10/05/2008

Viagem dentro de um búzio [Vai De Roda]

POP ROCK

23 de Outubro de 1996

Vai de Roda agita ondas galaico-portuguesas

Viagem dentro de um búzio

Nova música portuguesa com raízes no mito. “Polas Ondas”, terceiro capítulo discográfico do projecto Vai de Roda, desfaz o derradeiro equívoco. A música tradicional transformou-se num sonho. As ligações mantêm-se, mas as vozes são novas. Tentúgal fez girar uma vez mais a roda da sanfona. E a música portuguesa ganhou um mar novinho em folha para navegar.

Levou tempo e alma a fazer. Entre “Terreiro das Bruxas” e o marulho das ondas, Tentúgal matutou durante cinco anos numa música que, definitivamente, rompesse com conceitos artesanais de composição e produção. “Polas Ondas”, pela perfeição formal e pela respiração dos sons e palavras de que dá mostras, estabelece novos parâmetros de aferição para a música portuguesa. Só a solidez da gramática autoriza a pluralidade de leituras da obra total. Cada um fará com estas ondas o que bem entender: natação, “surf”, pesca, mergulho, escafandrismo, até simples higiene mental.
Antes das águas Tentúgal não esteve quieto. “Fiz música para cinema de animação, nomeadamente para filmes do Abi Feijó e do Pedro Serrazina e em geral para a produção musical da Filmógrafo. Participei igualmente, ao vivo, no 10º aniversário dos Luar na Lubre, com quem toquei ao vivo.” A animação maior estava para vir.
Em “Polas Ondas” repara-se em primeiro lugar na capa, uma rede de pesca. Fotografada por Abi Feijó. A cor intriga. “Por incrível que pareça, é uma rede mesmo vermelha. Da cor do sangue.” Do som, percebe-se ter sido pensado como um todo. “Há uma maior conceptualidade, o que lhe dá uma maior coerência, apesar de haver algumas aparentes contradições, ou distanciações, em termos plásticos, em alguns temas.” O álbum tem o selo Alba. Editora nova. “Teve que ser criada, porque, depois de cinco propostas que tivemos para gravar, nenhuma foi para a frente. Lá fora toda a gente fica admirada, editores e produtores, com o facto deste grupo, com o currículo e a projecção que tem, não ter uma editora. Estávamos fartos de discutir tostões e resolvemos andar para a frente com uma editora nossa.” Os amigos ajudaram: “Amigos que acreditaram nos Vai de Roda. Houve quem emprestasse o estúdio, quem emprestasse o trabalho de prensagem da capa…”
Hoje, os Vai de Roda estão mais do que nunca próximos da Galiza, “não só por questões geográficas como também pelo ambiente sonoro”. Uma cumplicidade que existe “talvez por uma grande relação com a malta do Norte”. Lança um desabafo: “Há gente na música portuguesa com quem, de certa forma, até me identifico plasticamente, mas com quem, depois, em termos humanos, não existe qualquer relação. Para mim, que vivo a arte intensamente, isso é importante. Lá em cima sinto muito mais pureza. Há uma postura que, inclusivamente, é a mesma que vi nos irlandeses, onde os músicos gostam de ouvir a música dos outros, algo extremamente humilde e enriquecedor para quem a pratica. Na Galiza são assim.”
No passado não faltou quem acusasse o grupo de pretensioso. “Já chamavam isso aos Vai de Roda de 83, um grupo pretensioso, ou um grupo sofisticado de música tradicional. Neste momento está mais que provado que é difícil arrumar o grupo em qualquer gaveta.” Os anos ensinaram a Tentúgal uma outra maneira de dar a conhecer a sua música. “Uma coisa fui aprendendo. Enquanto no primeiro disco dos Vai de Roda queria que todos se apercebessem do que eu tinha feito e pensado, compreendi que a obra de arte, se tiver qualidade, é apreendida por cada um de maneira diferente. Existem várias leituras, um processo tão enriquecedor que, inclusive, permite outras leituras que a nós, que as concebemos, nem sequer nos passavam pela cabeça. Uma constante dialéctica entre emissor e receptor.”
Quanto a ser ou não ainda um grupo de música tradicional, Tentúgal é peremptório: “Não somos um grupo de música tradicional. Gosto de música tradicional, como de música contemporânea e adoro música medieval. Sofro todas estas influências. Está lá o contemporâneo, o ortodoxo, por ter estudado no Conservatório, o popular, por ter aprendido instrumentos tradicionais com os próprios tocadores. Sempre rejeitei catalogações. Quando produzo arte, irrita-me que isso aconteça.” Música tradicional? “Vai-se imitar o quê? A voz ou a maneira de tocar das velhotas e dos velhotes das aldeias? O que é correcto é assimilar a tradição e cantá-la com a minha voz. Aprender a tocar um instrumento mas tocá-lo com as minhas mãos e com o meu espírito. É assim que se transmite a tradição, o tal acrescento de um ponto.”
Em termos formais, “Polas Ondas” exibe a tal sofisticação que, para alguns, pode ser motivo de crítica. Isso resulta, em parte, do “nível de entrosamento dos músicos”. E Tentúgal não se furta a fazer alguns reparos. “Uma coisa que me faz aflição, noutros grupos desta área, é o tratamento das dinâmicas. Vai-se do princípio até ao fim com uma mesma dinâmica. As únicas mudanças aparecem por se retirar ou juntar um instrumento, sem se lidar com os ‘pianos’, ‘pianissimos’, ‘crescendos’, ‘decrescendos’. O Vai de Roda teve a preocupação de trabalhar esse aspecto. “É preciso deixarmo-nos de alguns primarismos”, conclui.
Por onde navegamos, no fim de contas, quando navegamos “Polas Ondas”? “É uma viagem sem fim, volta-se sempre ao mesmo sem se voltar ao mesmo, até ao cabo do mundo, uma finisterra que cada um construirá, simbolicamente. Uma viagem, iniciática, dentro de um búzio.” O círculo desenrola-se, afinal, numa espiral.

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