02/01/2017

Kepa Junkera dá baile

cultura SEGUNDA-FEIRA, 19 JULHO 1999

“Milagre” no Funchal, no Festival Raízes do Atlântico

Kepa Junkera dá baile

Havia quem dissesse ser preciso esperar ainda cinco anos para o público do Funchal dançar. Não foi preciso tanto. Bastou Kepa Junkera tocar. A capital da pérola do Atlântico presenciou ainda uma ocasião histórica: o reencontro em palco de Kepa e Riccardo Tesi ao fim de uma longa separação. Carlos Cruz, do grupo local, Almma, tocou com os bascos o "Bailinho da Madeira".

Excedeu as expetativas e rompeu com preconceitos, o concerto que Kepa Junkera deu na noite de sábado, no festival "Raízes do Atlântico", no âmbito da programação mais vasta do seu congénere Sete Sóis Sete Luas. Apesar do cansaço provocado por uma espera de seis horas no Aeroporto de Lisboa, o acordeonista basco não perdoou. Com ele, é tudo ou nada. Foi tudo.
            Seguindo um alinhamento idêntico ao apresentado há dois meses no Seixal, no festival Cantigas do Maio, Kepa mostrou ser incapaz de permanecer parado no patamar correspondente ao simples profissionalismo. De "T-shirt" e medalhão com o símbolo céltico triskel ao peito, o génio da "trikitixa" deu tudo o que tinha para romper o véu que o separava de uma assistência que ao fim de hora e meia de concerto passou, quase sem se dar conta, pela surpresa, a satisfação, a alegria e, finalmente, a euforia. A tal ponto que, para alguns, aconteceu mesmo uma espécie de milagre. O público dançou, coisa pouca vista, em concertos ao vivo por estas paragens, como afirmava, incrédulo, um dos elementos da organização.
            Claro que, desde o início, ninguém ficou indiferente - era impossível - ao espetáculo de virtuosismo que Kepa sempre proporciona em cada uma das suas atuações. Porquê tocar dez notas se no mesmo intervalo de tempo pode tocar trinta? É sobre esta base que ele começa a tocar verdadeiramente depressa. Mesmo assim o público resistiu ao impulso o mais que pôde, mantendo-se colado aos degraus do belo anfiteatro do Jardim Municipal. Mas não havia hipótese.
            Quando o grupo atacou "Bok-Espok", um dos temas mais mexidos do álbum "Bilbao 00h00", no disco com a participação do grupo sueco Hedningarna, alguns jovens destravaram as molas e pularam para a frente do palco. A massa de dançarinos foi aumentando. Formaram-se rodas. Nos degraus também se dançava. Kepa tinha o público na mão. A partir deste momento sentiu-se que tudo podia acontecer. E aconteceu. Riccardo Tesi foi chamado ao palco, apresentado por Kepa como o "Corleone do acordeão italiano". Tocaram juntos, pondo fim a uma separação que durava há cinco anos (desde a gravação do álbum "Trans Europe Diatonique", com um terceiro acordeonista, o inglês John Kirkpatrick) uma polca italiana, a primeira dança que aprenderam a executar juntos. Momentos antes também Carlos Cruz, bandolinista do grupo madeirense Almma, se juntara ao grupo basco, para tocar o "Bailinho da Madeira". O entusiasmo transbordou do palco para a plateia, assistindo-se então a momentos de alguma confusão, com um espontâneo a invadir o palco, crianças a correr diante dos músicos e um fotógrafo a disparar a máquina em tudo que era sítio no meio dos músicos.
            O solo a quatro mãos na "txalaparta" (no final do concerto, houve quem não resistisse à curiosidade e batesse nas tábuas afinadas do instrumento), as ornamentações "impossíveis" executadas à velocidade da luz pelo acordeonista, os saltos de entusiasmo do contrabaixista, a marcação cerrada do baterista foram outras tantas achas lançadas para a fogueira. O público do Funchal, como não podia deixar de ser, ardeu. O combustível era bom.
            Na primeira parte, os Almma confirmaram, por seu lado, ser possível atuar com mais regularidade no continente. Os progressos da sua música são evidentes, na procura de uma linguagem mais moderna para a música tradicional da ilha. Desta feita tiveram como convidados, em dois temas, músicos dos Galandum Galundaina, de Trás-os-Montes, com as suas percussões e gaitas-de-foles. Alguns problemas de afinação foram superados pelo enriquecimento mútuo proporcionado por este encontro entre a pujança do Norte céltico e a nostalgia salgada do Atlântico.
            Contas feitas, a Madeira mostrou que a partir de agora deixa de haver desculpas para mantê-la fora do circuito regular dos festivais folk em Portugal. Há um público recetivo e entusiasta, uma organização competente e um ambiente ideal para a fruição deste tipo de música. Os "Raízes do Atlântico" entraram definitivamente nas raízes do mundo.

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