cultura SEGUNDA-FEIRA, 19 JULHO 1999
“Milagre” no Funchal, no Festival
Raízes do Atlântico
Kepa Junkera dá baile
Havia quem dissesse ser preciso
esperar ainda cinco anos para o público do Funchal dançar. Não foi preciso
tanto. Bastou Kepa Junkera tocar. A capital da pérola do Atlântico presenciou
ainda uma ocasião histórica: o reencontro em palco de Kepa e Riccardo Tesi ao
fim de uma longa separação. Carlos Cruz, do grupo local, Almma, tocou com os
bascos o "Bailinho da Madeira".
Excedeu as
expetativas e rompeu com preconceitos, o concerto que Kepa Junkera deu na noite
de sábado, no festival "Raízes do Atlântico", no âmbito da
programação mais vasta do seu congénere Sete Sóis Sete Luas. Apesar do cansaço
provocado por uma espera de seis horas no Aeroporto de Lisboa, o acordeonista
basco não perdoou. Com ele, é tudo ou nada. Foi tudo.
Seguindo um alinhamento idêntico ao
apresentado há dois meses no Seixal, no festival Cantigas do Maio, Kepa mostrou
ser incapaz de permanecer parado no patamar correspondente ao simples
profissionalismo. De "T-shirt" e medalhão com o símbolo céltico
triskel ao peito, o génio da "trikitixa" deu tudo o que tinha para
romper o véu que o separava de uma assistência que ao fim de hora e meia de
concerto passou, quase sem se dar conta, pela surpresa, a satisfação, a alegria
e, finalmente, a euforia. A tal ponto que, para alguns, aconteceu mesmo uma
espécie de milagre. O público dançou, coisa pouca vista, em concertos ao vivo
por estas paragens, como afirmava, incrédulo, um dos elementos da organização.
Claro que, desde o início, ninguém
ficou indiferente - era impossível - ao espetáculo de virtuosismo que Kepa
sempre proporciona em cada uma das suas atuações. Porquê tocar dez notas se no
mesmo intervalo de tempo pode tocar trinta? É sobre esta base que ele começa a
tocar verdadeiramente depressa. Mesmo assim o público resistiu ao impulso o
mais que pôde, mantendo-se colado aos degraus do belo anfiteatro do Jardim Municipal.
Mas não havia hipótese.
Quando o grupo atacou
"Bok-Espok", um dos temas mais mexidos do álbum "Bilbao
00h00", no disco com a participação do grupo sueco Hedningarna, alguns
jovens destravaram as molas e pularam para a frente do palco. A massa de
dançarinos foi aumentando. Formaram-se rodas. Nos degraus também se dançava. Kepa
tinha o público na mão. A partir deste momento sentiu-se que tudo podia
acontecer. E aconteceu. Riccardo Tesi foi chamado ao palco, apresentado por
Kepa como o "Corleone do acordeão italiano". Tocaram juntos, pondo
fim a uma separação que durava há cinco anos (desde a gravação do álbum
"Trans Europe Diatonique", com um terceiro acordeonista, o inglês
John Kirkpatrick) uma polca italiana, a primeira dança que aprenderam a
executar juntos. Momentos antes também Carlos Cruz, bandolinista do grupo
madeirense Almma, se juntara ao grupo basco, para tocar o "Bailinho da
Madeira". O entusiasmo transbordou do palco para a plateia, assistindo-se
então a momentos de alguma confusão, com um espontâneo a invadir o palco,
crianças a correr diante dos músicos e um fotógrafo a disparar a máquina em
tudo que era sítio no meio dos músicos.
O solo a quatro mãos na
"txalaparta" (no final do concerto, houve quem não resistisse à
curiosidade e batesse nas tábuas afinadas do instrumento), as ornamentações
"impossíveis" executadas à velocidade da luz pelo acordeonista, os
saltos de entusiasmo do contrabaixista, a marcação cerrada do baterista foram
outras tantas achas lançadas para a fogueira. O público do Funchal, como não
podia deixar de ser, ardeu. O combustível era bom.
Na primeira parte, os Almma
confirmaram, por seu lado, ser possível atuar com mais regularidade no
continente. Os progressos da sua música são evidentes, na procura de uma
linguagem mais moderna para a música tradicional da ilha. Desta feita tiveram
como convidados, em dois temas, músicos dos Galandum Galundaina, de
Trás-os-Montes, com as suas percussões e gaitas-de-foles. Alguns problemas de
afinação foram superados pelo enriquecimento mútuo proporcionado por este
encontro entre a pujança do Norte céltico e a nostalgia salgada do Atlântico.
Contas feitas, a Madeira mostrou que
a partir de agora deixa de haver desculpas para mantê-la fora do circuito
regular dos festivais folk em Portugal. Há um público recetivo e entusiasta,
uma organização competente e um ambiente ideal para a fruição deste tipo de
música. Os "Raízes do Atlântico" entraram definitivamente nas raízes
do mundo.
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