02/01/2017

Xutos e Violinos

TERÇA-FEIRA, 7 SETEMBRO 1999 cultura

Banda encerra Festa do “Avante!”

Xutos e Violinos

MILHARES de jovens que em Agosto militaram nos festivais da Zambujeira, Paredes de Coura e Vilar de Mouros acorreram no passado domingo ao Festival do Avante! para assistir ao comício do Partido Comunista Português e às actuações de José Casanova, Margarida Botelho e do cabeça de cartaz Carlos Carvalhas. Seria assim nos sonhos da organização, num mundo perfeito argamassado na dialéctica materialista. Na realidade, a juventude reuniu-se, sim, mas para ouvir os seus heróis, que não são nem Marx nem Lenine, mas sim os Xutos e Pontapés, que actuaram a seguir. E se no concerto-comício a música não diferiu muito do habitual, já a prestação do quarteto que está a comemorar vinte anos de carreira e recentemente lançou "Dados Viciados" teve a novidade do acompanhamento, em dois temas, do quarteto de cordas Os Corvos.
            O palco 25 de Abril, encimado por um monstruoso sistema de luzes, recebeu em apoteose os Xutos e Pontapés, com a multidão a agitar bandeiras e de braços em cruz (ritual do grupo), numa feliz adaptação da foice e martelo comunistas que caiu bem neste ano em que se celebra o 25º aniversário do 25 de Abril. Aliás, imediatamente antes dos Xutos arrancarem, as colunas debitaram, por esta ordem, a música de "Grândola, vila morena", o Hino das Forças Armadas e "O Povo unido nunca mais será vencido". Os jovens compreenderam a mensagem e dançaram, alguns ensaiando mesmo uns passos de "mosh" (dança típica dos espectáculos de rock que consiste em saltar para todos os lados descontroladamente, tentando derrubar quem se encontra próximo num raio de cinco metros).
            Estava montado o cenário ideal para os Xutos fazerem explodir a sua revolução, até porque ao redor de todo o recinto não faltavam slogans, afixados um pouco por todo o lado em letras gordas: "CDU - Para que não fique tudo na mesma", "CDU - A Esquerda que não imita a Direita", o mais críptico "Não deixe que eles ponham as mãos em tudo" ou a máxima, que poderia ser de Serafim Saudade, "Sim à paz! Não à guerra! Não à NATO!".
            Por fim os Xutos começaram a tocar, iluminados por jorros de fogo-de-artifício: "Esquadrão da morte", "Não sou o único", "Dantes" (um dos vários temas com a presença, na guitarra, de Ronnie Champagne, produtor de "Dados Viciados"), "Jogo do empurra", "Enquanto a noite cai", "Homem do leme", "Esta cidade", "Maria" e tantos outros que ajudaram a criar a reputação daquele que será, porventura, o mais emblemático grupo de rock português (que nos perdoem os UHF...) em actividade.
            Os Corvos, um quarteto de cordas que, para já, se especializou em versões do reportório dos Xutos, acrescentaram os seus violinos, viola e violoncelo aos temas "Quando eu morrer" e "Circo de Feras", enfiando um interlúdio instrumental pelo meio. Os primeiros mostraram a faceta escondida - a música progressiva - da banda, que soou como os Curved Air. Mas quando os Corvos, decerto discípulos de Michael Nyman, executaram sozinhos uma sequência instrumental mais lenta de música de câmara, o público manifestou o seu desagrado com assobios e cânticos futebolísticos.
            Ultrapassado, porém, este momento de música erudita, Tim, Zé Pedro, Kalú e João Cabeleira (e numa quantidade de temas, também Gui, no saxofone) voltaram a desenrolar a sua lista interminável de hinos suburbanos e a fazer vibrar a imensa multidão de fãs. "Vida malvada" foi dedicada, "com o coração, o fígado e os intestinos", a todas as bandas que já tocaram na Festa do Avante. O período de "encores", estendido por quase meia hora, deu direito a fogo-preso, com os corações e cruzes, ícones do grupo, desenhados a chamas, a rematarem um concerto ao nível dos que o grupo nos habituou, com as doses certas de energia, empenhamento e ideologia. Alguns elementos do público, facção revisionista, não resistiram e voltaram a gritar o já mítico apelo "Ó Elsa!" que sobrevoou há tempos inúmeros festivais em Portugal. No fundo, está certo – A Festa do Avante é hoje um dos últimos redutos da tradição.

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