Pop
Rock
18
de Outubro de 1995
GAITEIROS DE
LISBOA
Invasões
Bárbaras
Ed. Farol, distri. BMG
Numa
primeira audição, esta “invasão” provoca algum desconforto. Não é um disco
fácil. Os Gaiteiros de Lisboa confundem e incomodam. Preferem arriscar a
petiscar. Lutadores, empunham uma espada do mesmo calibre da que em vida
empunhou José Afonso. Desbravar o que ainda não existe e, com o impossível,
fazer obra.
O arranque não podia ser mais
“naturalista”, ao som de piares campestres. Paz que é pura ilusão. As gaitas
surgem de imediato a reivindicar o espaço, abraçadas a uma polifonia vocal,
tipo corso. Em “A ribeira do sol posto” – heresia das heresias -, o “cante”
alentejano recebe a companhia “desavergonhada” de um bordão de sanfona, ambos
embalados pelo tamborilar de sonho da água que teima em não chover na planície.
A utilização em força dos bordões, tanto da sanfona de Carlos Guerreiro como
das gaitas-de-foles de Rui Vaz, Paulo Marinho e José Manuel David é, aliás, uma
das características que reforçam a imagem “telúrica” do disco. O que mais uma
vez acontece como pano de fundo de “Se eu soubesse que voando…”, híbrido
África/Beiras/Banda do Casaco, com passo negro conferido por um “kessange”
(também conhecido como “mbira” ou “kalimba”, consoante as paragens). Nesta,
como nas restantes doze faixas do disco, é notório o dedo de José Mário Branco,
na produção, nos arranjos e na direcção musical. Presença que se faz sentir na
estética de subtracção do supérfluo, característica deste
compositor-intérprete, mas também ao nível da postura radical adoptada pelo
grupo, na sua relação pouco pacífica com a música tradicional.
No limite extremo desta viagem de
“fuga” em direcção aos limites mais improváveis de uma música cujo imaginário
radica no mito e numa estética de confronto, passando sobranceiramente ao lado
de toda e qualquer tentativa de gestos e relações por essência irrepetíveis
fora do seu contexto natural – estão a experiência formal de “Cinco por quatro”
ou a versão de “La sarandillera”, bastante mais ousada que a de Né Ladeiras, em
“Traz os Montes”. Disco pretensioso, sem dúvida, no modo como escapa a qualquer
catalogação e se distancia com orgulhos dos caminhos mais fáceis e mil vezes
trilhados de fazer “música de raiz tradicional”. Disco experimental, também. Os
Gaiteiros, mais do que usar, abusam do legado tradicional, entregando-se a
cirurgias de parto capazes de originar os mutantes de uma nova tradição ou, em
termos gráficos, a instrumentos como a “besta-de-foles” da capa. E se temas
como “Talvez que sonhando” ou “Décimas” surgem marcados pela influência,
respectivamente de José Mário Branco e Fausto, outros, verdadeiramente de
antologia, como “O menino está na neve”, erguem a nossa música popular a
patamares nunca antes atingidos. Música “bárbara”, sem dúvida, pela heresia
formal que a enforma, e porque fremente e virgem dos maneirismos que deitam
tudo a perder e fazem nascer o preconceito.
Depois de Né Ladeiras, da Brigada e
do manifesto premonitório dos Vai de roda, “Invasões Bárbaras” assinala novo e
decisivo momento num ciclo que, esperamos, venha deitar por terra o império do
conformismo, do fingimento e da palmadinha das costas que sempre foram o serão
sinais de decadência. (9)
Sem comentários:
Enviar um comentário