08/12/2010

Licor de maçã [XTC]

Sons

16 de Abril 1999

XTC gravam com orquestra

Licor de maçã


“Apple Venus, Volume One” é o álbum da luxúria dos XTC. A pena de um pavão onde se esconde a imagem da vulva de uma mulher. No planeta Vénus, Andy Partridge, herdeiro dos segredos pop de Paul McCartney e Ray Davies, faz escorrer da orquestra licor de maçã. Colin Moulding, o seu parceiro, falou ao PÚBLICO dos caminhos que levaram à feitura daquele que é o melhor álbum dos XTC desde “Skylarking”.

Foi preciso esperar sete anos para os XTC ultrapassarem o problema legal que levou à ruptura da banda com a Virgin. Tempo aproveitado para a maturação de uma galáxia de canções inglesas até ao caroço e tão suculentas como um pomar de melodias com raízes nos anos 60.
PÚBLICO – “Apple Venus” é um álbum magnífico, um dos melhores de sempre da banda, sem dúvida o melhor desde “Skylarking”. Concorda?
R. – Toda a gente diz isso. É um álbum que flui como um todo, algo que nem sempre conseguimos fazer antes. É, sem dúvida, o trabalho mais coerente desde “Skylarking”.
P. – Nota-se o prazer que tiveram em tirar o máximo partido das possibilidades oferecidas pelo estúdio. O prazer de manusear um brinquedo?
R. – Prefiro pensar que decorámos as canções apenas com aquilo de que elas precisavam, nada mais do que cada uma delas pudesse aguentar. Tratou-se de encontrar o vestuário certo para cada letra específica.
P. – Correm rumores de que “Apple Venus” esteve mesmo para ser o primeiro álbum a solo de Andy Partridge. É verdade?
R. – Quem disse isso foi Dave Gregory, o nosso ex-teclista, mas ele não tem razão. O álbum é o resultado de um esforço conjunto. Na realidade, o Dave não gostou muito da ideia de fazer este álbum, nem sequer queria gravá-lo. Ele até toca no disco, como é que podia ser um disco a solo do Andy? Penso que ele disse isso em desespero.
P. – Porquê desespero?
R. – Porque se sentia infeliz e tinha que o demonstrar. Ele nunca esteve de acordo em fazer um álbum com orquestra, preferia usar mais guitarras eléctricas, esse tipo de sonoridade. Mas se fizéssemos isso, estaríamos a repetir algo que já tínhamos feito em “Nonsuch”.
P. – Ao longo de todos estes anos, houve momentos de tensão, mesmo de alguma rivalidade, entre você e Andy. Andy foi sempre uma espécie de Lennon e McCartney ao mesmo tempo, enquanto você representou o papel de George Harrison, com contribuições muito mais esporádicas para o som do grupo. Sente-se confortável nessa posição?
R. – Andy escreve mais do que eu. Não se trata de uma divisão de 50 por cento para cada um. Digamos que eu fico com 25 por cento para mim...
P. – Consta que ele tinha na carteira 40 canções para este álbum e você, seis...
R. – Os números não são bem esses... Há aí um certo exagero da parte dele. É verdade que ele tinha mais canções do que eu, mas a verdade é que elas são todas as boas. E é ele quem toma as decisões. Mas, quando é preciso, também imponho os meus pontos de vista.
P. – A questão que se pode pôr é se as próprias canções de Andy seriam as mesmas sem o seu “input”...
R. – Sim, gosto de pensar que assim acontece. E, provavelmente, ele também influencia a minha escrita. No estúdio, pedimos sempre a opinião do outro. Ele pergunta-me se as suas canções precisam de mais alguma coisa. Há um ponto em que só a imaginação de uma pessoa não chega para fazer avançar uma canção. Temos funcionado bem desta maneira nos últimos 20 anos, não vejo razão para mudarmos.
P. – Antes de “Apple Venus”, editaram uma caixa com gravações ao vivo antigas para a BBC. Não acha que foi uma operação algo desnecessária, que não veio trazer nada de novo ao que já se conhecia da banda?
R. – A questão é que essas gravações para a BBC já estavam feitas há muito tempo e haveria sempre alguém para as explorar. Se não fôssemos nós, outra pessoa qualquer o faria, foi assim que nos foi apresentado o assunto. Corríamos o perigo de alguém comprar a licença de edição dessas gravações e editá-las de qualquer maneira, ou de uma maneira com a qual poderíamos não concordar. Assim, tomámos nós a iniciativa e apresentámos nós próprios esse material. Foi uma questão de controlo.
P. – Entre “Nonsuch” e o novo álbum há um intervalo de sete anos. Foi preciso todo este tempo para encontrarem inspiração?
R. – A questão é que, depois de 20 anos a gravarmos para a Virgin, não queríamos voltar a gravar para esta editora. É um assunto já batido, o contrato, que achamos injusto, que existia entre nós e a Virgin. Não quisemos desperdiçar, ou não ter qualquer compensação monetária, o material que tínhamos composto. Por isso estivemos todo este tempo sem trabalhar para o grupo, embora nos envolvêssemos em projectos com outras pessoas. No meu caso trabalhei com uma banda francesa, L’Affair Louie Triel [NR: Ou assim nos soou o nome, através do telefone...]. Também toquei e produzi um tema de um álbum da mulher de T-Bone Burnett, Sam Philips, “Martinis & Bikinis”.
P. – Além dos Beatles, evidentemente, os Kinks sobrevoam como uma nuvem “Apple & Venus”. “I’d like that”, por exemplo, é um tema tão marcado por Ray Davies que até esconde na letra uma tal “Victoria”...
R. – Sim, Ray Davies anda sempre por aí... É, sem dúvida, o artista que mais influencia o Andy. Mas há também os Beach Boys, Burt Bacharach e autores de musicais como a dupla Rodgers & Hammerstein. Uma das “críticas”, ou opiniões, que mais temos ouvido nos últimos tempos é que muitas das canções do álbum parecem ter sido retiradas de peças musicais. A mim isso agrada-me. Tanto eu como Andy adoramos bandas sonoras. É um género musical que está hoje mais ou menos morto e que gostaríamos de poder reavivar. Hoje em dia o que se faz é enfiar à força numa banda sonora um êxito pop qualquer. Não se escreve nada com qualidade de propósito para o filme. Gostaríamos de compor um dia algo tão bom como “What’s New, Pussycat”, por exemplo.
P. – “Apple Venus” é o “Sgt. Pepper’s” dos XTC?
R. – Não sei. Só sei que é um dos meus discos preferidos dos XTC. E a resposta tem sido boa em toda a parte. As pessoas parecem gostar. O facto de usarmos uma orquestra também afastou algumas pessoas. O facto de haver texturas orquestrais em vez de texturas mais tradicionais, de guitarra. Mas continuam a ser, apenas, canções pop...
P. – “Knights in shining karma” é um tema misterioso, dos mais misteriosos do disco. Fala de quê?
R. – Isso também eu gostaria de saber! (risos). Não fui eu que escrevi o tema, por isso é difícil avaliá-lo.
P. – Já houve quem dissesse que muita gente acha a música dos XTC brilhante, mas não faz a mínima ideia de que é que tratam as letras. Acha isso?
R. – No meu caso, penso que escrevo de uma forma bastante literal. Uma escrita muito clássica. Gosto de coisas directas, de estabelecer uma relação directa com os ouvintes. As pessoas vivem as canções, por isso gosto de escrever sobre sentimentos simples com que as pessoas se possam relacionar. Uma das minhas canções deste álbum, “Frivolous tonight”, provoca esse efeito, torna o coração de quem a ouve leve. Já ninguém quer escrever este tipo de canções, como “Big spender”, de Shirley Bassey, canções ligeiras. As novas bandas, especialmente as mais novas, escrevem todas sobre assuntos escuros e pesados, pensando que é a única maneira de serem levados a sério e isso não é verdade. A escrita de Andy é mais complexa. Tem sentidos ocultos, há sempre um lado que não é revelado e que exige um trabalho difícil de decifração. “Knights in shining karma” é um desses temas. Não sei o que significa mas sei que é para ser ouvido em momentos de solidão.
P. – Por falar em letras, é a primeira vez, se não estou em erro, que não aparecem impressas na capa, não é?
R. – Boa pergunta! Pessoalmente, preferia que as letras aparecessem, mas o Andy insistiu que, desta vez, não. Não percebi bem porquê, devo confessar. Um livrete não ficaria nada mal. O Andy achou que as pessoas deveriam ficar mais entregues a si próprias. Mas se houver pânico e gritos a pedir ajuda, com certeza que as incluiremos numa próxima impressão [risos].
P. – Quem teve a ideia para a capa?
R. – Foi tirada de um livro de arte editado nos anos 50, onde aparecia esta figura da pena de um pavão, fotografada em folha de alumínio muito brilhante. Visualmente, resulta muito forte. Se olhar bem para o centro da pena, há-de reparar numa forma, uma sombra, muito ambígua, que tanto pode ser interpretada como uma maçã como uma vulva de uma mulher, daí o título “Apple Venus”. Uma conotação sexual. Muita da música do disco está associada a esta ambiguidade.
P. – Presumo que, a seguir, sairá um “Apple Venus, Volume Two”?
R. – Incluímos este grupo de canções num volume 1 porque era este o som que nos apetecia fazer, deixando de lado as guitarras eléctricas. Mas a verdade é que ficaram de fora canções com guitarra eléctrica e vamos ter de as gravar. Por isso vamos começar a trabalhar, daqui a alguns meses, num volume 2, que será um álbum cheio de material à base de guitarra, a sair, talvez, em Fevereiro do próximo ano.

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