31/10/2025

A arte e a sida [Gala dos Artistas contra a Sida]

 PÚBLICO DOMINGO, 3 FEVEREIRO 1991 >> Cultura

 

Gala dos Artistas contra o mal do século, no Coliseu de Lisboa

 

A arte e a sida

 

Realizada sexta à noite no Coliseu dos Recreios, a Gala dos Artistas contra a Sida alcançou plenamente o seu objetivo – ajudar a combater uma das pragas do século, a sida. Organização perfeita, boa música e um público participativo contribuíram para que assim fosse. Sabe bem, quando a Arte se confunde com a Vida.

 

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Casa cheia. Público diversificado. O programa apelava ao gosto de diversas camadas culturais e etárias. Sem distinções. Havia uma razão comum que a todos ligava – a vontade de lutar contra um flagelo que a todos diz respeito. Música e palavras transmitiram a mensagem que importava: tentar a todo o custo vencer o mal, o medo e a incompreensão. Não se tratou propriamente de uma festa – nada havia para festejar –, mas tudo foi feito com alegria.

Meia hora depois do programado (única falha sensível de uma organização impecável), atuou a Orquestra de Jazz do Hot Clube de Portugal, com um reportório “mainstream” adequado às circunstâncias. Atuação calorosa que recolheu os primeiros aplausos da noite.

Quando Herman José subiu ao palco, como apresentador do espetáculo, foi o delírio. Esperava-se a habitual torrente de piadas, o humor delirante, a irreverência. Herman compreendeu que a ocasião não se prestava a excessos, optando por um registo mais discreto. Brincou quando devia brincar. Foi sério quando a gravidade do tema o justificava. Só não resistiu quando, a propósito de alguns estampidos na amplificação sonora, afirmou tratar-se de uma pequena homenagem aos mísseis “Patriot”. De resto, ao longo das quase três horas que durou a Gala, conseguiu evitar momentos mortos.

Dona Amália Rodrigues desta vez não cantou. “Sou uma pessoa muito atrapalhada” – começou por dizer. Não é nada, D. Amália. Disse o que sentia, com o coração, como costuma fazer sempre. Por isso a amamos. Por isso não tem nunca que se sentir atrapalhada. Apresentou a sua amiga Line Renaud, presidente da “Associação dos Artistas Franceses contra a SIDA” que, na ocasião, dissertou sobre o combate à doença. Seguiu-se um caudal de boa música. Primeiro, o dueto pianístico de Pedro Burmester e Mário Laginha, fluido como um rio, aliando a intensidade emocional do Romantismo a estruturas rítmicas próximas do Minimalismo.

 

O corpo e a voz

 

Maria de Medeiros surgiu para ler, tímida e belíssima, um texto de José Saramago. Menos tímido, bastante menos, era o mini-vestido negro que envergava. Depois, o terramoto. A Arte Absoluta. Na voz, na Alma, no corpo, em tudo, de Maria João. A cantora portuguesa, que vive no estrangeiro (somos um país mimoso e pequenino que não consegue suportar aquilo que é grande), encheu o recinto com a sua voz e uma presença avassaladora. Quando canta Maria João vive, no sentido literal do verbo, a liberdade total. Acompanhada por Bernardo Sassetti ao piano e Carlos Bica no contrabaixo, cantou um tema tradicional português. Depois, tudo – o gemido, o ritmo da respiração, os graves másculos subindo em vertigem até à ternura de uma mulher no Céu, os jogos, a intuição fulgurante, as piscadelas de olho a Meredith Monk e Billie Holiday, os Blues, o Amor, o Corpo. Nas costas e ombros desnudos, muito brancos, luminosos, contrastando com o negrume das vestes. Erotismo em que a carne e a alma se confundem e são a própria essência da mulher. Na fila de trás, uma senhora queixava-se porque não conseguia perceber bem as palavras...

Lena d’Água, logo a seguir no alinhamento do espetáculo, tinha de ressentir-se da comparação. Mesmo assim, foi de certo modo surpreendente a forma como a intérprete soube puxar as pessoas das alturas superiores onde ainda flutuavam, atraindo-as para os terrenos onde se sente mais à vontade. Cantou, acompanhada ao piano por Pedro Osório, duas canções, ambas tristes: “Não é fácil o amor”, de Janita Salomé e “Chanson Triste” composta por Henry/Marie LeJeune, no século passado. Masculino/Feminino a jogar às escondidas.

Olga Pratts trouxe para o Coliseu o dramatismo da música de Astor Piazolla, sensual e dolorida, obrigando a repensar o termo “tango”, fechando com chave de ouro a primeira parte da Gala.

 

Perdidamente

 

O maestro José Rodrigues dirigiu de forma exuberante o coro açoriano Eduardo Machado de Oliveira que acompanhou os solistas Teresa Salgueiro (Madredeus), Pedro Mosquitela e Theresa Maiuko (única dama de branco), esta cantando a solo logo de seguida. Depois contaram-se armas, que é como quem diz, preservativos, com Herman José contando a história daquele senhor já de idade mas prevenido que comprou a coleção inteira, para depois se referir com ternura “a todas as pessoas que amamos e, porque não dizê-lo, que comemos”.

Paulo de Carvalho cantou sozinho uma canção, dando lugar à voz e guitarra de Sérgio Godinho, outro dos momentos altos do espetáculo. “Alice no País dos Matraquilhos”, “Lisboa que Amanhece”, histórias nostálgicas das misérias quotidianas do nosso desencanto. Disse que “A Vida é a Grande Desforra do Corpo” vingando-se “de tudo aquilo que o quer matar”.

Palavras em que todos acreditaram antes de o Coliseu explodir com o rock dos GNR e dos Trovante. Os primeiros provocatórios como sempre, com “Dunas”, “Morte ao Sol” e “Vídeo Maria”, os segundos interpretando “Que Assim Seja”, “Peter’s” e “125 Azul”. Finalmente a despedida apoteótica, com Lena d’Água, Teresa Maiuko, Paulo de Carvalho e Sérgio Godinho juntando-se a Luís Represas e restantes Trovante para cantar “Perdidamente” as palavras de Forbela Espanca. Enquanto o público ia abandonando a sala, alguns adolescentes pulavam ainda de contentamento. Para eles não há vírus capaz de vencer a alegria.

 

 

 

 

29/10/2025

Sting - The Soul Cages

 PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 23 JANEIRO 1991 >> Pop Rock >> LP’s

 

A INSOFISMÁVEL CLAREZA DO SISTEMA “Q”

 
STING
The Soul Cages
LP, MC e CD, A&M, distri. Polygram


 








 


Desta vez parece que foi difícil. Ou, pelo menos mais difícil que em ocasiões anteriores. É o próprio Sting quem o diz. A inspiração não vinha. Somente ao nível das letras, cuidado, que no resto, tudo bem. Ele esforçava-se, esforçava-se, mas não havia esforço que lhe valesse. Era sempre o vazio. Pelo sim pelo não, enquanto se prolongava a espera angustiada, o homem dos Police foi adiantando trabalho: alugou estúdio (em Paris), alugou músicos (Manu Katche – bateria; Kenny Kirkland – teclados; e Dominic Miller – guitarra), alugou produtor (Hugh Padgham).

A música começou a brotar em grandes torrentes de criatividade. Ele eram melodias, acordes, harmonias, introduções (musicais), codas, contrapontos, enfim, o compêndio inteiro do “Escreva você mesmo Uma Canção”, que não paravam de jorrar da cabeça do compositor. Mas, quanto a letras… o vazio persistia em não se deixar vencer.

Sting tentou tudo, para alterar tão comprometedora situação: passeou, tomou banhos de mar, enfim, a acreditar nas suas palavras, passou grande parte do tempo a caminhar ao acaso por praias áridas, meditando sobre o destino e a inutilidade da existência. Talvez por isso, grande parte dos temas deste álbum se relacione de algum modo com o mar.

Colocada de lado a hipótese de crise da meia idade, terá concluído que “não pode ser só isso”, que “é preciso ir mais fundo, ao princípio de tudo!...”. A resposta encontrava-se escondida algures nos meandros mais recônditos da memória. Imagens de um certo barco… de um rio que desaguava no mar… (há algum que não desague?...). Então, de repente, no seu espírito, fez-se luz. E fez-se o disco. Disco típico de quem não tem nada de novo para dizer. Sting deveria ter dado ouvidos ao silêncio e esperar um pouco mais antes de gravar. Ao invés, optou por esconder a falta de inspiração, recorrendo à inventividade do produtor e às requintadas técnicas de estúdio, incluindo o misterioso e revolucionário sistema Q. O sistema Q é um sofisticado produto da nova geração áudio, que permite, utilizando qualquer aparelhagem estereofónica convencional, reproduzir na perfeição um palco sonoro tridimensional. Pensava-se que qualquer boa aparelhagem conseguisse tal proeza, mas afinal não passava de uma patranha bem engendrada. Reconheça-se que o som Q atinge de facto uma pureza e claridade excecionais. A que Sting, infelizmente não deu, em termos musicais, a resposta adequada.

Nove temas chegam para mostrar que o autor dos trabalhos anteriores, “The Dream of the Blue Turtle” e “Nothing but the Sun”, está realmente em crise. Lança mão a tudo para tentar esconder que o rei vai nu, mas em vão. Há a já citada produção (irrepreensível) e, sobretudo, o truque atualmente na moda, da ornamentação exótica e mais ou menos “world”, cujo mote é dado logo de entrada, com “Island of Souls”, que julgaríamos pertencer a um qualquer disco de Stephan Micus. Para o efeito, recrutaram-se o oboé de Paola Paparelle e a gaita-de-foles de Kathryn Tickell. O saxofone Branford Marsalis limita-se a ser mais um enfeite que passa despercebido. Porém, à medida que cada tema se vai desenvolvendo, é o deserto de ideias, encoberto por nuvens de misticismo, com constantes alusões a “barcos que singram em direção a terras de sonho”, oceanos imensos, anjos que tombam do céu, luz, muita luz e a consequente auto-iluminação. O pior é a banalidade das canções, quase todas baladas de tempo médio em que o cantor se limita a despejar as palavras e a alinhavar meia dúzia de frases melódicas.

Exceções são o instrumental que abre o segundo lado, “Saint Agnes and the Burning Train”, tecido por uma guitarra acústica desenhando arabescos flamenco-arabizantes sobre um arranjo de extrema limpidez, e o tema seguinte, “The Wild, Wild Sea”, em que, por uma vez, a interpretação de Sting consegue ser convincente. De resto, assiste-se à queda do império, aparentemente sólido, edificado à custa dos anteriores álbuns, substituído pela ditadura assética do sistema Q. **

Sally Oldfield - Natasha

 PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 23 JANEIRO 1991 >> Pop Rock >> LP’s

 
SALLY OLDFIELD
Natasha
LP, MC e CD, Sony International

 Uma imagem com texto, pessoa, mulher, em pé

Descrição gerada automaticamente

 Em princípio, não está errado cantar canções como “Keep the Fire Burning”, “Clear Light” ou “In the Presence of the Spring”, cujos títulos, só por si, nos fornecem de imediato indicações claras quanto aos respetivos conteúdos. Fala-se do amor, da Natureza, das estações do ano, do dia e da noite, das estrelas e da Lua, enfim, do lado aprazível do Universo. Se bem que, por vezes, as palavras forcem em demasia a faceta esotérica – não é sem uma certa dificuldade que se consegue entender o sentido de versos como “Oolah-Kalu-Kalu-Kalandeya” ou “Ella Kielessa Nyovya Lo”, respetivamente de “My Drumbeat Heart” e “Song of the Mountain”. O que não se pode deixar passar em claro é a total incapacidade de Sally Oldfield em abandonar, por um segundo que seja, a lamechice e os lugares-comuns típicos de um género que facilmente descamba em pieguice, a coberto da etiqueta “new age”, cómoda para abrigar todo o tipo de mediocridades. Mike Oldfield toca no tema de abertura. Os ritmos frequentemente imitam os batuques étnicos habitualmente utilizados por ele. Infelizmente o resultado final assemelha-se mais aos Abba que aos momentos de inspiração do autor do recente (e excelente) “Amarok”. Quem sai aos seus, por vezes degenera. *

Killing Joke - Extremities, Dirt And Various Repressed Emotions

 PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 23 JANEIRO 1991 >> Pop Rock >> LP’s

 
KILLING JOKE
Extremities, Dirt and Various Repressed Emotions
LP duplo e CD, Noise Just In, distri. Anónima

 Uma imagem com texto, calendário

Descrição gerada automaticamente

 O título diz tudo – palavras feias a que corresponde um som rude, ácido, violento, psicótico, quase escabroso. Para Jaz Coleman, alma negra da “piada assassina”, trata-se, com este seu último trabalho, de perpetrar um massacre sobre os sentidos, assalto sónico às sensibilidades apaziguadas pelas máximas que asseguram que “o ruído não é música” e “o belo tem de ser agradável”. “Extremities” serve-se do ruído como arma apontada a esses corações delicados. De agradável não tem nada. Cada faixa destila doses concentradas de ódio, transportadas em ogivas Trash, prontas a abater-se sobre o inimigo mais próximo.

Ainda mal refeito de um período negro da sua vida (acabara de passar por uma grave crise, a nível artístico e pessoal, devida a problemas com a editora, aliados ao caos psicológico e físico causados pela ingestão desenfreada de drogas), resolveu que não tinha de ser simpático com o mundo. Não que alguma vez o tenha sido, só que, neste novo atentado, os disparos atingem o alvo. Para agravar ainda mais a situação, resolveu interessar-se pelo ocultismo e por atividades mágicas tão negras como as do satanista Aleister Crowley (o mesmo que Fernando Pessoa conheceu), ente da sua simpatia e que decerto lhe serve de inspiração. “Extremities” é, em suma, uma vingança.

Os temas são geralmente longas invocações da desordem e das forças destrutivas. Sequências de ruído cerrado, que pequenas pontuações “sampladas” mal conseguem romper. Guitarras saturadas e mal oleadas disparam, como metralhadoras descontroladas, sobre ritmos pós-“punk”, criando paisagens desoladas e apocalípticas. Os Killing Joke, um pouco à maneira dos Birthday Party, fazem do rock campo de batalha. Conflito não resolvido, que na agressão procura a saída redentora. Violência, enfim, resolvendo-se a si mesma em busca de um impossível exorcismo.

Chame-se ao disco delírio “hardcore” à beira da desintegração final, rock “industrial” ou pop convulsivo (sim, há aqui canções ou, pelo menos, algo que se lhes assemelha), mas nunca a segurança da rotulação será suficiente para aliviar o incómodo provocado pela sua audição. Editado na altura mais inconveniente, “Extremities, Dirt and Various Repressed Emotions” materializa o mal-estar, os medos e desejos perversos de uma sociedade em desagregação. Mais uma acha lançada na fogueira. Declaração de guerra. Alerta geral. ***

Cabaret Voltaire - Cabaret Voltaire

 PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 23 JANEIRO 1991 >> Pop Rock >> Vídeos

 

CABARET VOLTAIRE
Cabaret Voltaire
Mute, distri. Edisom

 

Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamente

 

“Cabaret Voltaire” é um dos primeiros “long forms” independentes de sempre, reedição do original de 83, editado na Doublevision. Visão do inferno. Porta aberta para o inferno.

A música: da primeira fase. A melhor (?), experimental e perigosa – compare-se, por exemplo, “Photophobia”, “Badge of Evil” ou o excerto do filme “Johnny Yesno” com as recentes banalidades dançáveis de “Groovy, Laidback & Nasty” e veja-se a diferença. Na altura, os Cabaret Voltaire eram “industriais”, insuportáveis, brutais. Técnicas de “cut up” e colagem. Vozes subliminais, curto-circuitadas por ruído branco. Ruído negro. Disformidades acústicas. Stephen Mallinder, Richard H. Kirk e, no início, Chris Watson (mais tarde nos Hafler Trio). Guitarras em esquizo-“feedback”. Sintetizadores tribais. Fitas magnéticas em delírio. O suficiente para orientar a “cold wave” no sentido do mal absoluto.

As imagens: horror. Horror. Horror. Ritual, “slogans” ameaçadores, totalitarismo, tortura, guerra, autoflagelação, pornografia, ruínas, monstruosidades físicas e psíquicas. “Fast/slow motion”. Ruído visual. Formas saturadas. Fanatismo religioso. Manipulação (das imagens, mental, emocional). Sofrimento. “This is Entertainment, this is Fun”.

A visão: focada nas capas dos discos (paradigmática, a de “The Crackdown”, com a mira da câmara fotográfica apontada ao recetor, ou os retratos “kirlian” de auras etéreas, em “Mix-up”), nos constantes grandes planos de olhos humanos ou na designação da produtora Doublevision. O olho do poder. Controlo da e pela imagem eletrónica. Interiorização do horror por sobrexposição a esse mesmo horror. Luz filtrada, distorcida e invertida. Duplos. Dupla visão. Os Cabaret Voltaire agradecem à televisão psíquica, de Genesis P. Orridge. Permanece a interrogação: pode a televisão ser perigosa? Outra questão: é lícito separar a ética da estética? Dito de outro modo: está a arte acima de todas as morais? Por detrás da música e imagens dos Cabaret Voltaire existe uma atitude e uma ideologia (partilhadas atualmente por dezenas de outros “músicos”) com objetivos muito precisos. Alguns mais conscientemente do que outros, todos trabalham para fazer subir à Terra um novo poder.

São diversas a tácticas e estratégias utilizadas. Atuam por fases: em curso, a inversão de todos os valores e sentidos. Destruídas as anteriores referências (imputem-se responsabilidades aos pioneiros dadaístas do princípio do século, que por sinal faziam do Cabaret Voltaire lugar privilegiado para as suas conspirações), cabe agora aos técnicos proceder à sua substituição por novos valores de sinal contrário. A propaganda nazi sabia como proceder. Também o sexo desempenha um papel de relevo nestas operações: desligado do amor, levado ao extremo da pornografia, serve, por meio de mecanismos tântricos, como meio de libertação de energia que poderá ser desviada para outros fins. Sade. Masoch. Wilhelm Reich.

“Cabaret Voltaire”, o vídeo, constitui importante documento de uma das fases iniciais do processo. Como no início se escreveu, poderá ser visto como uma descida aos infernos. Imagens que ensinam a sofrer e a fazer sofrer. Imagens que se aceitam ou renegam. Imagens a que é impossível ficar indiferente. Sem classificação.

Música portuguesa - Grandes expectativas

 PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 16 JANEIRO 1991 >> Pop Rock

 

MÚSICA PORTUGUESA grandes expectativas

 

Se 1990 foi o ano das confirmações dos grandes nomes, mas também o da inexistência de um circuito alternativo que pudesse prometer a continuação do cenário, já há muita gente a tentar reagir contra isso. Pelo menos há uma grande esperança em relação ao aparecimento de projetos novos, que ainda assim pouco se vislumbram. Será 1991 um ano de grande explosão de vias alternativas impostas pela aparente estagnação do meio?

Algumas pistas parecem apontar nessa direção, se não atente-se na quantidade de nomes consagrados dispostos a arriscar em projetos fora do habitual. Uma dessas pistas passa mesmo pela grande vontade de altar as fronteiras e mostrar no estrangeiro o que se vai passando por cá. Serão tudo promessas de ano novo?

 

ANTÓNIO M. RIBEIRO
Nova editora discográfica, discos a solo e com os UHF, tournée intensiva


Como sempre, os UHF têm uma agenda recheada para o ano em curso. Concertos não faltam e parece que discos também não. António Manuel Ribeiro, mentor e porta-voz habitual do grupo, é organizado e prepara com antecedência todas as suas atividades, isto é, não brinca em serviço. É perentório: “Este ano, os UHF vão realizar uma série de concertos, já assinados, que farão parte da pré-temporada em relação ao Verão, que será muito intenso”. Quanto a discos, há projetos muito concretos: edição de um single antes da época estival, “que será como que um aperitivo do álbum de originais a editar depois do Verão”. Mais bombástica é a intenção de a banda de Almada criar a sua própria editora, destinada a editar e promover novos valores e, muito provavelmente, os próprios UHF, o que deixa antever uma rutura definitiva com a Edisom, à qual ainda se encontram ligados.

1991 vai ser o ano do lançamento a solo de António Manuel Ribeiro. Depois de uma primeira apresentação no Teatro Tivoli, integrada na campanha do MASP e que foi “até certo ponto uma brincadeira, embora tivesse sido minimamente preparada” (a apresentação, não a campanha, como é evidente...), tenciona continuar a trabalhar com os mesmos músicos que o acompanharam nessa ocasião e publicar o seu primeiro disco a solo ainda antes das férias grandes.

António Manuel Ribeiro anda no meio musical há muito tempo e conhece-o como poucos. Não tem pejo em criticar uma situação que julga cada vez mais deteriorada: “Em relação ao mercado discográfico, as coisas estão cada vez pior.” A editora que pensa criar pretende lutar contra tal situação: “Acho que nos devemos meter um bocado ao barulho. Ao fim destes anos todos de críticas constantes ao sistema, o que temos de fazer neste momento é apresentar-nos dentro desse próprio sistema e produzir, ao fim e ao cabo, novos grupos, novos artistas e novas ideias.”

O líder dos UHF não poupa as editoras: “A Europa e o confronto com 1992 deixou-as num deserto de ideias.” E diz ainda: “Toda a gente se queixa, desde os artistas aos próprios chefes das editoras, mas o que é um facto é que os disparates continuam semanalmente a ser os mesmos.” Refere-se a disparates como “gastar dinheiro mal gasto, de que são exemplo os milhares de contos perdidos em estúdio, em projetos sem pernas para andar” e adianta soluções: “A música portuguesa precisa sobretudo de descobrir novos valores, mas também de segurança e garantias de viabilidade financeira, sob riscos de [as editoras] se tornarem meros financiadores discográficos.” Acusa novamente: “Mas nada tem sido feito para que isso aconteça e as editoras são talvez as principais culpadas do insucesso prático que se verifica. O público não é parvo. As pessoas não compram os discos só porque são lançados cá para fora com grandes parangonas de promoção, mas que depois resultam em fracasso.” Exceções a estas estratégias mal orientadas, encontra-as António Manuel Ribeiro nos dois extremos do leque editorial: um dos casos é um dos “grandes” selos nacionais, o outro um pequeno, independente, e, segundo o cantor, “cada qual com um projeto viável para a música portuguesa”. De resto, 1991 será mais um ano do “deixa andar”.

 

 

JOÃO PESTE

Jorge Dias

 

PEDRO AYRES MAGALHÃES

Luís Maio

 

MIGUEL ÂNGELO

Luís Maio

 
RUI REININHO
GNR em estúdio, Gala anti-sida em Lisboa, cumplicidade Alexandre Soares

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Este ano, os GNR entrarão em estúdio “quando lhes apetecer”, de preferência a partir de março, que é, para Rui Reininho, “um bom mês, primaveril”, ideal para se gravar, sobretudo se for em Carcavelos. São capazes de apostar no estrangeiro: “Deve ser fácil, cá é tão difícil, há tanta má vontade, que lá fora não pode ser pior.” São capazes de ter razão.

Grandes concertos parece que não vai haver. A não ser em fevereiro, numa grande gala em Lisboa, uma intervenção “pequenina”, mas decerto que empenhada. Tem de ser, pois trata-se de “uma daquelas coisas de solidariedade, com uma recolha de fundos e apoios para a investigação da sida, com a participação de pessoas muito caridosas”. Para os GNR é importante “essa história do vírus”.

Já Rui Reininho, em particular, parece voltado para outro lado: vai trabalhar de novo com o seu antigo companheiro nos GNR, Alexandre Soares, na feitura musical de uma peça de Sam Shepard.

Para 1991, o vocalista da banda portuense acredita nas virtudes das organizações camarárias, que podem desempenhar um papel importante na divulgação da música portuguesa, caso do espetáculo que deram o ano passado na Alameda, mas “com um bocadinho menos de romaria”. Falta organização, mas é capaz de “não haver estruturas para isso”. Como na Alameda, que foi o que se sabe. “Fazer coisas dessas sem segurança pode ser perigoso, só nós, que somos malucos. Se tivesse sido, por exemplo, em Milão, tinha havido gente ferida, esfaqueada, confrontos”. Mesmo assim “sentem” os apoios das câmaras, embora sejam “um bocado eleitoralistas”. 1991 vai ser ainda um ano de proibições, com as bandas proibidas de tocar em bares, “por causa de horários, barulho, essas histórias todas. Apenas vai continuar aquela pressão das pessoas beberem copos”. Também não parecem acreditar muito nas editoras e ouviram falar de “recessão”. Enfim “é a guerra” – diz Reininho. “Acho que vai haver guerra!”

 

RUI VELOSO

Jorge Dias

 
RODRIGO LEÃO
Composição nos Sétima Legião, digressão nos Madredeus, projeto a solo


Rodrigo toca baixo e é um dos membros fundadores dos Sétima Legião. Depois iniciou, de parceria com Pedro Ayres Magalhães, o projeto Madredeus, onde se ocupa das teclas. É um dos personagens mais determinantes e influentes da nova música portuguesa, embora não seja muito vistoso nem vocacionado para afirmações sensacionalistas. Em 1991, dividirá a sua atividade entre as duas formações que integra. Quanto aos Sétima Legião têm poucas atuações agendadas, sendo duas delas no estrangeiro (Bélgica e Canadá). O objetivo desta formação não é, de resto, atuar ao vivo, antes estão mais preocupados em começar a compor e tocar material para um novo trabalho de estúdio, sucessor do triunfante “De Um Tempo Ausente”, lançado no Natal de 1989. É um trabalho mais a médio prazo e não é provável que seja editado antes dos finais deste ano/princípio do próximo. Diametralmente oposta é a ideia dos Madredeus, cuja digressão é para já a sua grande prioridade.

Para além das duas coisas, Rodrigo planeia também desenvolver este ano o seu projeto a solo que define como um trabalho de sintetizadores com computadores e surge na sequência da encomenda para a banda sonora do filme de estreia de Manuel Mozos. O artista encontra-se em negociações para a publicação do disco resultante com uma editora local. Com tanta coisa que fazer, Rodrigo está naturalmente um pouco à margem do trabalho alheio. “Tenho estado um bocado afastado do panorama local. As coisas que tenho ouvido... Acho é que há uma série de grupos que têm conseguido sobreviver.”

 
SÉRGIO GODINHO
Curtas metragens, programas de televisão, concertos em Goa e Macau

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“Escritor de Canções”, Sérgio Godinho parece este ano apostado em explorar outros tipos de linguagem: vídeo e cinema. Já tem gravados dois dos seis programas que tenciona apresentar na televisão sob o genérico de “Luz na Sombra”, série que explora algumas das principais funções inerentes à produção musical – como recentemente explicou, em entrevista concedida ao PÚBLICO. Além disso, tenciona realizar e produzir quatro filmes, quatro curtas metragens, no fundo “extensões de trabalhos de ficção que habitualmente faz em canção”. “Anda tudo ligado”, como ele próprio diz. Discos, este ano, só se estes projetos falharem. Quanto ao espetáculo “Escritor de Canções”, que alcançou grande sucesso enquanto esteve em cena no Instituto Franco-Portugais, tenciona levá-lo a Goa e Macau já em fevereiro.

Para o ano em curso, espera da música portuguesa que surjam coisas novas, mas que não sejam “indigestas”. É de opinião, no entanto, que adiantar mais qualquer coisa, seria como “fazer previsões sobre a guerra no Golfo”. Assim, acha que “todas as hipóteses estão em aberto”. Segundo ele, “criatividade é o que não falta e em Portugal é uma coisa estimulante”. Infelizmente parece que o que falta mesmo é “um mercado, mesmo para os consagrados. O consumo não é tão extenso como isso e o que há são casos esporádicos, como o Rui Veloso, de facto um fenómeno, mas que não faz a Primavera”. De resto, o costume: “A nível de estruturas organizadas para ‘tournées’ e espetáculos ao vivo, a coisa não tem evoluído muito positivamente.”

Em relação ao tal apoio ou não das câmaras municipais, lamenta que o panorama esteja “um bocado em recessão”. O rock é ainda assim quem menos razões tem para se queixar: “As câmaras acham que a juventude quer sobretudo rock e é como se lhe desse um brinde. Depois, há aquela fação adepta das canções tipo Marco Paulo e tudo é encaminhado para aí”. Na questão de concertos, “devia dar-se prioridade a ‘tournées’ comerciais, inclusive com patrocínios, mas que sejam viáveis”, aponta. É que da maneira como as coisas estão, criaram-se, segundo ele, certos “vícios”, quer no público quer nos organizadores, com espetáculos gratuitos, mas sem qualquer espécie de condições. “É importante que as câmaras promovam a cultura, mas com o entendimento das estruturas necessárias para o fazer.”

 

XANA

Jorge Dias

 

ZÉ PEDRO

Jorge Dias

 

 

28/10/2025

A arte do desequilíbrio perfeito [Penguin Cafe Orchestra]

 PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 9 JANEIRO 1991 >> Pop Rock

 

A ARTE DO DESEQUILÍBRIO PERFEITO

 

São como uma orquestra de circo, exótica e colorida – seis pinguins de corpo humano que arribam a Portugal para nos fazer cócegas e confundir. Clássicos e folclóricos, os Penguin Cafe Orchestra deitam abaixo todos os castelos sem que ninguém lhes leve a mal. O melhor é não tentar compreender.

 


O verdadeiro cómico nunca se desmancha. Conta as piadas sem se rir, como deve ser. A “troupe” Penguin Cafe Orchestra é assim mesmo: não para de brincar. Sempre com ar sério, violinos e pautas para desconcertar. São danados para a brincadeira. Pegam em tudo, nos sons todos que fazem o folclore do mundo, abanam um bocadinho os alicerces, não muito, da tradição e entretêm-se a ver como seria se fossem eles os demiurgos.

Simon Jeffes é o maestro da banda da fantasia. Um sonhador. De um sonho nasceu a designação do grupo. Café de pinguins, como poderiam ser ursos polares ou focas. Sonhos frios. Esquisitos. Os bichos em causa têm corpo humano, como aparecem nas capas dos discos. Tocam tambores, ukeleles, dançam, apanham sol. Os mais pequerruchos andam de triciclo.

 

Obscuros

 

Brian Eno reparou neles, como não podia deixar de ser. Brian Eno repara em tudo o que é diferente. Eles eram. Produziu-lhes a estreia em disco, intitulada simplesmente “Music from the Penguin Cafe”, dos menos obscuros gravados para a Obscure. A capa original era como todas as outras da editora – um quadradinho de luz aberto sobre paisagem urbana escurecida. Anos mais tarde, a E.G. apagou a noite, substituindo-a pelos pinguins, refrescando-se à luz do sol. Comparada com os assombramentos oceânicos de Gavin Bryars ou os malabarismos conceptuais de John Cage, Jan Steele, Michael Nyman, Chritopher Hobbs ou Tom Philips, na altura juntos e “obscuros”, a música dos Penguin Cafe Orchestra soava a sol, a brinquedos tocados por meninos a quem deixaram brincar aos “clássicos”. Na época, não se parecia com nada. Rock não era. Clássico muito menos. Para folclore havia erudição e eletrónica a mais. Experimentais, talvez?... Se se quiser... Embora nesta categoria não haja quase nunca espaço para dançar, nem para o simples prazer de tocar.

Percebe-se que Simon Jeffes se diverte a confundir as mentes menos ginasticadas. Ou talvez queira que acreditemos nele, à boa maneira elegante dos excêntricos genuínos. De 1974, ano em que começaram a gravar o primeiro álbum, até hoje, consolidou-se o discurso, tornado entretanto familiar pelo hábito e o gosto pelo bizarro, característico do século.

 

A vida no circo

 

Em seis anos gravaram outros tantos álbuns, entre os quais um mini de reduzida circulação. Os três primeiros permanecem, até à data, como os melhores: “Music from the Penguin Cafe” (1976), “Penguin Cafe Orchestra” (1981) e “Broadcasting from Home” (1984). Era a novidade, mas não só. Havia o gosto pelo risco, a vontade de tudo experimentar. A procura de um equilíbrio entre todos os géneros musicais que se diria impossível de alcançar. Ao fim e ao cabo, se não o conseguiram, pelo menos, honra lhes seja feita, fizeram gala em exibir o espetáculo esplendoroso do desequilíbrio perfeito. Ainda e sempre uma brincadeira?

“Signs of Life” (1987) e “When in Rome” (registo ao vivo, 1988) são mais calmos e previsíveis. Quase clássicos, se a palavra não soasse, neste caso, a perversão. O mundo, para os Penguin Cafe Orchestra, é um circo aberto a todas as idades. Da História, fazem tábua rasa. Cantam e tocam, com a mesma seriedade distanciada, o tradicional épico “Giles Farnaby’s Dream” e temas que intitulam solenemente de “O som de alguém que amas, que se vai embora e isso não interessa”, “As calças de Pitágoras” e “O êxtase de pulgas dançarinas”. Têm uma especial predileção por feijões.

Utilizam em disco e em palco, muitos instrumentos, acústicos, cómicos e eletrónicos: ukelele (o nosso cavaquinho), cuatro, acordeão, as cordas todas, dulcitone, harmónio, omnichord, kalimba, a lista continua. Há quem os leve muito a sério ou exatamente o contrário – a banda “folk” irlandesa Patrick Street inclui, no seu último álbum, o tema “Music For a Found Harmonium”, como se de um clássico tradicional se tratasse. Admirável mundo novo. Hoje, em Coimbra, no Teatro Gil Vicente, sexta em Lisboa, no Teatro S. Luiz, e sábado no Porto, Simon Jeffes, Geoffrey Richardson, Helen Liebman e mais três explicam por sons a lógica da “Rua Sésamo”. Histórias estimulantes, como por vezes se contam no café.

 

 

OS DISCOS

 

“MUSIC FROM THE PENGUIN CAFE” (1976, Obscure, reed. E.G.)

Estreia magistral. O caos sob controlo. Canções falsamente folclóricas alternando com longas sequências (“ZOPF”, “The Sound of Someone...”) em que a eletrónica serve para ligar caixinhas de música à corrente. Pequenos “trompe l’oeil’ melódicos de fazer arrebitar o ouvido. Pinguins à solta. Uma delícia.

 

“PENGUIN CAFE ORCHESTRA” (1981, E.G.)

Superdivertido. O “non-sense” como lógica irredutível, elevado à dignidade de grande arte. O tal das “caçlças de Pitágoras” e das pulgas em êxtase. Canções curtas em extensão, mas enormes em capacidade criativa e subversão inocente. Como as calças do filósofo.

 

“BROADCASTING FROM HOME” (1984, E.G.)

Na senda dos anteriores trabalhos, opta no entanto por vias mais declaradamente “clássicas”, como em “Heartwind”, com predomínio das cordas, ou ambientais como o satiesco “Now Nothing”. “Music by Numbers” prossegue o fascínio pela matemática utilizada à avessas.

 

“SIGNS OF LIFE” (1987, E.G.)

Dissipado um pouco do fascínio da trilogia inicial, tornada previsível, a música dos pinguins perdeu em novidade o que ganhou em seriedade. Como se brincar fosse agora uma coisa muito séria. O que antes era alegria de criança não passa aqui de riso amarelo. Também... A vida não é só brincar...

 

“WHEN IN ROME” (1988, E.G.)

Gravado ao vivo na capital italiana, o disco serve apenas para demonstrar mais uma vez o reconhecido virtuosismo dos músicos. Nenhum original, de uma das bandas mais originais de sempre da música popular. Os Penguin Cafe preparam-se para editar brevemente um disco gravado com orquestra, das verdadeiras... À atenção da Gulbenkian...