PÚBLICO SÁBADO, 23 FEVEREIRO 1991 >> Local >> Televisão
Não existe, a solidão?
AMOR,
anarquia. Ou “Amour anarchie”, dito com aquela musicalidade picante e
melancólica de que só o francês é capaz. Amor e liberdade absolutos como os
cantava Léo Ferré, no início da década de 70, num duplo álbum de histórias
escritas a fogo que fez história. Hoje, volvidos vinte anos, as palavras
regressam na voz e no corpo do mesmo homem, em “Ferré 90”, realizado nos
estúdios da Societé Française de Productions, por Jean-Christophe Averty,
pretexto para de novo se evocar as palavras-chaves da vida e obra do poeta-cantor.
Obra ímpar, da qual ficaram
canções que parte de uma geração não esqueceu: “Le Mal”, “La Memoire et la
Mer”, “La Folie”, “L’Amour Fou”, “La Solitude” (“dizer que a solidão não
existe, como na canção, é uma idiotice” – afirmava em entrevista publicada há anos,
aquando da sua última visita a Portugal). O mal, a memória, a loucura, o amor
louco, a solidão – outras tantas maneiras de dizer a arte quando assumida até
às últimas consequências. E Paris, sempre (“Paris, je ne t’aime plus”, “Paris,
c’est une idée”), cidade-mulher que dizem ser de luz e berço dos poetas que o
demónio cativou: Valery, Éluard, Aragon, Prévert, Breton, outros tantos
surrealistas que Ferré cantou com a raiva, a ternura e a lucidez dos
sonhadores. Breton não lhe perdoou o ter querido publicar “Poètes, vos
papiers”, como se de lixo se tratasse. Yves Montand telefonou uma vez ao autor
de “Chanson Metaphisique” para lhe chamar “fascista vermelho”. Ferré,
felizmente, não podia ser expulso de qualquer grupo pela simples razão de não
fazer parte de nenhum – “estou sozinho na vida, sozinho na minha cabeça” –
costumava dizer. Continuou a amar e a gritar, recusando a passagem monótona dos
dias e a prisão das teorias, apaixonado pelo impossível até à loucura e
exaustão.
Loucura apaixonada,
embriagada de palavras e visões. Nos versos, mas também na música – Léo Ferré
apreciava o romantismo de Ravel e Debussy (“um ‘poeta’ extraordinário”).
Detestava o logicismo implacável dos dodecafónicos como Webern e Schoenberg. De
Jacques Brel dizia não compreender por que razão as pessoas sempre associavam
os seus nomes. Avesso à “modernidade” do efémero, fez todavia parte do
agrupamento pop “Zoo”. Não se importa de reconhecer qualidade a um “videoclip”
de Mick Jagger.
E depois, sempre, a paixão pelas mulheres, a paixão pelo amor (chamou-lhe “a eternidade do instante”), o gesto largo e definitivo de quem não tem nada a perder. Léo Ferré representa a vertente libertária da música popular francesa. Hoje à noite vamos vê-lo e ouvi-lo cantar que é possível negar “toda e qualquer autoridade, venha ela de onde vier”.
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