12/11/2025

Não existe, a solidão? [Leo Ferré]

 PÚBLICO SÁBADO, 23 FEVEREIRO 1991 >> Local >> Televisão

 

Não existe, a solidão?

 

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AMOR, anarquia. Ou “Amour anarchie”, dito com aquela musicalidade picante e melancólica de que só o francês é capaz. Amor e liberdade absolutos como os cantava Léo Ferré, no início da década de 70, num duplo álbum de histórias escritas a fogo que fez história. Hoje, volvidos vinte anos, as palavras regressam na voz e no corpo do mesmo homem, em “Ferré 90”, realizado nos estúdios da Societé Française de Productions, por Jean-Christophe Averty, pretexto para de novo se evocar as palavras-chaves da vida e obra do poeta-cantor.

Obra ímpar, da qual ficaram canções que parte de uma geração não esqueceu: “Le Mal”, “La Memoire et la Mer”, “La Folie”, “L’Amour Fou”, “La Solitude” (“dizer que a solidão não existe, como na canção, é uma idiotice” – afirmava em entrevista publicada há anos, aquando da sua última visita a Portugal). O mal, a memória, a loucura, o amor louco, a solidão – outras tantas maneiras de dizer a arte quando assumida até às últimas consequências. E Paris, sempre (“Paris, je ne t’aime plus”, “Paris, c’est une idée”), cidade-mulher que dizem ser de luz e berço dos poetas que o demónio cativou: Valery, Éluard, Aragon, Prévert, Breton, outros tantos surrealistas que Ferré cantou com a raiva, a ternura e a lucidez dos sonhadores. Breton não lhe perdoou o ter querido publicar “Poètes, vos papiers”, como se de lixo se tratasse. Yves Montand telefonou uma vez ao autor de “Chanson Metaphisique” para lhe chamar “fascista vermelho”. Ferré, felizmente, não podia ser expulso de qualquer grupo pela simples razão de não fazer parte de nenhum – “estou sozinho na vida, sozinho na minha cabeça” – costumava dizer. Continuou a amar e a gritar, recusando a passagem monótona dos dias e a prisão das teorias, apaixonado pelo impossível até à loucura e exaustão.

Loucura apaixonada, embriagada de palavras e visões. Nos versos, mas também na música – Léo Ferré apreciava o romantismo de Ravel e Debussy (“um ‘poeta’ extraordinário”). Detestava o logicismo implacável dos dodecafónicos como Webern e Schoenberg. De Jacques Brel dizia não compreender por que razão as pessoas sempre associavam os seus nomes. Avesso à “modernidade” do efémero, fez todavia parte do agrupamento pop “Zoo”. Não se importa de reconhecer qualidade a um “videoclip” de Mick Jagger.

E depois, sempre, a paixão pelas mulheres, a paixão pelo amor (chamou-lhe “a eternidade do instante”), o gesto largo e definitivo de quem não tem nada a perder. Léo Ferré representa a vertente libertária da música popular francesa. Hoje à noite vamos vê-lo e ouvi-lo cantar que é possível negar “toda e qualquer autoridade, venha ela de onde vier”.

Arte Pop e Maçonaria [Pop Dell'Arte]

 PÚBLICO SÁBADO, 23 FEVEREIRO 1991 >> Cultura

 

Pop Dell’Arte hoje em Alvalade

 

Arte Pop e Maçonaria

 

RESSUSCITADOS dos mortos, os Pop Dell’Arte, banda liderada por João Peste, tocam hoje à noite, pelas 22h, no cinema Alvalade, em Lisboa, juntamente com os More República Masónica, provando que continua a haver lugar (por enquanto) para os sons alternativos, na cena musical lusitana.

Formada em 85, a banda de Peste fez sempre questão de se mostrar diferente, na música e na atitude dos seus membros. Onde para muitos a Pop se resolve na linearidade das canções e na repetição de tiques repescados da “estranja”, para o vocalista dos PDA o risco é assumido enquanto condição necessária para a própria sobrevivência da banda. Por isso pararam, em 1989, dando João Peste início a uma série de atividades paralelas: subversões várias e disco com os “Acidoxibordel” ou a apresentação, com Nuno Rebelo, o ano passado na Feira do Livro, do espetáculo “Alix na Ilha dos Sonhos”. Para trás ficavam os maxis “Querelle”, “Sonhos Pop” e “Illogik Plastic” e o álbum “Free Pop” (este mês reeditado em CD), por alguns considerado como dos melhores de sempre da música portuguesa, e espetáculos ao vivo como aquele ao lado dos niilistas alemães Sprung Aus Den Wolken, no extinto Rock Rendez-Vous.

Razão principal para a dissolução (consensual) do grupo foi, segundo João Peste, a saturação musical provocada pela ausência de perspetivas e motivações dentro de um meio nacional demasiado “pequeno” e fechado. Agora a situação alterou-se, havendo, parece, fortes possibilidades de os Pop Dell’Arte arrancarem para uma carreira no estrangeiro. Daí o regresso, com uma formação constituída por João Peste (voz), José Pedro Moura (baixo), Luís San Payo (bateria), Rafael Toral (discos, fitas magnéticas, guitarra) e João Paulo Feliciano (guitarra), estes dois últimos juntos no novel projeto “No Noise Reduction”.

Na primeira parte atuam os More República Masónica, banda relativamente recente formada por Paulo Coelho (voz, percussão), Mário Gil (guitarra, voz), Jorge Dias (baixo, voz) e Jaime Pimentel (bateria). Apostados, segundo dizem, em “rapinar” onde for mais interessante” para dar “corpo a uma sonoridade forte e ritmada, derivada diretamente do rock ‘n’ roll, os MRM contam no ativo atuações “à margem” no Sexto Concurso de Música Moderna do RRV e no concurso televisivo “Aqui D’el Rock”, e a gravação de uma “demo tape” reunindo cinco temas dos quais “Azul Dietrich” foi incluído na coletânea “Insurrectos” da editora da Guarda, Área Total.

Alma do Mundo [Natália Correia]

 Pop Rock

 

20 FEVEREIRO 1991

 

ALMA DO MUNDO

 

“Vozes da Terra”. Vozes femininas, do grupo de cantares do Manhouce, equivalentes às daquelas misteriosas búlgaras que “falam com Deus”. A editora procurou a semelhança, na mistura das imagens, na apropriação mercantil do que é por natureza divino. Como se a eternidade estivesse na moda.

Natália Correia escreveu o texto de apresentação do disco, impresso na contracapa, ponto de partida para uma conversa ao sabor dos ventos e das marés. Das Beiras, os símbolos correram até desaguarem no infinito. De Portugal se partiu e parte sempre para mundos mais além. A alma prateada e granítica da Serra confundida com a matéria mais antiga do mundo primordial. Seriam duas, se a distância existisse.

Natália Correia detém segredos e deles fala e escreve livremente, como uma pomba astral, voando entre a noite e o dia, a Lua e o Sol, dizendo aquilo que É e urge ser dito. Noutras esferas chamar-lhe-iam sacerdotisa. As palavras fluíram, reais, esculpidas em som e luz. Quiseram-se caminhos para as fontes e barcas para navegar o mar. E assim foi.

Hoje discute-se, com redobrada energia, a religião (e o ritual), no sentido original de “re-ligação”: “Há muito que falo na revitalização do espaço sagrado. O sentimento religioso tem que ser conduzido numa direção que abranja o reencontro daquilo que já foi a totalidade, ou seja: a fusão das duas polaridades, masculino/feminino, Fogo/Água, Yang/Yin.” Falou-se de alquimia.

Falou-se de música e das forças que a conduzem: “Por detrás de toda a expressão artística, há esse fluir de energias, dirigidas para a procura da beleza que exprime a perfeição.” Energia que magos negros utilizam, invertendo valores e polaridades. “Para muitos será um álibi para adiar o encontro com a Verdade. Para outros é um agir inconsciente expresso no tópico ‘o mundo ás avessas’, ou seja, na inversão dos valores para procurar a sua verdadeira colocação numa ordem perdida ou, se quisermos, esquecida.” Sinais do Apocalipse? “Vivemos tempos de iluminação, tempos de revelação (é esse o significado da palavra) e, precisamente nessa perspectiva, há aqueles que se aliam aos demónios que estão à solta e os que procuram a Luz que jorra da outra face.”

Raymond Abellio, autor incontornável dos tempos atuais (quem o conhece, apesar de já nos ter visitado, nos finais da década de 70, pela mão, força e esclarecimento do pintor Lima de Freitas e da própria Natália Correia?), refere-se ao papel de Lúcifer no mundo moderno. “Não falo em Lúcifer porque isso me coloca numa visão institucionalizada da religião. Prefiro remontar ou recuar aos gnósticos, cuja posição, em muitos aspectos, é para mim cada vez mais significativa, no sentido de denunciarem na humanidade uma extração daquilo a que eles chamam os ‘pseudo-antropos’. Há uma história que ajuda a compreender o significado do termo, de um frade franciscano para quem o Juízo Final não era mais do que um grande esclarecimento, porque nele se distinguiriam os verdadeiros humanos daqueles que passavam por humanos, sendo na realidade sapos, lagartos, escorpiões… Verifico que estamos precisamente num período histórico em que uma guerra despudoradamente demencial vem dar razão ao meu velho amigo franciscano. O pseudo-antropo é um ser mascarado de humano. A sua energia é tão poderosamente maléfica que governa os destinos do mundo. A música é um dos instrumentos destes magos negros. Não só a música. A nocividade da sua ação estão a atingir a cultura em geral que, não por acaso, se deixa absorver pela máquina da indústria.”

O diabo aparece amiúde com a forma de mulher. Para a autora de “Mátria”, “O Dilúvio e a Pomba” e “O Encoberto”, entre outras obras, tal facto, como (quase) tudo, tem uma explicação: “Onde alguns leem Eva, outros leem Lilith, para acentuarem o demoníaco no feminino, dentro de um enquadramento da atração que leva Adão a comer o fruto proibido e consequentemente à expulsão do casal do Paraíso. É preciso não esquecer que no Antigo Testamento se cruzam duas influências: uma que acata o velho princípio da bissexualidade do hermafroditismo divino, expresso na sentença ‘e Deus criou Adão, fazendo-o macho e fêmea, à sua semelhança’; outra, aquela que poderemos classificar de reformismo patriarcal, que concentra todo o odioso sobre a mulher, convertendo-a num ser demoníaco (Lilith). Cabe aqui acentuar que a serpente, sendo na metáfora genesíaca considerada um animal diabólico, segundo as concepções da tal revolução patriarcal que lança o estigma sobre o grande emblema da ginecocracia, é, neste caso (testemunha-o ainda a nossa civilização dolménica), sinal de uma tradição em que, ao lado da polaridade masculina, avultava o aspecto feminino da divindade.”

Ser e conhecer. Como se manifestam então, ao nível gnoseológico, essas duas polaridades complementares, cuja atração recíproca, amorosa, Natália Correia nomeia na conjunção da “Alma mater saudosa do pólo celeste como que consumava o todo (…) nas núpcias do céu e da Terra”? “A intuição é um elemento do sófico feminino (a ‘sofia’, como os gnósticos diziam e sabiam). A penetração, a demanda masculina, é o caminho para o sófico. Por isso a mentalidade masculina é mais filosófica. Ninguém percebeu isso melhor que os nossos trovadores. ‘Philo’ significa afeto, amor. O amor pela mulher (ou através dela), na qual viam refletida a face divina. O sófico feminino revela-se no saber natural da alma mãe.”

A poetisa afirma-se “decepcionada” quando algumas das mulheres que conhece e considera “de grande responsabilidade intelectual” veem na adoração da dama (a mulher) de que falavam os surrealistas, “uma forma de a aprisionar e manter acorrentada a uma situação tradicional”. “Fazer-se amar e venerar pelo homem”, afirma convictamente Natália Correia, “é hoje a obrigação mais imperiosa da mulher”. Que cada um perceba do que lê aquilo que for capaz de perceber.

Lentamente o mundo material reconstruiu-se de novo, na voz e na figura de Isabel Silvestre, solista do grupo de cantares do Manhouce. Música representativa da tal “teologia do feminino provectamente anterior à religião patriarcal dos hebreus”, a que Natália Correia alude, de que “em Espanha, o vascuense é testemunho linguístico e que em Portugal, se mantém perseverantemente enraizada sobretudo na Beiras”. Por isso as vozes da Terra, e em particular a de Isabel Silvestre, lhe provocam, quando ao ouve, “um frémito maior do que aquele causado pela música erudita”: “Quando se ergue o coral de Manhouce, ouço a voz dessa Mulher que nos chega do fundo dos séculos que formaram a nossa natureza cultural.” Assim se cumpriu o tempo certo, desdobrado nas curvas espiraladas do destino.

A união faz a força [UPAV]

 PÚBLICO SEGUNDA-FEIRA, 18 FEVEREIRO 1991 >> Cultura

 

Cooperativa cultural lança novos discos de música portuguesa

 

A união faz a força

 

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Hoje, às 18h30, na sala ogival do castelo de S. Jorge, em Lisboa, a UPAV apresenta sete discos editados no selo do mesmo nome e autoproduzidos pelos próprios artistas e sócios da cooperativa.

 

Provenientes de áreas tão diferentes como a “canção de autor”, o fado, a música ligeira, o jazz, a poesia ou a música tradicional, os discos, agora editados, representam o culminar de um esforço e de uma aposta da UPAV (União Portuguesa de Artistas de Variedades, fundada em 1983 por um grupo de dez artistas portugueses), no sentido de furar os esquemas habituais de produção e distribuição (a cargo da Mundo da Canção) do mercado discográfico nacional e evitar, a todo o custo, aquilo que consideram como a “morte próxima da música portuguesa”. Para isso, recorrem a meios e estratégias editoriais à margem do sistema, desde os aspetos ligados à produção até à própria gestão das carreiras artísticas, sem descurar a parte técnica ou o lançamento e divulgação de novos valores.

Do núcleo fundador da UPAV permaneceram até hoje José Mário Branco, Rodrigo, Carlos do Carmo, Dina e Alexandra. Fazem ainda parte da cooperativa os artistas Maria Guinot, Jorge Lomba, a Brigada Victor Jara, Manuel Tentúgal (dos Vai de Roda), Luísa Basto, Amélia Muge, José David (Almanaque), Vasco Martins, Manuela de Freitas e Mário Viegas, um produtor (Orlando Laranjeiro) e dois técnicos (António Mileu e Alfredo Almeida).

Em termos discográficos, o resultado das múltiplas atividades do grupo poderá a partir de hoje ser apreciado através da tal fornada de sete discos, a saber: “Correspondências” de José Mário Branco, “Fado – Histórias, Baladas e Lendas” de Rodrigo, “Aqui e Agora” de Dina, “Maria Guinot” de Maria Guinot, “Poemas de Bibe” de Mário Viegas e Manuela de Freitas, “Jorge Lomba” do estreante do mesmo nome e “Terreiro das Bruxas” dos Vai de Roda (entretanto editado e já criticado nas páginas do PÚBLICO).

“Correspondências”, de José Mário Branco (gravado há já ano e meio e recusado por todas as grandes editoras...), assinala o regresso em disco do autor de “Margem de Certa Maneira” e “Ser Solidário”, após um interregno de seis anos e da gravação, em 85, da obra-prima “A Noite”. Canções, cartas e curtas, por oposição ao tom épico-dramático da longa e magistral peça que dava nome ao álbum anterior.

Quanto ao disco de Rodrigo, subintitulado “Histórias, Baladas e Lendas”, o seu autor procura juntar o fado tradicional com histórias e tradições mais antigas. Para além dos inéditos inclui ainda uma homenagem a João Villaret e simultaneamente à revista portuguesa. “É também um disco que pretende de certo modo celebrar os vinte anos de carreira do Rodrigo” – como José Mário Branco faz questão de frisar.

De Dina pouco se ouviu falar desde o Festival da Canção de 82. O seu disco, ainda segundo José Mário Branco, “é exemplar de uma música mais jovem e de uma rapariga que teve um início de carreira quase retumbante e que está inexplicavelmente há oito anos sem gravar, tendo embora contrato com uma editora”. Dina está de volta, “Aqui e Agora”.

Outro regresso é o de Maria Guinot, depois de há quatro anos ter autoproduzido “Essa Palavra Mulher”. “Silêncio e Tanta Gente” foi das melhores canções que alguma vez passaram por um Festival da Canção.

Mário Viegas, depois (ou ao lado) de Villaret, é o melhor declamador de sempre da poesia portuguesa. Para ele, “Palavras ditas são palavras vivas”. Fabuloso ator e “entertainer”, surrealista na maneira de representar a vida, veste atualmente a pele de Mário “Gin Tónico” Henrique Leiria. Chame-se-lhe apenas Artista, com “A” grande. Acompanha-o em “Poemas de Bibe”, (uma coletânea de cerca de 80 poemas, escritos por poetas portugueses, escolhidos especialmente para crianças) a atriz Manuela de Freitas, uma das principais impulsionadoras do teatro independente em Portugal e que participou em filmes como “O Passado e o Presente” e “Francisca”, de Manoel de Oliveira, ou os recentes “Recordações da Casa Amarela”, de João César Monteiro, e “Ninguém Duas Vezes”, de Jorge Silva Melo.

Jorge Lomba estreia-se como cantor num disco homónimo de canções firmemente enraizadas na música popular portuguesa. Dos Vai de Roda já se disse da sua excelência. Resta esperar pela resposta do grande público ao desafio lançado pelos membros da UPAV.

Carmel - The Collection, 1983-1990

 

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 13 FEVEREIRO 1991 >> Pop Rock >> Reedições

 

CARMEL
The Collection, 1983 – 1990
LP e CD London, distri. Polygram

 Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamente

Como o título indica, trata-se de um “best of” de canções gravadas originalmente no período compreendido entre essas datas, dispersa pela discografia de álbuns da cantora. A escolha recaiu nos temas mais imediatamente apelativos, sem que tal facto constitua um demérito grave. Sabe-se quais são as intenções e motivações de discos desta natureza. Carmel McCourt e os seus dois companheiros habituais (Gerry Darby, percussões e programações de ritmo e Jim Paris, guitarra, baixo) passeiam-se com todo o à-vontade por sonoridades tão distintas como o calypso de “I Have Fallen in Love”, as sugestões “soul” que lhes são mais caras, de que são ilustrativas a versão de “It’s All in the Game” dos Four Tops, “Every little bit” e “You Can Have Him” (inspirado na versão de 1980 de Dionne Warwick) ou os sombreados “bluesy” do órgão Hammond, pontuados pelos sopros da “Sounds 18”, em “More more more”. A voz de Carmel faz o resto, numa coleção sem pretensões de raridade, mas capaz de satisfazer os amadores menos puristas. ***

Música sanfónica [Ciclo de Instrumentos de Corda]

 PÚBLICO SEGUNDA-FEIRA, 11 FEVEREIRO 1991 >> Cultura

 

Terminou ontem o Ciclo de Instrumentos de Corda, no Teatro da Trindade, em Lisboa

 

Música sanfónica

Fernando Magalhães e Vasco Câmara

 

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A sanfona de Fernando Meireles e restantes Realejo encantaram, ontem, o escasso público presente na sala do Chiado. Na véspera, Carlos Paredes tocou e falou da guitarra portuguesa, e as marionetas de Santo Aleixo recriaram o mundo à escala dos sonhos.

 

Fernando Meireles fabrica instrumentos musicais de corda. A sanfona que tocou no Teatro da Trindade levou três meses a construir. Durante esse período não lhe sobrou tempo para mais nada, mas acha que valeu a pena. As paixões são assim. A sua nasceu há cinco anos, quando principiou a investigar a documentação existente sobre o instrumento, extinto no nosso país desde meados do século passado. Viajou um pouco por todo o lado, escutando os segredos ocultos no chorar da sanfona. Depois foi só basear-se numa figura de presépio do séc. XVII, de Machado de Castro, e confiar na intuição e nos seus próprios conhecimentos de mecânica acústica.

Ontem à tarde, perante uma assistência de pouco mais de trinta pessoas (16h00, domingo de Carnaval, não seria propriamente o horário ideal...) Fernando Meireles apresentou-se integrado no agrupamento Realejo, formado em Coimbra o ano passado. O grupo dedica-se à interpretação de música exclusivamente tradicional, “com arranjos instrumentais substituindo as partes cantadas e variações sobre as melodias originais”.

Para além do Fernando (também membro dos “Ars Musicae de Coimbra” especializados no reportório medieval e renascentista da Península Ibérica) que toca sanfona, violino, bandolim, cavaquinho e percussão, fazem ainda parte dos “Realejo”, Amadeu Magalhães (gaita de foles, flautas de bisel, cavaquinho e braguesa), Santos Simões (guitarra, bandolim e percussão) e Cesário D’Assunção (guitarra, braguesa e percussão).

Interpretaram temas do périplo celta da península: melodias e danças da Galiza, da Bretanha e do Norte do país (Bragança, Vinhais, Amarante), como não poderia deixar de ser. Para Fernando Meireles esta é a música que mais tem a ver consigo, aquela que o “toca de perto”. Nota-se – no brilho dos olhos, quando faz girar a manivela e os seus dedos deslizam sobre as teclas de madeira antiga da sanfona.

Se por vezes se tornam percetíveis algumas limitações técnicas da parte dos músicos, nem por isso é menor o prazer extraído da audição dos sons e cadências ancestrais que fazem vibrar a memória de um povo, apelando para uma raiz coletiva que já quase esquecemos, perdida na voragem do século.

Situados à margem do “Folklore com ‘K’, para turista ver, com ‘trajezinhos’ e, na maior parte das vezes, os instrumentos miseravelmente tocados” – como Fernando Meireles faz questão de frisar, os Realejo encaram a música como um ato de entrega amorosa. Para além das modas e oportunismos, longe da ignorância e inépcia oficiais, ficam “aqueles que gostam mesmo disto e acham que vale a pena lutar”.

 

O paraíso dos bonecos

 

As Marionetas de Santo Aleixo, os títeres tradicionais do Alto Alentejo, abriram o programa de sábado, dia 9, com o “Auto da Criação do Mundo”. Construídos em madeira e cortiça e de dimensões muito pequenas – 20 a 40 centímetros – os bonecos, propriedade do Centro Cultural de Évora, são manipulados no retábulo, que é a reprodução em miniatura de um palco tradicional, com cenários pintados em papelão e iluminação a candeia de azeite.

O “Auto da Criação do Mundo” é a recriação, popular, brejeira, mas também trágica, da parábola bíblica da queda de Adão e Eva do paraíso, expulsos por um Deus avaro que contava os frutos do pomar do paraíso terrestre. Nos vários quadros, cujo elemento de ligação era um coro de anjos impertinentes e tontos que esvoaçavam sobre o pequeno cenário, foi constante, durante os 45 minutos de representação, a provocação e o diálogo com a assistência. Um pouco à maneira da revista à portuguesa: “Como se chama esta avezinha?”. “Pomba”, responde alguém do público. “Então meta aqui a tromba!”.

A fraca iluminação projetava no fundo negro do palco do Teatro da Trindade as enormes sombras dos cinco manipuladores das marionetas, acentuando o lado trágico desta farsa de que são protagonistas Deus, Adão e Eva – “duas carnes e um só osso” – Caim e Abel.

 

História da guitarra

 

Estes bonecos tradicionais, os textos, das peças, de transmissão oral e o suporte musical começaram a ser divulgados pelo etnólogo Michel Giacometti a partir do final da década de 60. Juntamente com Mestre Manuel Jaleca, “grande guitarrista de Évora”, a figura de Giacometti foi lembrada por Carlos Paredes no pequeno recital – pouco mais de meia-hora – que deu a seguir à representação dos títeres alentejanos.

Foi uma curta viagem pela história da guitarra portuguesa, desde o seu antepassado mais recuado, a cítola, até ao modelo que o músico usou no recital, e que foi definido no século XVIII. As peças que Paredes interpretou – “Dança dos Camponeses”, “Variações”, “Verdes Anos” – serviram-lhe para explicar as várias facetas do instrumento, capaz de exprimir o fatalismo e a saudade mas também o vigor e a violência. Oportunidade para Carlos Paredes lembrar o pai, Artur Paredes, o criador de um género novo, a guitarra de Coimbra.

No final houve direito a um “encore” pedido pela assistência que não enchia a plateia do Teatro da Trindade, e que era constituída, na sua maioria, por sócios do INATEL, com direito a desconto de 50 por cento nos 1200 escudos que era o preço do bilhete.