11/05/2008

Ocaso Épico - Muito Obrigado

Pop Rock

14 de Junho de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Ocaso Épico Muito obrigado

Como foi


Não é um objecto de fácil definição. “Muito Obrigado”, dos Ocaso Épico, ou será melhor dizer, de Carlos Cordeiro, ou Farinha, como era e continua a ser conhecido, desafiou, na altura em que foi editado, algumas ideias preconcebidas. Seja como for, Farinha, hoje com 37 anos e um emprego no Ministério da Justiça, distanciou-se do projecto. “Não me lembro do ano em que o disco saiu. Não me preocupo com o passado, mas sim com o presente.” Apesar de tudo, há uma história para contar.
“Muito Obrigado” “foi uma proposta feita pelo Mário guia, na altura o proprietário do Rock Rendez-Vous. Os Ocaso Épico tinham tocado lá, houve um ano em que foi o grupo que tocou lá mais vezes. Provavelmente ele ficou com uma boa impressão.” A génese do disco aconteceu “ocasionalmente”, num restaurante no Algueirão, ao pé de Sintra, local de residência de Farinha, onde ele e Mário Guia se encontraram e foi feita uma proposta concreta para a gravação.
“O disco foi sendo feito ao longo de quase um ano de gravações onde estive quase sempre sozinho em estúdio”, diz farinha. “Primeiro fizemos uma pré-produção em casa, eu e o Pedro Barrento. Baseados em algumas programações já existentes, gravámos vários temas. Outros foram feitos posteriormente.” O termo “fizemos” é algo subjectivo, uma vez que os Ocaso Épico foram sempre uma ideia saída da cabeça de Farinha, embora com a ocasional colaboração de outros músicos, nomeadamente de Pedro Barrento, que em “Muito Obrigado” se encarregou das operações rítmicas elaboradas no computador.
Tal não impediu que, do início, o Ocaso Épico fosse de facto um grupo, por onde passou gente que aí “fez escola”, como o Alberto Garcia, um baterista que tocou nos Mler Ife Dada, nos Rádio Macau e com Marco Paulo, Rui “Fingers”, Anabela Duarte, dos Mler Ife Dada, ou Manuel Machado, acordeonista dos Essa Entente, entre outros. Farinha admite que o Ocaso era o seu projecto pessoal e que os processos de criação que levaram à gravação do disco não terão sido os mais comuns. “Tenho as minhas próprias ideias. Normalmente sou o compositor de todos os temas do Ocaso Épico, com uma ou outra excepção, entre cerca de duas centenas de músicas feitas quer no Ocaso, quer já em outros projectos.” A diferença está em que, quando toca com outros, Farinha garante possuir “a capacidade de apanhar aquilo que está na imaginação deles”. “Quando estou a tocar com uma banda”, diz, “consigo captar, sou um receptor telepático – embora seja também emissor – do que se passa na cabeça dos outros.”
Entre as canções que constituem “Muito Obrigado”, há uma que se distancia das programações efectuadas em estúdio, “Da Beira Baixa à Estremadura”, que foi tocada ao vivo. Nos outros temas, ao longo das sessões de gravação, Farinha ia “acrescentando instrumentos e compondo ao mesmo tempo”. Enquanto Zé Nabo, um dos produtores, ia almoçar, Farinha ficava no estúdio a experimentar instrumentos que desconhecia, determinados modelos de sintetizadores e máquinas de ritmos.
Uma experimentação que, em termos de produto final, terá ficado aquém das expectativas do autor: “O disco teve uma produção de fraca qualidade. Foi produzido praticamente por mim, pelo Mário Guia e pelo Zé Nabo, só que eu nunca tinha entrado num estúdio, não tinha qualquer tipo de experiência, inclusive a equalização paramétrica na mesa de mistura, não pescava nada daquilo”.
Hoje, Farinha não tem dúvidas ao afirmar que “em casa”, com um gravador de quatro pistas, consegue obter um “som melhor” do que o da gravação de “Muito Obrigado”. Independentemente da melhor ou pior qualidade técnica da gravação, o que ressalta é o seu lado satírico e a aparente ausência de uma lógica alinhada pelos modelos de produção então em voga, o que motivou alguma incompreensão e falta de receptividade da parte da crítica. “Isto é assim, Portugal é um país de cultura emergentemente rural. Da opinião pública à crítica, a mentalidade vigente não estava, não está preparada para ir além da cultura. Existem três componentes, a cultura, a sabedoria e a intuição. Quando há cultura e intuição, há conhecimento. É possível que uma pessoa com pouca cultura perceba melhor, tenha mais sabedoria que uma pessoa culta. Este disco transmite uma mensagem não cultural, mas sim de sabedoria.”

Como é

Pode a linguagem populista combinar com a electrónica futurista? Pode o “kitsch” mais parolo dar as mãos à crítica lúcida e mordaz? Pode a Beira descer à “Extrema-dura” para se tornar na província da experimentação em Portugal? Em qualquer dos casos, a resposta é afirmativa, num álbum como “Muito Obrigado”, dos Ocaso Épico, ou de Farinha Master, se assim lhe quiserem chamar. “Muito Obrigado” é um manancial delirante de conceitos, por vezes contraditórios, que se chocam e misturam com sons que à época, em Portugal, acompanhavam a frieza “cold wave” e “afterpunk” ou desciam ao sol do Sul da música árabe. O misticismo, a atenção concentrada nos meios “artísticos “ da capital, onde a cocalinda substitui o licor Beirão, e na decadência de um império que já só parte em viagem nos copos de uma Sagres preta criam em “Muito Obrigado” um carrossel de anarquia no qual apenas a intuição e a “verve” humorística de Farinha conseguem ter mão. Como ele próprio admite, os Ocaso Épico eram na altura como que o negativo, a sombra negra dos Heróis do Mar. Enquanto estes cantavam o “amor”, a “paixão” e a “saudade”, Farinha cantava “a produção musical/ do triste saloio nacional/ nunca deixou de cheirar o cu ao capital”. Um apocalipse de trazer por casa.

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