06/01/2017

Foi Deus [Amália Rodrigues]

QUINTA-FEIRA, 7 OUTUBRO 1999 destaque

Foi Deus

Amália Rodrigues – o Fado – morreu. "Desde que existe morte, imediatamente a vida é absurda", disse Amália um dia. O fado tomou o lugar da sua vida, fez-se voz. A voz onde escutávamos a distância que nos separa de nós mesmos. Dizíamos: o fado. E era no seu canto que nos comprazíamos em dizê-lo. A voz e o fado de Amália atravessaram em chamas seis décadas da cultura portuguesa. Um tempo de canções, de pessoas, de êxitos, de lugares e de polémicas que são o espelho de um país amarrado à saudade. Ao baterem as oito horas da manhã de ontem, na sua casa, na Rua de São Bento, em Lisboa, a voz extinguiu-se. "Gostava de morrer de repente. Acho que as pessoas deviam ser como as maçãs, cair da árvore". A maçã caiu e deixou-nos sós. Ficou uma lenda para ouvir cantar muitas vezes. Amália. Era uma mulher com uma voz do tamanho da alma.

A máscara que esconde um rosto

"Entrei na vida a cantar / E o meu primeiro lamento / Se foi cantado a chorar / Foi logo com sentimento", escreveu Amália nos primeiros anos da sua carreira, para a música do fado "Mouraria". Amália costumava chorar muito. Chorava quando cantava. Chorava quando chorava. "Só consigo cantar se gosto de me ouvir. Mas quando gosto muito, comovo-me. Choro quando as palavras me tocam fundo nalguma coisa qualquer que me dói". Dois dos fados em que Amália cedia com maior facilidade às lágrimas eram "Cansaço" e "Povo que lavas no rio". Neles a fadista dizia que encontrava a liberdade de ser ela própria, de anular a eternidade que separava a sua vida de artista da sua verdadeira maneira de ser.
            Então deixava-se levar pelo cansaço, banhando-se nas águas do total abandono. "Quando chego às tábuas do meu caixão, já eu estou quase no caixão" – dizia, a propósito de "Cansaço" - "Já estou morta, já sinto as flores e tudo". "Isto em cena, mas depois, quando volto para casa, continuo a ser a tal pessoa: 'daí este meu cansaço / de sentir que quanto faço / não é feito só por mim'. Já estou eu de roda de mim outra vez". Há nestas palavras uma lucidez extrema. A intuição de que a personalidade não passa da máscara que esconde um rosto sem feições. "Penso assim porque sou lúcida. Mas também pode ser que esteja doida". A música, essa, vinha-lhe diretamente de Deus e era a Deus que se entregava. Foi Deus. Amália deu-se por inteiro ao seu destino de ser, mais do que "persona", alma coletiva. De cantar todos os males, os seus e os dos outros. De dar de beber à dor.

Fado de uma vendedeira de fruta

A história de Amália começa por onde quisermos. "Quando fizerem a minha história e eu já não for viva para dizer como foi, então é que se vão fartar de inventar. O que me irrita é a mentira. Mas sei que a minha história vai ser aquela que escolherem, aquela que é a mais interessante, aquela que não é a minha". Escolhemos esta: Era uma vez uma mulher com uma voz do tamanho da alma.
            Amália Rodrigues nasceu no primeiro dia de Julho de 1920 - embora as certidões a façam mais nova 22 dias -, na rua Martim Vaz, na freguesia da Pena, então uma zona operária de Lisboa. Os pais eram da Beira Baixa e teria sido numa das suas passagens pela capital que a fadista veio ao mundo.
            Cresceu no seio de uma família pobre que tentava sobreviver à grande depressão de 1930. Vendiam fruta, ela, a mãe e a irmã, no mercado da Ribeira. Ou no Cais da Rocha, quando sobrava alguma. Em Alcântara, Amália canta o fado pela primeira vez. Nas marchas populares, o "Fado de Alcântara". Em 1938, aos quinze anos, concorre ao concurso "Rainha do fado". As adversárias invejam-lhe a voz e recusam-se cantar ao lado de uma "vendedeira de fruta".
            Durante um ensaio na Academia de Santo Amaro conhece aquele que viria a tornar-se o seu primeiro marido, Francisco da Cruz, torneiro mecânico e guitarrista amador, com quem casa, em 1940. Antes, já ele a enganara com outra. Amália tenta suicidar-se com mata-ratos, no chafariz da Junqueira, em frente à porta do amado. Tentativa falhada: deixa cair com a água a maior parte do remédio. Reconciliação e casamento, no mesmo ano em que se estreia a cantar numa casa de fados, o Retiro da Severa. O casamento dura três anos, embora o divórcio apenas se concretize em 1949. Ele já partira para África, onde acaba por morrer. Amália sofre com a rejeição. "Nunca fui desconfiada na vida, nunca fechei nada à chave. A única desconfiança que eu tinha era de não acreditar que as pessoas gostassem de mim".
            Na Severa canta o "Mouraria", acompanhada pelos melhores guitarristas de Lisboa, Jaime Santos, José Marques, o mítico Armandinho. As vozes pertenciam a Alfredo Marceneiro, Adelina Ramos, Maria Albertina. E a duas das melhores fadistas dessa época, Berta Cardoso e Ercília Costa, apesar do ídolo de Amália ser Hermínia Silva. No Solar da Alegria já tem reportório próprio. Fernando de Freitas é o primeiro a escrever um fado especialmente para ela, a "Ronda dos bairros". Seguem-se Linhares Barbosa e Frederico de Brito que lhe oferece, entre outras canções, a "Carmencita".

Espanha, Brasil, o mundo

Estreia-se a cantar no estrangeiro, em 1943, na capital espanhola. Daí para a frente nunca mais perdeu o fascínio pela música espanhola que passou a ser parte integrante do seu reportório. O flamenco entra-lhe na alma. Se o destino a tivesse puxado para aí, poderia ter sido uma grande intérprete do "cante jondo". "Em Espanha há um ambiente de exaltação que quase levanta voo, um ambiente que teria servido muito melhor a minha voz do que o fado". Uma Amália, "ibérica na cantiga", que "nuestros hermanos" aprendem cedo a venerar. "Quando Amália tiene gripe", escreve um crítico espanhol, "el escudo baja". Mas o outro lado de uma vizinhança difícil, da arrogância altiva, também se faz sentir, e Amália não o desconhece, o que a leva a dizer que "os espanhóis veem o fado como veem Portugal, ou seja, não veem". É também em Madrid que conhece Hemingway. "Para que é que me serve ter conhecido Hemingway? Não era amiga dele, não sou prima, nem irmã!...".
            No ano seguinte, 1944, Amália descobre o Brasil. Atua no Casino de Copacabana. Neste país grava pela primeira vez, no ano seguinte, um disco de 78 rotações, para a editora Continental, com os fados "Perseguição" e "As penas". O cinema consagra-a como verdadeira atriz em "Capas Negras", de Armando de Miranda, e "Fado - História de uma Cantadeira", de Perdigão Queiroga, um cineasta da escola americana, que neste filme desvela a luminosidade sobrenatural do rosto da cantora. O mesmo rosto que a câmara fotográfica de Silva Nogueira imortalizou.
            Ao longo da sua carreira, Amália participa, além destes, em mais seis filmes: "Vendaval Maravilhoso", "Os Amantes do Tejo" (filme francês, de Henri Verneuil, que triunfou no Japão em formato vídeo), "Sangue Toureiro", "Fado Corrido" e "As Ilhas Encantadas", onde a fotografia de Augusto Cabrita capta, por sua vez, imagens da artista que se tornariam célebres. Aparece ainda, apenas enquanto cantora, em "Sol e Toiros", "Abril em Portugal", "As Canções Unidas" e "Via Macau". "Os Amantes do Tejo" funcionaria como passaporte para Paris que lhe franqueia as portas do Olympia, em 1956, ponto de partida para uma carreira internacional sem precedentes no nosso país. Wim Wenders quis fixar-lhe a luz. Ou a sombra. Filma-a a entrar para um elétrico em "Até ao Fim do Mundo".

Deus no comboio das seis e meia

O teatro, onde se estreia em Junho de 1940, na revista "Ora vai Tu!", dá-lhe a conhecer uma forma mais segura e gratificante de contacto com o público. "No teatro há um palco e um público à frente. Numa casa de fado o público está em cima de nós. Como sou tímida, prefiro a distância. (...) Um teatro inteiro a bater palmas dá muito mais prazer. É um espetáculo, enquanto uma casa de fados não tem espetáculo".
            É ainda no meio teatral que aparece na sua vida o homem que lhe vai marcar a carreira, o maestro Frederico Valério. "Conhecia muito bem a minha voz e escrevia para mim, para toda a gama da minha voz, para cima e para baixo". Fados como "Rosa cantadeira", "Fado do ciúme", "Malhoa", "Sabe-se lá" exigem tudo da sua voz, sobretudo nos registos mais agudos, por sinal aqueles onde Amália se sentia menos à vontade. "Tenho tido uma voz muito sã, nunca dei uma fífia nos tons altos, cheguei lá sempre, mas numa tonalidade que não agrada muito ao meu ouvido. Por isso tínhamos as nossas pegas, eu e o maestro Valério. Eu dizia que era alto demais, ele chamava-me mandriona e dizia que estava lindo". Mas Deus e a música davam-lhe as mãos numa dádiva só concedida aos eleitos. "De repente, numa improvisação, sou capaz de ir a uma nota em que toco um tom que não sou capaz de tocar, se for a música a mandar".
            Os poetas descobrem em Amália o veículo privilegiado para os seus versos. Pedro Homem de Mello e David Mourão-Ferreira são dois dos principais. Mas é um alentejano, de Reguengos, com licenciatura em Farmácia, Alberto Janes, que lhe oferece, de bandeja, a transcendência: "Foi Deus", que Amália canta pela primeira vez na Rádio, no programa O Comboio das Seis e Meia. "É um fado tão ligado a mim que quando estive doente achei que não o podia cantar. Tinha vergonha de dizer 'E deu-me esta voz a mim', não estando a voz muito boa." No extremo oposta da hierarquia, o mesmo Janes escreve para ela o célebre "Vou dar de beber à dor". Amália canta "Foi Deus" num "Te Deum" na catedral de Beirute. O mundo rende-se à Voz.

O canário e a mosca

Londres, Berlim, Dublin, Roma, México. Nova-Iorque recebe-a em 1952, na boîte "La Vie en Rose". Fica durante catorze semanas. Edith Piaf, outro dos raros artistas europeus a vencer nos "states", ia lá todas as noites, para se encontrar com o namorado. Danny Kaye convida-a para atuar com ele num espetáculo da Broadway. Amália recusa. Como recusa outra oferta, para filmar com Anthony Quinn. "Eu podia ter sido muita coisa se não tivesse sido aquilo que sou". Lincoln Center e o Hollywood Bowl. Canta ao lado de Nat "King" Cole, Eartha Kitt, Lena Horne. Em 1953, em mais uma visita aos Estados Unidos, tem lugar o célebre episódio da Coca-Cola, num programa da NBC de Eddie Fisher. Imperativos comerciais obrigam a fadista a beber uma garrafa daquele refrigerante. Amália não gosta e canta "Coimbra" para os emigrantes. Julgavam que era uma canção francesa. Amália teve que explicar.
            No ano seguinte conquista o Mocambo, de novo em Hollywood. Os jornais chamam-lhe "Amália, the canary", o canário. Pedem-lhe que se vista de branco e use decotes maiores. Que largue o xaile negro e ponha uma rosa no cabelo. Fazem confusão entre Espanha e Portugal, Amália enfurece-se. É o "show-biz" a funcionar. Dá-lhe a mosca em Portugal. Na estreia televisiva, em 1958, o irritante inseto não pára de zumbir à sua volta e ela de sacudi-lo. No final da sessão Amália reconhece: "Cantou melhor a mosca do que eu."

Fado menor é destino mau

Amália representa a figura da Severa, no Teatro Monumental, em Lisboa, a convite de Vasco Morgado. Nunca se identificou com a mulher "de pancada alta, pêlo no braço, lume no olho". "Não tinha nada a ver comigo. Chamei a Severa a mim. Eu sabia lá como era a Severa!". Como também não sabia, não percebia nada de política nem dos políticos. Acusada de colaborar com o regime, Amália refugia-se no povo. Nisso, como em tudo, deixa-se ir. Marcelo Caetano condecora-a em 1958 na Feira de Bruxelas. Madrid concede-lhe a condecoração de Isabel, a Católica, em 1968. Recebe a Medalha de Prata de Paris e, em 1985, outra condecoração, das mãos de Jack Lang. Mas o que verdadeiramente a emociona permanece um mistério.
            "Quando me emociono, quando canto de um modo tão intenso que chego a chorar, não tem nada a ver com o público, ou com o meu estado de espírito, não tem a ver com estar apaixonada ou não. Uma vez, num barco, em Vila Franca, à noite, cantei aquela música do 'Fado cravo', com os versos 'Duas luzes' e todas as pessoas se ajoelharam aos meus pés. E ajoelharam porquê? Porque eu senti uma emoção muito grande". Ajoelharam porque Amália possuía essa capacidade rara de se concentrar no ponto exato onde tudo conflui, se dilacera e floresce. O lugar da cruz. "Nem sei como chamar a isto. Talvez eu não seja criadora, mas quando canto estou a inventar". Amália inventou-se. Inventou o tom perfeito para o fado menor, mais "à sua maneira". "Tem aquela força, aquela tristeza que eu exijo. O 'menor' é o pai e a mãe do fado. É destino mau".

“Vamos às óperas!”

Mas o destino decide ser bom com Amália, na aurora dos anos 60, ao facultar-lhe o encontro com Alain Oulman, o homem que lhe oferece os sons e as palavras exatas para a sua dimensão. O francês, nascido no Dafundo, escrevera "Vagamundo" a pensar nela. Ela descobre na sua música uma riqueza harmónica que o fado não abarca na sua simplicidade trágica. "Dá-me a possibilidade de voar". O primeiro disco com músicas de Alain Oulman surge em 1962. Graças a ele, Amália conquista um público novo, enquanto outra parte franze o nariz a estas ousadias. Os próprios músicos confessam a sua estranheza. José Nunes, guitarrista, sempre que lhe davam músicas de Oulman não conseguia conter-se: "Vamos às óperas!".
            Amália descobre-se em "Povo que lavas no rio", revendo-se emocionalmente nos versos de Pedro Homem de Mello. Entende com o coração o que ao cérebro por natureza não compete. "Abandono", de David Mourão-Ferreira, vale-lhe o voo picado da censura. Fala de prisões e de pessoas encarceradas em prisões. Amália vê apenas um poema de amor. Estava certa. Amor e revolução andaram sempre de mãos dadas. Oulman é preso pela PIDE e deportado para França. A separação torna a comunicação entre ambos mais difícil.
            Chegam outros poetas, Luís de Macedo, autor de "Cansaço", Sidónio Muralha, e Ary dos Santos, que o 25 de Abril atiraria violentamente para um dos lados da barricada. Alexandre O' Neill e a "Gaivota". Manuel Alegre. E Camões. "Camões é um grande fadista. Há lá mais português e mais fado do que o Camões: 'Com que voz cantarei meu triste fado?'".
            Os outros, infelizmente, não são da mesma opinião e estendem-lhe o dedo, acusador: Heresia! Amália acha uma burrice. "Por pior artista que se seja, ninguém consegue destruir um grande poeta, se o cantar". Um verso de Mário de Sá-Carneiro, dá-lhe "cabo da cabeça", aquele onde o poeta do "Orfeu" suspira "se ao menos permanecesse aquém...". Chega a pensar cantar o "Quase", mas falta-lhe quem possa compor música à altura. Já Fernando Pessoa, reconhece, "não é para cantar".

Mariquinhas não deixa voar

Novas participações em filmes, "Fado Corrido", 1964, de Brum do Canto e "As Ilhas Encantadas", de Carlos Vilardebó. Durante as filmagens deste último, conhece Augusto Cabrita, autor das mais belas fotos da fadista alguma vez tiradas. Amália, ainda e sempre, segue a voar pela vida e por uma carreira subordinada aos caprichos do destino. É então que deixa passar o convite de Anthony Quinn para filmar a seu lado. "Dear Amália I would love to hear your reaction to the script after you have read it", escreve-lhe o ator, de Itália, em 1967, ano de mais uma consagração. Em Cannes, no MIDEM, recebe um prémio das mãos do próprio Quinn, que faz questão em ser ele a entregar-lho. Fica assente que "Bodas de Sangue", de García Lorca, e "Os Velhos Marinheiros", de Jorge Amado, seriam as obras sobre as quais os dois trabalhariam juntos. Os herdeiros de Lorca não autorizam, porém, a adaptação americana do texto original. Quinn propõe a escolha de um novo argumento. O destino intervém de novo. "Como sou muito desleixada e não sabia procurar um argumento, não tinha confiança em mim, tinha vergonha de pedir às pessoas, não fiz nada. nem sequer lhe respondi. Foi pena!".
            Foi pena. Foi Deus. Fosse quem fosse, volta a ser o autor de "Foi Deus", Alberto Janes, quem, em 1968, lhe entrega de bandeja, no Café Luso, um novo êxito, "Vou dar de beber à dor", o tal da tasca da "Mariquinhas". Num instante torna-se o maior sucesso de vendas em toda a carreira de Amália. Cem mil discos vendidos, na altura uma raridade. É a fase "engraçada", para muitos ligeira em demasia, da fadista - continuada com "É ou não é", "Vá de roda" e "Oiça lá ó senhor vinho".
            No estrangeiro também acham graça. A "Mariquinhas" é cantada em francês, italiano e espanhol. Milva apropria-se de "É ou não é". No meio de tanta brincadeira, Amália não perde a lucidez. "A música de 'Mariquinhas' é tipo gaiola, não me deixa voar. Gostei muito na altura mas agora aborrece-me. Aquele ritmo amarra-me. É das poucas cantigas que canto sempre igual e eu sou contra a rotina. Não me diverte". No meio de tantas voltas e contravoltas, o folclore não podia escapar. Amália, gorado o projeto de uma gravação, com a mãe, de tradicionais da Beira Baixa, não desiste de experimentar este estilo musical, mandando às urtigas a afetação. São editados três discos de folclore, o primeiro - "onde estão as melhores coisas", segundo dizia Amália –, em 1965, o segundo – "estragado pela orquestração, sobretudo as canções da Beira Baixa" -, em 1971. O terceiro, com arranjos da própria Amália, só com guitarra e viola –  "ficou melhor" – em 1972. Os americanos deliram com esta faceta da fadista. Amália tem toda a legitimidade para o fazer. "A maneira como eu canto não é uma estilização. Eu sou natural do campo. Canto como uma pessoa que anda a cantar no campo, ou na rua".
            Os "United States of Entertainment" abrem-lhe as portas do Lincoln Center e do Hollywood Bowl, onde em 1966 atua para vinte mil pessoas, ávidas de a ouvir cantar folclore. "O folclore modificou o meu espetáculo e modificou o dos outros, que passaram também a cantar folclore". Chega a cantar temas de folclore italiano, "sem saber músicas nem letras", em dialeto siciliano, napolitano, romano, veneto, no álbum "A Una Terra che Amo", de 1973. Uma vez mais, porém, Amália sai por cima, consciente do valor relativo de cada nota e da hierarquia dos sentimentos. "Sou como uma espécie de mineiro, que vem explorando até que se acaba o ouro. E acaba-se o ouro porque eu não faço o que os artistas têm de fazer, que é ficar, cantar o que eles gostam, apanhar os sucessos do momento e cantá-los". Amália profetiza. É toda uma indústria que faz de alvo, neste seu tom desprendido.
            O mundo continua a girar e Amália conquista-o sem se dar conta. O Japão deslumbra-a. Em 1970, viaja pela primeira vez até ao país do sol nascente, alcançando um sucesso estrondoso em Tóquio. Regressa em 1976 e 1986, fascinada pela recetividade à sua música. É no Japão que os seus discos vendem em maior quantidade. "Lágrima" alcança maior sucesso no Japão do que em Portugal. O vídeo de "Os Amantes do Tejo" não lhe fica atrás. Hoje, graças às sementes lançadas por Amália no Japão, assiste-se neste país ao aparecimento de cantores de fado, em português e japonês.

Toalha do regime

Para Amália, chega entretanto a data fatídica: 25 de Abril de 1974. Com o golpe dos capitães, sente pela primeira vez na pele o ódio e a intriga. Antes da revolução, "era um país cheio de gente que gostava de mim. De um momento para o outro salta-me um boato em cima e toda a gente o aceitou". Acusam-na de ter pertencido à PIDE. "Tiraram-me uma ingenuidade que era toda minha. Hoje, para mim, a palavra 'justiça' não tem o mesmo sentido. (...) Foi uma estupidez e uma maldade que nunca percebi. Diziam que eram os comunistas que me acusavam. E porquê? Que mal fiz eu? O único comunista que conheço, e que eles desde sempre souberam que era comunista, é o Brito, o meu cabeleireiro e esse não mudou nada, tenho a certeza que não ia dizer nem pensar nada contra mim (...) Diziam que eu tinha fugido pelo telhado, em camisa de noite, que tinha a casa toda partida, que estava lá a camioneta da polícia (...) A mentira é que me chocava (...) Se diziam, porque é que não provavam?".
            Amália, num olhar retrospetivo sobre essa época, vai mais longe na desmontagem do mito que em sua volta se criou e que fez dela o terceiro vértice do triângulo Fátima, Fado e Futebol: "Salazar nunca deu nada nem ao fado nem ao futebol e Fátima não precisava dele. Se você dá um jantar em sua casa a convidados de cerimónia, põe a melhor toalha. Eles pensavam que eu era a melhor toalha do regime".
            Altura de separação das águas, da revelação apocalíptica dos rostos autênticos de cada um. São poucos os que nesta situação têm a coragem de se colocar a seu lado. "Pessoas que eu tinha aqui em casa muitíssimas vezes, todos esses intelectuais, os poetas que faziam versos para mim, pessoas que me conheciam bem e alguns até vieram a fazer parte dos novos governos, todos se calaram, todos consentiram. Foi a agressão de uns e a cobardia de outros". O francês Alain Oulman faz parte da minoria que a defende, escrevendo cartas para o "República" e para "O Século".
            Chamam-lhe comunista e fascista. O boato atinge as raias do absurdo. "Amália Rodrigues está com uma depressão nervosa e vai entrar para um convento". Por fim o país acalma e cai em si. Amália, passada a tempestade, enfrenta-o com a simplicidade, embora ferida, de uma criança: "Nunca fui de Governo nenhum, nem antes nem depois. Agora também me convidam e eu não quero ser de partido nenhum, nem de clube nenhum. E continuo a cantar!". E continuou a cantar.

Amália veste Portugal

Nas duas últimas duas décadas, porém, Amália afastou-se progressivamente dos palcos, cantando cada vez com menos assiduidade, a partir de meados dos anos 80, quase sempre, em espetáculos de homenagem. Portugal, entretanto, aprendera a fazer dela uma moda. Foi preciso esperar até 1985 para Amália Rodrigues se apresentar pela primeira vez em Portugal num concerto totalmente preenchido por si, no dia 19 de Abril, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa e, uma semana mais tarde, no Coliseu do Porto. O mito criou raízes.
            António Variações, o cantor-cabeleireiro, também já desaparecido, reproduziu em moldes kitsch e em formato de pop eletrónica o imaginário e alguns dos tiques de expressão da fadista. Hoje, cabe a Paulo Bragança fazer reviver - acentuando-lhes os traços - a tragicomédia do fado, nas suas cores e dores mais espampanantes. Dulce Pontes e Mísia aprenderam a cantar e a sentir o fado com Amália. A nova geração, sempre sob a égide da diva, garante a continuidade do fado tradicional: Mafalda Arnauth, Sofia Varela, Maria Ana Bobone.
            Tornada ícone, imagem de um Portugal diferente do que é hoje, faltava a Amália Rodrigues vestir os portugueses, já não a alma, mas o corpo. O estilista Nuno Gama inspira-se nela para a primeira das suas coleções de alta-costura. Amália que anos antes afirmara: "Em cena sempre me vesti bem, mas não me importo nada de andar mal vestida na rua, não tenho nenhuma vida social. Não ligo nenhuma nem aos bem vestidos nem aos mal vestidos. Antigamente, quando andava toda a gente a fazer-me a corte, arranjava-me mais. Ia ao cabeleireiro três vezes por semana, vestia-me para um almoço, para um jantar. Agora só me visto para ir ao campo apanhar flores. E gosto de me vestir à matroca, de andar à cigana. Sempre tive a mania da ciganada e, de há um tempo para cá, a moda favoreceu-me o gosto. Acho até que invento umas coisas que só anos depois é que se usam. Como aqueles vestidos soltos, tipo balandrau, que usava há mais de 25 anos".

Solidão quase loucura

Volta ao Coliseu dos Recreios, em Lisboa, em 1990, para celebrar o 50º aniversário de carreira. O Presidente da República, Mário Soares, confere-lhe a mais alta condecoração nacional, a Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada. Quatro anos mais tarde, de novo o Coliseu dos Recreios, para mais uma homenagem, num espetáculo integrado no Lisboa 94 - Lisboa Capital da Cultura. Regressa também a polémica, neste caso pela hipotética falta de pagamento de direitos de autor. Há quatro anos, o Canal 1 da RTP transmitiu uma série de cinco episódios sobre a vida e a carreira da fadista, de genérico "Uma Estranha Forma de Vida", com realização de Bruno de Almeida.
            A Expo-98 realiza dois espetáculos em sua homenagem, por ocasião da data em que é agraciada com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, mais uma a juntar às dezenas que já recebera. Mais polémica: Mega Ferreira defende a realização dos espetáculos; Torres Campos é contra; Mega vence, mas Amália surge acima do braço de ferro entre os dois administradores. O canal francês Muzzik dedica-lhe mais de quatro horas de emissão. Amália deixara de ser uma voz para passar a ser uma instituição.
            Esteve presente há dois anos no Mosteiro dos Jerónimos, quando do lançamento do seu livro de poemas, "Versos". Versos que, de forma simultaneamente simples e profunda, resumem o modo único como entrelaçou a vida e a arte: "Já fui pr'além da vida / Do que já fui tenho sede / Sou sombra triste / Encostada a uma parede / Adeus / Vida que tanto duras / Vem morte que tanto tardas / Ai como dói / A solidão quase loucura". Vários inéditos são incluídos no álbum "Segredos", o derradeiro com originais seus.
            Mesmo a doença contra a qual lutou nos últimos anos da sua vida é recebida como uma fatia de um bolo que trincou até à última migalha: "Fiz tudo sem aprender e até o tumor que me tiraram era primário." A morte aconteceu como a única coisa da qual se tem a certeza que vai acontecer. "Gostava de morrer de repente. Acho que as pessoas deviam ser como as maçãs, cair da árvore." A maçã caiu. Caiu no céu. E agora, o que é que interessa? Estar atento, como Amália sempre fez, ao mais simples e mais medonho de tudo que é a vida. "O que interessa é sentir o fado. Porque o fado não se canta, acontece. É um acontecimento. E isto é que me faz medo, porque nunca sei o que me vai acontecer. Se tivesse nascido na província contentava-me em fazer parte de um rancho folclórico. Se tivesse estudado gostaria de ter sido bailarina clássica." O destino quis que fosse a voz de Portugal. Foi Deus.

NOTA: citações recolhidas de "Amália – Uma Biografia", de Vítor Pavão dos Santos. (ed. Contexto, 1987)

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