11/05/2008

Gaiteiros de Lisboa - Invasões Bárbaras



Pop Rock

18 de Outubro de 1995


GAITEIROS DE LISBOA
Invasões Bárbaras
Ed. Farol, distri. BMG

Numa primeira audição, esta “invasão” provoca algum desconforto. Não é um disco fácil. Os Gaiteiros de Lisboa confundem e incomodam. Preferem arriscar a petiscar. Lutadores, empunham uma espada do mesmo calibre da que em vida empunhou José Afonso. Desbravar o que ainda não existe e, com o impossível, fazer obra.
            O arranque não podia ser mais “naturalista”, ao som de piares campestres. Paz que é pura ilusão. As gaitas surgem de imediato a reivindicar o espaço, abraçadas a uma polifonia vocal, tipo corso. Em “A ribeira do sol posto” – heresia das heresias -, o “cante” alentejano recebe a companhia “desavergonhada” de um bordão de sanfona, ambos embalados pelo tamborilar de sonho da água que teima em não chover na planície. A utilização em força dos bordões, tanto da sanfona de Carlos Guerreiro como das gaitas-de-foles de Rui Vaz, Paulo Marinho e José Manuel David é, aliás, uma das características que reforçam a imagem “telúrica” do disco. O que mais uma vez acontece como pano de fundo de “Se eu soubesse que voando…”, híbrido África/Beiras/Banda do Casaco, com passo negro conferido por um “kessange” (também conhecido como “mbira” ou “kalimba”, consoante as paragens). Nesta, como nas restantes doze faixas do disco, é notório o dedo de José Mário Branco, na produção, nos arranjos e na direcção musical. Presença que se faz sentir na estética de subtracção do supérfluo, característica deste compositor-intérprete, mas também ao nível da postura radical adoptada pelo grupo, na sua relação pouco pacífica com a música tradicional.
            No limite extremo desta viagem de “fuga” em direcção aos limites mais improváveis de uma música cujo imaginário radica no mito e numa estética de confronto, passando sobranceiramente ao lado de toda e qualquer tentativa de gestos e relações por essência irrepetíveis fora do seu contexto natural – estão a experiência formal de “Cinco por quatro” ou a versão de “La sarandillera”, bastante mais ousada que a de Né Ladeiras, em “Traz os Montes”. Disco pretensioso, sem dúvida, no modo como escapa a qualquer catalogação e se distancia com orgulhos dos caminhos mais fáceis e mil vezes trilhados de fazer “música de raiz tradicional”. Disco experimental, também. Os Gaiteiros, mais do que usar, abusam do legado tradicional, entregando-se a cirurgias de parto capazes de originar os mutantes de uma nova tradição ou, em termos gráficos, a instrumentos como a “besta-de-foles” da capa. E se temas como “Talvez que sonhando” ou “Décimas” surgem marcados pela influência, respectivamente de José Mário Branco e Fausto, outros, verdadeiramente de antologia, como “O menino está na neve”, erguem a nossa música popular a patamares nunca antes atingidos. Música “bárbara”, sem dúvida, pela heresia formal que a enforma, e porque fremente e virgem dos maneirismos que deitam tudo a perder e fazem nascer o preconceito.
            Depois de Né Ladeiras, da Brigada e do manifesto premonitório dos Vai de roda, “Invasões Bárbaras” assinala novo e decisivo momento num ciclo que, esperamos, venha deitar por terra o império do conformismo, do fingimento e da palmadinha das costas que sempre foram o serão sinais de decadência. (9)

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