17/05/2015

O último adeus de Amália



9 de Julho 2001

Velocidade impede o povo de acompanhar cortejo

Trasladação de Amália para o Panteão Nacional

O último adeus de Amália

Ao contrário do que aconteceu no funeral da fadista, foi impossível segui-la na última das despedidas. O carro funerário foi mais veloz. No Panteão, o Presidente da República fez o elogio de Amália, protagonista de "uma das carreiras mais gloriosas do século XX"

"Não sei se fui amada", costumava dizer Amália. A homenagem nacional que ontem lhe foi feita, acompanhada da trasladação dos seus restos mortais, do Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, onde repousavam desde a data da sua morte, a 6 de Outubro de 1999, para o Panteão Nacional, onde a partir de ontem passa a ser a única mulher aí presente, ao lado de vultos da cultura portuguesa como Almeida Garrett, João de Deus e Guerra Junqueiro, mostraram que não foi esquecida, como tanto receava. Não tanto pela pompa e circunstâncias da cerimónia em si, como pela demonstração de fidelidade e saudade com que o povo continua a acarinhar a sua memória. Amália foi e continua a ser amada pelos portugueses.

Os rituais de homenagem propriamente ditos, consumada a operação prévia de transportar o corpo da fadista da campa onde se encontrava, para a capela do cemitério, começaram à hora de almoço. Não eram ainda muitas as pessoas que nesse local podiam circular em volta da urna. Uma hora mais tarde já eram algumas centenas, envolvidas na azáfama dos "media". A maioria pessoas de idade, as que ouviram mais de perto a música de Amália. Os novos estão no Meco. O fado de Amália pertence a outra geração. Representou ou não Amália o Portugal dos três "F", fado, futebol e Fátima? Hoje, o fado rejuvenesceu e o futebol transformou-se num negócio. Fátima continua a vender bem.

Uma apresentadora de serviço retoca a maquilhagem. Coloca bâton nos lábios e pó nas faces esquecendo-se, apesar do local, da máxima "do pó vieste, ao pó retornarás". O vento arranca o boné da cabeça de um dos muitos polícias fardados a rigor que compõem a guarda de honra, quebrando-lhe por instantes a solenidade da pose.

No cemitério vai entrando cada vez mais gente. Amália atrai gente. A televisão em directo atrai gente. Uma senhora põe a tocar no gravador que leva na mão, fados da homenageada. Não deixam os outros mortos descansar em paz. Também há turistas, embora não se descortine nas imediações qualquer banca de venda de CD. De quando em quando os altifalantes difundem os testes de som. Um som de baixo, uma flauta, um piano, trémulos com a responsabilidade do momento solene que está para vir.

Às 17h08, poucos minutos depois da hora prevista, a urna, coberta por uma bandeira nacional, é finalmente depositada no exterior, exposta aos raios implacáveis do sol, à força da saudade, à indiscrição das câmaras, à curiosidade impiedosa.

A excitação aumenta. Uma família exibe grandes fotografias emolduradas da fadista. Logo aparece alguém que, por sua vez, os fotografa. Emoção e exibicionismo confundem-se. Um homem traz vestida uma t-shirt com a imagem de Amália estampada. Um grupo de senhoras recorda o nome de outros fadistas, todos eles antigos, incluindo o de Berta Cardoso, de quem Amália era admiradora. O mote principal é: "Eu gostava de Amália. Eu falei com Amália. Eu comprei batatas na mesma mercearia que Amália. Estou aqui. Filmem-me!".

O grupo instrumental e coro juvenis ensaiam uma vez mais as suas canções. Experimenta-se pela enésima vez, o som. O som está bom. A música exprime religiosidade e saudade - "Queremos estar junto de ti!" - ao melhor estilo de baladas pop FM (com mais órgão electrónico). No interior da capela outro coro, improvisado, canta, emocionado, mais uma despedida, ao mesmo tempo que, lá fora, o coro oficial continua a cantar o reportório que faz parte do programa. Misturam-se as canções e os sentimentos. O ruído de um avião abafa ambos. Na capela irrompem aplausos frenéticos, tendo como fundo a imagem de Cristo crucificado. "Amália tem mais encanto na hora da despedida", adaptado à diva do fado de Lisboa, é o hino que ficou". O frenesim das televisões aumenta. A atenção das pessoas, ávidas de aparecer, também. "Só a TVI tem uma quantidade de câmaras", comenta alguém com ar de entendido.

Não há procissão

Ainda antes das cinco e meia da tarde aparece uma comitiva de políticos para cumprimentar os familiares de Amália. Almeida Santos, João Soares, Maria de Belém, Mota Amaral. Pouco depois tem início a missa campal. Tudo decorre nos conformes. A homilia chama a atenção para o facto de que "todos nos encontraremos com Amália na Jerusalém Celeste, para ouvirmos outros fados, diferentes das melopeias da Terra".

O padre destaca ainda algumas das qualidades da música de Amália. Segundo ele, Amália "cantou o tempo, a história dos homens" e "a beleza da criação - o mar, os pinheiros, as fontes, a luz da lua, o lençol de linho...". Acentua ainda - e aqui acerta em cheio - o "fado ardente". O fado de Amália era isso. À bênção, que inclui todos os que jazem no cemitério e a comunicação social, sucede uma oferenda de flores a Nossa Senhora do Carmo, ao som do fado com o mesmo nome. A missa dura uma hora. "Deus a tenha em descanso", remata alguém.

Pouco depois o carro que transporta a urna sai do cemitério. Lá fora, outra pequena multidão, aplaude. Os que seguem atrás da viatura acenam com lenços: "Ela merecia"", "Viva o povo!", "Isto até parece uma procissão". Mas, surpreendentemente, não há procissão. O cortejo fúnebre de 6 quilómetros, através da cidade, de que toda a gente estava a espera, à semelhança do que acontecera no dia do funeral da fadista, nem sequer chega a começar. O carro dispara em velocidade de rally, a abrir. As pessoas, espantadas, desatam a correr atrás dele, tentando acompanhar o bólide. Em vão. A situação passa rapidamente do ridículo para a indignação geral. "Que estupidez!", "Daqui ao Panteão são duas horas!", "Então faz-se uma coisa destas?", "O povo vem cá para acompanhar o funeral e depois desaparecem?", "Quando lá chegarmos já ela passou à frente da porta de casa", "Estiveram ali um dia inteiro a engonhar para isto" são algumas das frases disparadas por quem se dispunha a acompanhar durante mais algum tempo o seu ídolo e via as expectativas goradas, sem aviso. Mesmo assim há quem reaja com bonomia: "O povo devia ser transportado em autocarros!".
Desaparecido o carro funerário na primeira esquina da Rua Saraiva de Carvalho e tendo nós conseguido percorrer apenas uma centena de metros a pé, a opção foi seguir directamente de táxi para o Panteão.

Símbolo colectivo

No largo do Panteão, a multidão é maior do que nos Prazeres e o ambiente tem a solenidade que lhe é conferida pela presença do Presidente da República e do Primeiro-Ministro. Paulo Bragança entra discretamente no monumento. A urna supersónica trava enfim. Um grupo de jovens, afogueados e de língua de fora, que conseguira segui-la, "a correr", desde Alcântara, exibe, ofegante um cartaz rabiscado à pressa: "Amália do coração do povo". Já mais devagar, os seis elementos que transportam a urna recebem a instrução para "seguirem sempre no mesmo passo". Quando a depositam, de novo, agora em frente à entrada do panteão, onde ficará a repousar para sempre, o entusiasmo e fervor populares explodem. O coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra entoa o hino nacional. Há uma senhora que chora e logo uma câmara de televisão salta por sua vez para a sua frente, na ânsia de registar a dor em directo.

Pouco depois das 20h Jorge Sampaio faz finalmente o elogio da artista, destacando nela "símbolo colectivo": "Fez da sua voz uma Pátria, um Bilhete de Identidade, dela e nosso, um passaporte que nos levou a todo o lado". E a "fidelidade ao coração" e a "ressonância universal" do seu fado: "Houve gente que aprendeu a falar português só para perceber as letras". Já com a voz embargada pela emoção, engana-se no nome daquela que, diz, teve "uma das carreiras mais gloriosas do século XX": Amala, em vez de Amália. Tinha razão. Amália foi amada. Ainda é.

Sem comentários: