02/01/2017

Bordado na Madeira [Riccardo Tesi e Patrick Vaillant]

DOMINGO, 18 JULHO 1999 cultura

Festival Ritmos do Atlântico no Funchal

Bordado na Madeira

Riccardo Tesi e Patrick Vaillant teceram no Funchal um bordado a duas mãos. Mas não em louvor da tradição. É certo que tocaram uma valsa e uma tarantela. Mas a primeira, só ao cabo de "dez anos de psicanálise" e a segunda em forma de dança "neo-dadaísta, pós-moderna, um pouco cubista e aromatizada".

O céu parece abater-se sobre as montanhas, esmagando-as com as suas mãos de névoa quente e húmida. É sob este clima, o "capacete", como é conhecido na ilha, que está a decorrer na cidade do Funchal, o festival Raízes do Atlântico (secção atlântica do Festival Sete Sóis Sete Luas), uma realização conjunta da Associação de Música Tradicional e Popular da Madeira e do Grupo Teatrale Immagini.
            Sexta-feira à noite, no anfiteatro do Jardim Municipal, o Sete Sóis Sete Luas trouxe da Toscânia até à Madeira o acordeonista Riccardo Tesi, presença habitual, desta feita acompanhado pelo bandolinista francês Patrick Vaillant, natural da Provença. Ao contrário do que seria de prever, atuaram antes da banda madeirense, Banda D'Além. Talvez porque a música do duo, feita de diálogos em que o intimismo e as subtilezas harmónicas prevalecem, não se compadeça com o desejo de grandes manifestações de exuberância da parte do público. Assim, coube aos madeirenses fazerem a festa, enquanto Tesi e Vaillant se dirigiram a quem estava disponível para uma escuta mais atenta e, por isso, mais exigente.
            Tesi e Vaillant são, musicalmente, almas gémeas. Tocam juntos há doze anos. A música que fazem – registada em disco nos álbuns "Véranda" e "Colline" – é uma capela de arquitetura delicada, para percorrer por dentro. Se com a sua própria Banditaliana Tesi encontra resposta para a sua necessidade de energia e extroversão, com o bandolinista francês, o seu acordeão diatónico volta-se para o pormenor e para a recetividade à voz e ao bandolim do seu companheiro. Um diálogo na mais funda aceção do termo, num percurso que compreende toda a gama de sons e emoções entre o murmúrio e a improvisação com base em texturas e estrutura complexas. É esta capacidade em ouvir o outro e em saber respirar e dançar a dois que distingue Tesi e Vaillant dos que se limitam a fazer do exibicionismo um cavalo de batalha. A música que tocam não é música tradicional, embora dela retenha a dignidade e a religiosidade, no sentido em que esta palavra, religião, significa religação. Religação da música com o músico.
            No estilo de Patrick Vaillant escutam-se ecos de Dave Swarbrick (ex-Fairport Convention) da música renascentista e do Barroco e da escola italiana. Mas a fluência e a delicadeza, a agilidade com que salta de um solo intrincado para a discrição de um acompanhamento onde cada nota entra no lugar exato a suportar as notas que, do outro lado, Tesi, lhe envia, denotam um grande executante e, mais importante do que isso, um grande músico. Quanto às suas intervenções cantadas, em dialeto provençal, têm a mesma elegância e a mesma força que emanam de grupos como os Verd e Blu e Perlinpinpin Folc.
            Tesi é também um grande músico, já o sabíamos. Não será um virtuoso, no sentido em que é, por exemplo, Kepa Junkera, um vulcão em permanente atividade. O seu virtuosismo é outro - a arte de navegar (ou será melhor dizer, de voar?) por recantos e esquinas, por vezes fracamente iluminados. Ou iluminados, mas por luzes que não são, decerto, as dos holofotes. A música de Tesi não ofusca. Pelo contrário, ajuda-nos a ver. Leva-nos por caminhos nem sempre fáceis de seguir, por compassos que umas vezes se entrelaçam nas florestas dos Balcãs e outras se resolvem nas equações de uma certa "free music", com o selo Recommended, protagonizada por excêntricos como Fred Frith ou o acordeonista Guy Klucvsek.
            No Funchal, Tesi e Vaillant, teceram bordados com a mesma riqueza de pormenor e a delicadeza dos bordados da Madeira. Em temas como "Monzuno e dintorni", "Nove de corporations", "Matelote", "Felis galean" e "Bergamasco". Condescenderam numa valsa, "Francesino/Magomerlino", pretexto para Tesi soltar uma nota de humor: "É a música dos nossos pais e dos nossos avós, mas depois de dez anos de psicanálise, já podemos tocá-la". O tema final, uma "Tarantella al melograno" ("Tarantela de Romãs"), composta por Tesi, foi por este apresentado como uma "tarantela neo-dadaísta, pós-moderna, um pouco cubista e aromatizada".
            Riccardo Tesi e Patrick Vaillant reinam e brincam num universo que apenas existe porque os dois músicos inventaram para ele uma alma e uma linguagem próprias. Um pequeno templo de uma religião quase esquecida - a do Amor.
            Mesmo debaixo do "capacete", o Funchal continua, por seu lado, a ser um mundo à parte. Como quando alguém a quem perguntaram se na ilha existe alguma praia com areia em vez de pedregulhos, respondeu, apontando com orgulho: "há ali uma em frente, ainda melhor, em vez de areia, tem cimento!".

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