presumíveis antepassados dos fariseus), “Aixi s’acaba la vida”, pungente, letra escrita em 1954 por um índio americano em carta dirigida ao Presidente dos EUA, “Una abraçada d’amor”, maravilhosamente judia, ou o esoterismo basco de “Baga biga higa” justificam por si sós a audição atenta e a descoberta de uma voz ímpar da atual música popular.

Para os amantes da tradição musical sefardita, uma referência final para a coletânea “Todas las voces de sefarad”, que inclui os seus melhores intérpretes, como La Bazanca, Raices, Simane, Joaquin Diaz, a própria Rosa Zaragoza, para além de gravações recolhidas em direto da comunidade israelita de Madrid. Bons ventos, soprando do Mediterrâneo. ****

 

La Bottine Souriante - Chico & Swell

 

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 12 JUNHO 1991 >> Pop Rock >> LP’s

 

LA BOTTINE SOURIANTE
Chic & Swell
CD, Green Linnet, distri. Megamúsica
 
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     Acredite-se ou não, o Canadá também tem folclore. Evidentemente, é uma mistura, mas uma mistura fascinante. A música tem “cajun”, as jigas, “reels” e demais danças irlandesas, juntamente com as suas congéneres francesas, combinaram-se de modo a dar origem a um novo estilo que, dos ingredientes, soube retirar a quintessência. Os La Bottine Souriante, prosseguindo uma tradição que remonta à “explosão” dos “fous du folk” dos anos 70 e à existência, no Canadá, de grupos como os Harmonium, Séguin ou La Chiffonie, retomam as experiências então realizadas no seio da editora francófona Hexagone (que em breve terá representação nacional), burilando as arestas mais ásperas das sonoridades rurais para lhes sublimar a elegância e o requinte, num trabalho formal que só a distanciação e a pesquisa permitem. Fabulosas, em “Chic & Swell”, as harmonias vocais (partilhadas pelos cinco elementos da banda) e o violino de Martin Racine, ao longo de uma imparável sequência de danças e canções (sublime, “Le Rossignol Sauvage”) capazes de juntar, num golpe, a Irlanda, Escócia e França ao caldeirão do Quebeque. ****

 

Gwendal - Glen River

 

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 12 JUNHO 1991 >> Pop Rock >> LP’s

 

GWENDAL
Glen River
LP, MC e CD, Mélodie, distri. Mundo da Canção

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     Os Gwendal são atualmente Youenn Le Berre e Robert Le Gall, bretões de espírito aberto, sem vergonha nem pruridos puristas de qualquer espécie. Para eles a música tradicional, neste caso da Bretanha, é o ponto de partida para viagens sem roteiro fixo nem regresso assegurado. Estiveram recentemente no Porto, no II Festival Intercéltico, e desiludiram quem estava à espera de reencontrar a síntese jazz-folk dos tempos áureos de “À vos désirs”. Agora a música é outra, mais dispersa, eletrónica e descomplexada. As flautas, gaita-de-foles, bombarda e violino tradicionais juntam-se ao saxofone, ao baixo e às programações computorizadas, em delírios de síntese que de modo algum seguem à risca os preceitos do “velho” compêndio celta. O “celtic reggae” de “Glas nox”, o africanismo pop de “Uilean mandinga”, o sinfonismo oldfieldiano de “La tarentule” ou a “electronic body folk” de “Celtic bridge” são algumas das direções que os Gwendal apontam, com maior ou menor convicção. Há faixas dispensáveis, de evidente mau gosto rockeiro, outras integradas no mais puro espírito tradicional (“Jigger jig”, “Noces de granit”, “Sterem” ou esses “Champs bothorel” cintilantes de cristal). A capa explica o conteúdo: um edifício futurista perdido entre as brumas de uma floresta. ***

 

DAVID BYRNE - The Forest

 

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 12 JUNHO 1991 >> Pop Rock >> LP’s

 

O HOMEM E O MITO

 

DAVID BYRNE
The Forest
LP, MC e CD, Luaka Pop/Sire, distri. Warner

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     David Byrne passou definitivamente para o “outro lado”. “The Forest”, o seu mais recente projeto, não tem rigorosamente nada que ver com toda a sua discografia anterior, a solo ou nos Talking Heads. Em termos formais, trata-se de uma obra conceptual, inteiramente orquestral e destituída de quaisquer conotações com o rock ou a pop. O título pode induzir em erro, sugerindo um manifesto ecológico pró-Amazónia, que, no caso de Byrne, nem sequer seria despropositado, tendo em conta anteriores ligações ao Brasil, à sua música e aos seus rituais. “The Forest” avança exatamente na direção oposta à “féerie” carnavalesca de Rei Momo ou das recentes coletâneas brasileiras. “Floresta” que aqui funciona antes de mais como uma metáfora do inconsciente coletivo. “Menos uma peça e mais um processo de descoberta do nosso lugar no mundo”, para utilizar as palavras do compositor. Chegados a este ponto o melhor é sentarmo-nos todos, relaxar, cruzar as pernas, acender o cachimbo e baixar as persianas e a voz. O assunto é sério e merece discussão. Vamos por partes.

Comecemos pelo som, que é o que chega aos ouvidos em primeiro lugar. Peça única, dividida em dez partes, em que a orquestra é o principal “instrumento” solista. Há coros grandiosos, percussões tonitruantes e, ocasionalmente, a voz de Byrne, quase irreconhecível. A explicação encontra-se em parte no crescente interesse que o músico tem vindo a devotar aos compositores românticos do século passado, saltando por cima da aventura serialista, para recuperar o maior mediatismo da “música de filmes”, aquela que as pessoas associam a sentimentos de “respeito”, “mistério”, “aventura”, “terror”, “angústia” e “alegria”.

Os saltos seguintes são menos evidentes. A ideia de Byrne é a seguinte (baixemos ainda mais o tom de voz e, já agora, o de lá do fundo que apague a luz e feche a porta): juntar a mitologia suméria às novas conceções do mundo nascidas da Revolução Industrial. “Não é possível!”, exclamam todos em coro. “Com David Byrne, tudo é possível!”, riposta, imperturbável, o crítico, voltando a acender o cachimbo e descruzando as pernas, enquanto se delicia com a reação da plateia.

Na altura, David Byrne andava a ler muito provavelmente o clássico de Mircea Eliade. De repente, descobriu que “as lendas e mitos podiam funcionar como uma espécie de histórias primordiais, a partir das quais emergiriam todos os filmes contemporâneos, programas de TV e novelas”. Como o mito mais antigo que conhecia era o poema sumério da saga de Gilgamesh, foi por aí que começou. Já agora, para aliviar um bocado a tensão (está um ambiente de cortar á faca), eis alguns dos subtítulos de “The Forest”: “Ur”, “Dura Europus”, “Samara”, “Nineveh”, “Teotihuacan”, “Asuka”...

Onde é que íamos? Ah, sim, os mitos... Pois, acontece que esse, como outros mitos, descreve (de forma mais ou menos obscura), “voilá”, “as relações entre a natureza e a cultura, a luta do homem e da civilização contra a natureza, a imortalidade e a morte”. Ora, precisamente, toda esta problemática foi discutida e reformulada durante a Revolução Industrial, na Europa e nos Estados Unidos, dando origem a novos conceitos como: “a natureza é maravilhosa e as cidades são feias” ou “Deus faz parte da natureza, o homem não”, bem assim como a noções revolucionárias sobre o que eram, ou deveriam doravante passar a ser, coisas tão importantes como “progresso”, “sexo”, “trabalho”, “sexo”, “máquinas”, “sexo”, “amor” e, sobretudo, “sexo”. O problema (e eis-nos chegados ao cerne da questão), está em que a dita revolução passou para a vitrina dos museus, mas as ideias e preconceitos entretanto formados, não. Citando Byrne: “Vivemos já num novo mundo, com uma cultura assente no primado da informação e da computorização, mas os hábitos mentais e as crenças das pessoas permanecem obsoletos.” Para abreviar a coisa (já se notam ao fundo da sala alguns bocejos): Somos “modernos” da treta, que só querem sopas e descanso.

É aí que aparece “The Forest”, decidido a alterar o estado calamitoso a que chegámos e a acabar de vez com tamanha vergonha e iniquidade. Mas, para tal, tornava-se necessário penetrar nos meandros da “floresta” metafórica do inconsciente, “sentir o romance das fábricas, a beleza, o poder e as possibilidades das máquinas que iriam transformar o mundo” e depois “tentar usar esta música para entrar nas mentes dos nossos antepassados, tanto os europeus como os sumérios”. Só assim se tornará então possível dar um passo em frente, em direção ao futuro, que provavelmente coincidirá com o próximo álbum dos Talking Heads.

Malta, vamos a acordar. A coisa não é assim tão grave. Afinal trata-se apenas do novo disco de David Byrne. O homem até acredita no que diz e, o que é mais importante, de cada uma das suas loucuras resulta sempre música interessante. Como é o caso. Passadas a estranheza e resistência inicial ao radicalismo formal e à recusa sistemática em conceder o mínimo espaço à dança. Substituído pelo rigor orquestral e pelas estruturas “clássicas”, de que “The Forest” (parte da qual foi utilizada na peça teatral do mesmo nome, dirigida por Robert Wilson) faz gala em ostentar, resta apenas cortar as amarras, partir à aventura e seja o que Deus quiser. Depois da audição haverá talvez quem desate a correr desaustinado à procura de segurança nos discos dos Talking Heads. Outros pensarão que, afinal de contas, talvez Beethoven, Wagner ou Mahler não sejam assim tão maus. Outros, finalmente, ficarão mergulhados no mais profundo estupor. A maioria ficará confusa, sem saber o que fazer deste objeto “diferente” e impenetrável a emoções primárias.

Independentemente de tudo, porém, fica uma certeza: David Byrne (re)tomou a dianteira e o comando das operações, na frente mais avançada das manobras musicais do nosso século. “The Forest” ficará na história como um dos manifestos mais belos alguma vez escritos sobre a inquietação do homem perante o absoluto. Podem sair. *****

 

 

O homem que gravou Portugal ["Povo Que Canta"]

 

PÚBLICO SÁBADO, 8 JUNHO 1991 >> Local >> Televisão

 

O homem que gravou Portugal

 

É NOSSO costume deixar andar. Esperar que os outros façam por nós. Felizmente, no caso do folclore, houve quem fizesse, para nossa sorte e vergonha. Chamava-se Michel Giacometti, era corso e chegou a Portugal em 1959, atraído por um livro que lera, de Kurt Schindler, sobre Trás-os-Montes. Morreu português, após uma paixão pela música tradicional portuguesa que durou cerca de 30 anos, tantos quantas as viagens pelos territórios da nossa alma. Amou os portugueses melhor do que os portugueses. Gravou-lhes as alegrias e tristezas, com um gravador (então, uma coisa “satânica”) e “aquele ar manso de quem se aproxima devagar das borboletas não para as caçar, mas para lhes decifrar as cores e o voo”, como o descreve Sérgio Godinho. Contra a política oficial da FNAT, dos ranchos e dos acordeões, vigiado pela PIDE, Michel Giacometti percorreu o país à procura da nossa e da sua verdade. Contra o “folclore” devolveu-nos o folclore genuíno. Um “Cancioneiro Popular Português” e uma “Antologia de Música Regional Portuguesa”, em colaboração com Fernando Lopes-Graça, 150 horas de gravações registadas nos 24 discos dos “Arquivos Sonoros Portugueses”, seis mil fichas de informação etnográfica e três mil fotografias são o resultado dessa paixão. Quando chegou pela primeira vez a Bragança, de capa negra, “barba enorme” e cabelos compridos, o povo estranhou: “Uns diziam que era um padre; outros, um personagem mítico qualquer; e houve quem achasse que era a alma penada de um conde que, de vez em quando, voltava à terra”.

As Outras Músicas, de José Duarte, foram buscar gravações do programa Povo que Canta, que Michel Giacometti organizou e a RTP, na época, transmitiu. Para discutir e não deixar esquecer.

 

Canal 2, às 19h50