DOMINGO, 18 JULHO 1999 cultura
Festival
Ritmos do Atlântico no Funchal
Bordado na Madeira
Riccardo Tesi e Patrick Vaillant
teceram no Funchal um bordado a duas mãos. Mas não em louvor da tradição. É
certo que tocaram uma valsa e uma tarantela. Mas a primeira, só ao cabo de
"dez anos de psicanálise" e a segunda em forma de dança
"neo-dadaísta, pós-moderna, um pouco cubista e aromatizada".
O céu parece abater-se sobre as
montanhas, esmagando-as com as suas mãos de névoa quente e húmida. É sob este
clima, o "capacete", como é conhecido na ilha, que está a decorrer na
cidade do Funchal, o festival Raízes do Atlântico (secção atlântica do Festival
Sete Sóis Sete Luas), uma realização conjunta da Associação de Música
Tradicional e Popular da Madeira e do Grupo Teatrale Immagini.
Sexta-feira à noite, no anfiteatro
do Jardim Municipal, o Sete Sóis Sete Luas trouxe da Toscânia até à Madeira o
acordeonista Riccardo Tesi, presença habitual, desta feita acompanhado pelo
bandolinista francês Patrick Vaillant, natural da Provença. Ao contrário do que
seria de prever, atuaram antes da banda madeirense, Banda D'Além. Talvez porque
a música do duo, feita de diálogos em que o intimismo e as subtilezas
harmónicas prevalecem, não se compadeça com o desejo de grandes manifestações
de exuberância da parte do público. Assim, coube aos madeirenses fazerem a
festa, enquanto Tesi e Vaillant se dirigiram a quem estava disponível para uma
escuta mais atenta e, por isso, mais exigente.
Tesi e Vaillant são, musicalmente,
almas gémeas. Tocam juntos há doze anos. A música que fazem – registada em
disco nos álbuns "Véranda" e "Colline" – é uma capela de
arquitetura delicada, para percorrer por dentro. Se com a sua própria
Banditaliana Tesi encontra resposta para a sua necessidade de energia e
extroversão, com o bandolinista francês, o seu acordeão diatónico volta-se para
o pormenor e para a recetividade à voz e ao bandolim do seu companheiro. Um
diálogo na mais funda aceção do termo, num percurso que compreende toda a gama
de sons e emoções entre o murmúrio e a improvisação com base em texturas e
estrutura complexas. É esta capacidade em ouvir o outro e em saber respirar e
dançar a dois que distingue Tesi e Vaillant dos que se limitam a fazer do
exibicionismo um cavalo de batalha. A música que tocam não é música
tradicional, embora dela retenha a dignidade e a religiosidade, no sentido em
que esta palavra, religião, significa religação. Religação da música com o
músico.
No estilo de Patrick Vaillant
escutam-se ecos de Dave Swarbrick (ex-Fairport Convention) da música
renascentista e do Barroco e da escola italiana. Mas a fluência e a delicadeza,
a agilidade com que salta de um solo intrincado para a discrição de um
acompanhamento onde cada nota entra no lugar exato a suportar as notas que, do
outro lado, Tesi, lhe envia, denotam um grande executante e, mais importante do
que isso, um grande músico. Quanto às suas intervenções cantadas, em dialeto
provençal, têm a mesma elegância e a mesma força que emanam de grupos como os
Verd e Blu e Perlinpinpin Folc.
Tesi é também um grande músico, já o
sabíamos. Não será um virtuoso, no sentido em que é, por exemplo, Kepa Junkera,
um vulcão em permanente atividade. O seu virtuosismo é outro - a arte de
navegar (ou será melhor dizer, de voar?) por recantos e esquinas, por vezes
fracamente iluminados. Ou iluminados, mas por luzes que não são, decerto, as
dos holofotes. A música de Tesi não ofusca. Pelo contrário, ajuda-nos a ver.
Leva-nos por caminhos nem sempre fáceis de seguir, por compassos que umas vezes
se entrelaçam nas florestas dos Balcãs e outras se resolvem nas equações de uma
certa "free music", com o selo Recommended, protagonizada por
excêntricos como Fred Frith ou o acordeonista Guy Klucvsek.
No Funchal, Tesi e Vaillant, teceram
bordados com a mesma riqueza de pormenor e a delicadeza dos bordados da
Madeira. Em temas como "Monzuno e dintorni", "Nove de
corporations", "Matelote", "Felis galean" e
"Bergamasco". Condescenderam numa valsa,
"Francesino/Magomerlino", pretexto para Tesi soltar uma nota de
humor: "É a música dos nossos pais e dos nossos avós, mas depois de dez
anos de psicanálise, já podemos tocá-la". O tema final, uma "Tarantella
al melograno" ("Tarantela de Romãs"), composta por Tesi, foi por
este apresentado como uma "tarantela neo-dadaísta, pós-moderna, um pouco
cubista e aromatizada".
Riccardo Tesi e Patrick Vaillant
reinam e brincam num universo que apenas existe porque os dois músicos
inventaram para ele uma alma e uma linguagem próprias. Um pequeno templo de uma
religião quase esquecida - a do Amor.
Mesmo debaixo do
"capacete", o Funchal continua, por seu lado, a ser um mundo à parte.
Como quando alguém a quem perguntaram se na ilha existe alguma praia com areia
em vez de pedregulhos, respondeu, apontando com orgulho: "há ali uma em
frente, ainda melhor, em vez de areia, tem cimento!".
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