06/01/2017

Trinta anos à espera de Proust ["O Tempo Reencontrado"]

cultura DOMINGO, 26 SETEMBRO 1999

Catherine Deneuve e Raul Ruiz apresentaram, ontem em Lisboa, o filme “O Tempo Reencontrado”

Trinta anos à espera de Proust

A estrela do cinema francês Catherine Deneuve esteve em Lisboa para falar da sua participação no novo filme do chileno Raul Ruiz, “O Tempo Reencontrado”, inspirado na obra homónima de Marcel Proust.
Em conferência de imprensa onde também esteve presente o realizador, a atriz confessou ter esperado 30 anos até se cruzar com a obra do escritor.

Aos 56 anos de idade, Catherine Deneuve já não irradia a mesma beleza clássica, que seduziu realizadores como Jacques Demy, François Truffaut, André Téchiné, Luis Buñuel (em duas obras que a catapultaram para a fama e marcariam, para sempre, a sua imagem de mulher possuída por uma paixão glaciar, “Bela de Dia”, de 67 e “Tristana – Amor Perverso”, de 70), Roman Polanski, Philippe Garrel e Manoel de Oliveira (em “O Convento” e “Viagem ao Princípio do Mundo”). Conserva, no entanto, intacto, o charme e o “chic” que fizeram suspirar as plateias, sobretudo do cinema francês, ao longo das décadas 60, 70 e 80.
            Protagonista da 34ª longa-metragem do cineasta chileno Raul Ruiz (com quem já trabalhara em “Genealogia de um Crime”, de 1996), a atriz apareceu na conferência de imprensa que ontem teve lugar no Hotel Ritz, em Lisboa, vestida com um xaile verde que lhe descobria o generoso decote do vestido, também verde, qua trazia por baixo.
            Ladeada pelo próprio Ruiz, pelo produtor Paulo Branco e por alguns dos outros atores de “O Tempo Reencontrado”, Marcello Mazzarella, Elsa Zylberstein e Christian Vadim (filho do seu primeiro casamento com Roger Vadim), a atriz conservou a pose de elegância distante e a serenidade que sempre a caracterizaram, mas não resistiu a levantar ligeiramente a voz quando uma das jornalistas presentes lhe perguntou de que maneira é que ela própria sentia na pele a passagem do tempo: “da mesma maneira que você”, foi a resposta, gélida, disparada como uma estalactite contra a estupefacta interlocutora.
            De imediato, porém, recuperou a presença de espírito, teorizando sobre “a necessidade de harmonizar o aspeto mais cruel do tempo sobre a aparência física com o lado interior”, embora sem negar “estar consciente do tempo que passa como algo de inevitável”. A atriz, que em “O Tempo Reencontrado” desempenha a personagem de Odette, “uma mulher coquete que já foi bela e aprendeu a servir-se da sua beleza”, repartiu as atenções com Raul Ruiz, entretendo-se nos intervalos a beber copos de água, a fumar, a riscar um bloco de notas com uma esferográfica e a estalar o verniz das unhas.
            Sobre o filme, com estreia nas salas portuguesas marcada para 8 de Outubro, e a obra de Proust que esteve na sua origem (“O Tempo Reencontrado” centra-se na terceira parte de “Em Busca do Tempo Perdido”), Catherine Deneuve confessou ter “esperado 30 anos até se cruzar com a obra do escritor”, embora sem nunca o ter lido “na totalidade”. Afirmou, em todo o caso, que o risco maior da passagem para o cinema desta obra-prima da literatura universal recaiu “mais no realizador” do que nos atores.

No campo de batalha

            À medida que se esgotava o tempo previsto para a conferência de imprensa, a temática temporal não deixou de insinuar-se nas palavras e nas preocupações da atriz, para quem “o tempo nunca é vazio”. “A perceção que os atores têm do tempo, durante o período de rodagem, é diferente da quem têm os jornalistas quando veem o filme”, disse.
            Apesar de gostar de “trabalhar muito, muito depressa”, Catherine Deneuve não se importa quando tudo decorre mais devagar, permitindo-lhe, desta forma, “que as coisas se infiltrem” em si. Gosta de dormir nos intervalos das filmagens, mesmo que, nessas alturas, não seja nunca “um sono profundo mas um sono quase de alerta”. “Está-se em pleno campo de batalha!”.
            Com Christian Vadim, filho do seu casamento com Roger Vadim, e Chiara Mastroianni, filha do seu casamento com Marcello Mastroianni, também atores, embora secundários (John Malkovich e Emmanuelle Béart desempenham os outros papéis principais) pode dizer-se que “O Tempo Reencontrado” – apresentado no Festival de Cannes em Maio deste ano – é quase um assunto familiar. Catherine Deneuve não tem a mesma opinião. “Nunca daria conselhos de qualquer espécie a qualquer ator mais novo, muito menos se forem meus filhos”, afirmou, “até para não repetirem os mesmos erros que eu”.
            Outro dos atores presentes na conferência de imprensa, o siciliano Marcello Mazabella, que se apresentou pela primeira vez a Raul Ruiz vestido como Marcel Proust (no filme encarna, aliás, a própria figura do escritor-narrador), afirmou, por seu lado, que a sua maneira de ser não poderia estar mais distante do escritor francês. Para Marcello, cujo primeiro trabalho sob a direção de Ruiz remonta a 1983 e a “A Cidade e os Piratas”, a principal diferença que encontrou entre esse filme e o atual é que “então havia 10 pessoas na rodagem e agora havia 80”.
            Quanto a Raul Ruiz, fiel ao discurso hermético que atravessa todos os seus trabalhos, fascinou-o em Proust “a evocação do passado sentido como presente” e o modo como na sua obra “o detalhe contém a totalidade” – como um holograma.

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