cultura SÁBADO, 17 JULHO 1999
Concerto de
homenagem a Cesária Évora
‘Nha ordem do mar azul
Cesária teve, enfim, a sua
homenagem. Com muitos beijinhos, flores, gente em pé, uma condecoração e um
ministro. Um belo presente para a "diva dos pés descalços" como foi
insistentemente chamada durante toda a noite. Em adenda, houve um espetáculo de
música, com Elba Ramalho, a Voz de Cabo Verde, Sérgio Godinho, Vitorino, Janita
Salomé, Filipa Pais e a própria Cesária. Ao todo, quatro horas de homenagem. É
muita homenagem.
Em teoria, estava lotação
esgotada. Mas como a entrada foi por convites, a sala não chegou a encher, o
que significa que houve muita gente que se baldou, por assim dizer, ao espetáculo
de homenagem a Cesária Évora, que teve lugar quinta-feira à noite no Grande
Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), numa iniciativa do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, através do Instituto Camões.
Para os que estiveram presentes foi
um fartote. Principalmente de palavras, quase todas de circunstância,
proferidas em quantidade, velocidade e grau de banalidades superiores ao
aconselhável, pelos dois apresentadores de serviço, como condimento do espetáculo.
Daí não veio mal ao mundo e até acabou por ser divertido ouvir chamar a Cesária
Évora, Cesária Verde, numa inspirada simbiose do nome da artista com a sua
terra natal.
Depois, foi música até dizer chega,
sempre entremeada por palavras e mais palavras sobre a "diva dos pés
descalços", as noites de Lisboa, o intercâmbio cultural, a língua, a
lusofonia, enfim, todo o tipo de informações que qualquer cidadão civilizado
gosta de saber.
Elba Ramalho, a cantora brasileira
nordestina, foi a primeira a entrar em palco. Confessou a sua admiração por
Cesária, uma "das maiores cantoras brasileiras", sem que antes se
tivesse esquecido de dizer do seu prazer e da sua felicidade por estar ali,
mais uma vez, a cantar para os seus amigos portugueses.
Vestida de branco, sensual como
sempre, apesar dos anos que já pesam, Elba não foi tão esfuziante como o
habitual, vestindo, num dos temas, a pele da baladeira, de guitarra em punho.
Mas no final não se conteve e entrou no forró do sertão nordestino, com
citações a mestre Luís Gonzaga, numa dança com a sanfona, como chamam no Brasil
ao acordeão.
O programa prosseguiu com a mítica
formação cabo-verdiana A Voz de Cabo-Verde. Vinte e oito anos após a sua
extinção, em 1971, a ressurreição deveu-se a Tito Paris que, no CCB, participou
como cantor convidado. A Tito se deveu, aliás, um dos raros momentos em que a
música despiu as roupas velhinhas de um passado, sem dúvida glorioso, e sacudiu
o fumo de um bar ou de um salão de casino.
Um passado que, de súbito, se
iluminou no tema "Eclipse", executado ao piano pelo fundador do
grupo, Chico Serra. Por instantes, sentiu-se algo parecido com um espanto
difuso, no contacto com algo profundo vindo muito de trás. A sensação, para muitos,
de que algo de precioso se perdeu. Mas o feitiço quebrou-se num ápice, com o
tema seguinte, "Chôro de clarinete", interpretado a solo por Luís
Morais, que repetiu o mesmo número, interpretado recentemente por um grupo da
Macedónia, no festival Ritmos do Mundo, no Porto: a desmontagem, peça por peça,
do clarinete, acompanhado por curtas execuções nas peças que iam ficando, até
sobrar apenas o bocal e a palheta.
A hora da solenidade
Ao fim de mais ou menos duas horas,
o intervalo chegou finalmente. Ocasião para socializar. Socializou-se de tal
maneira que ninguém ligou quando a sineta tocou para voltarem todos aos seus
lugares. A custo, a plateia lá se compôs outra vez. Desta feita para escutar a
"música do país anfitrião", pelo grupo Músicas de Sol e Lua, formado
por Sérgio Godinho, Vitorino, Janita Salomé e Filipa Pais, mais um lote de
instrumentistas. Começaram e acabaram em coro, com temas de José Afonso, respetivamente
"Cantigas do Maio" e "Coro da Primavera". Pelo meio
cantaram a solo, ou em duetos (Filipa Pais mais Vitorino, Sérgio Godinho mais
Filipa Pais, Sérgio mais Vitorino). Vitorino brilhou na sinuosidade de
"Fado triste" e "Fado da prostituta da rua de Stº António da
Glória", este último com letra de António Lobo Antunes. Filipa interpretou
a solo, em registos diferentes, "Praia das lágrimas" e "Fado
lisboeta". Janita Salomé fez vibrar as paredes do CCB com
"Ciganos", com letra de Manuel Alegre, e "Senhora do
Almurtão". Menos formal do que os seus companheiros, Sérgio Godinho jogou
a abrir "Com um brilhozinho dos olhos", dialogou a seguir, com Filipa
Pais, em "Bom prazer", e com Vitorino, em "Barco dos
Amantes", um tema antigo escrito de parceria com Milton Nascimento, para
terminar a "rapar" com "Elixir da juventude", canção que
abre o seu último álbum de estúdio, "Domingo no Mundo".
Por fim, teve lugar o momento mais
desejado da noite - a condecoração - precedido, porém, de mais uma rajada de
lugares-comuns sobre a lusofonia e a importância da homenageada (mas se não
fosse importante teria havido homenagem?), incluindo a promessa feita pela
apresentadora ao ministro português dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, de
não haver enganos com o seu nome.
Havia que criar suspense. Alguém
teve então a ideia de chamar ao palco, não só os músicos participantes no espetáculo
(só Elba Ramalho não compareceu, provavelmente por já ter abandonado o CCB)
como uma série de músicos que se encontravam entre o público, para uma sessão
de beijinhos à "diva dos pés descalços" (que querem, à força de tanta
insistência, a frase acaba por se entranhar). Entre os que responderam à
chamada, contavam-se os africanos Ana Firmino, Celina Pereira, Filipe Mukenga,
André Cabaço, Guto Pires e o português Gil do Carmo.
Cesária chegou, então, vestida de
azul. Descalça. Toda a gente de pé. Beijinhos. Flores (a produção esteve a
cargo da empresa Praça das Flores... ). Mais beijinhos, mais flores. Entra o
ministro - toda a gente de pé - com a condecoração, a Grã-Cruz da Ordem do
Infante Dom Henrique que, segundo Gama, neste caso, seria apropriado chamar
"da Ordem do Mar Azul". Discurso. Solenidade. Põe a condecoração à
homenageada. A condecoração escorrega. Cesária agradece: a Elba Ramalho, à Voz
de Cabo-Verde e "ao grupo do Vitorino". "Não tenho mais nada a
dizer", conclui. Uma lição de contenção.
Já com os seus músicos em palco,
Cesária cantou e a "Sôdade" chegou. Foram quatro horas de homenagem
(possivelmente três de música mais uma de conversa). É muita homenagem.
Cesária Homenageada. Cesária
condecorada. Portugal já pode dormir em paz.
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