cultura
DOMINGO,
26 SETEMBRO 1999
Catherine
Deneuve e Raul Ruiz apresentaram, ontem em Lisboa, o filme “O Tempo
Reencontrado”
Trinta
anos à espera de Proust
A estrela do
cinema francês Catherine Deneuve esteve em Lisboa para falar da sua
participação no novo filme do chileno Raul Ruiz, “O Tempo Reencontrado”,
inspirado na obra homónima de Marcel Proust.
Em conferência de
imprensa onde também esteve presente o realizador, a atriz confessou ter
esperado 30 anos até se cruzar com a obra do escritor.
Aos 56 anos de idade, Catherine
Deneuve já não irradia a mesma beleza clássica, que seduziu realizadores como
Jacques Demy, François Truffaut, André Téchiné, Luis Buñuel (em duas obras que
a catapultaram para a fama e marcariam, para sempre, a sua imagem de mulher
possuída por uma paixão glaciar, “Bela de Dia”, de 67 e “Tristana – Amor
Perverso”, de 70), Roman Polanski, Philippe Garrel e Manoel de Oliveira (em “O
Convento” e “Viagem ao Princípio do Mundo”). Conserva, no entanto, intacto, o
charme e o “chic” que fizeram suspirar as plateias, sobretudo do cinema
francês, ao longo das décadas 60, 70 e 80.
Protagonista da 34ª longa-metragem
do cineasta chileno Raul Ruiz (com quem já trabalhara em “Genealogia de um
Crime”, de 1996), a atriz apareceu na conferência de imprensa que ontem teve
lugar no Hotel Ritz, em Lisboa, vestida com um xaile verde que lhe descobria o
generoso decote do vestido, também verde, qua trazia por baixo.
Ladeada pelo próprio Ruiz, pelo
produtor Paulo Branco e por alguns dos outros atores de “O Tempo Reencontrado”,
Marcello Mazzarella, Elsa Zylberstein e Christian Vadim (filho do seu primeiro
casamento com Roger Vadim), a atriz conservou a pose de elegância distante e a
serenidade que sempre a caracterizaram, mas não resistiu a levantar ligeiramente
a voz quando uma das jornalistas presentes lhe perguntou de que maneira é que
ela própria sentia na pele a passagem do tempo: “da mesma maneira que você”,
foi a resposta, gélida, disparada como uma estalactite contra a estupefacta
interlocutora.
De imediato, porém, recuperou a
presença de espírito, teorizando sobre “a necessidade de harmonizar o aspeto
mais cruel do tempo sobre a aparência física com o lado interior”, embora sem
negar “estar consciente do tempo que passa como algo de inevitável”. A atriz,
que em “O Tempo Reencontrado” desempenha a personagem de Odette, “uma mulher
coquete que já foi bela e aprendeu a servir-se da sua beleza”, repartiu as
atenções com Raul Ruiz, entretendo-se nos intervalos a beber copos de água, a
fumar, a riscar um bloco de notas com uma esferográfica e a estalar o verniz
das unhas.
Sobre o filme, com estreia nas salas
portuguesas marcada para 8 de Outubro, e a obra de Proust que esteve na sua
origem (“O Tempo Reencontrado” centra-se na terceira parte de “Em Busca do
Tempo Perdido”), Catherine Deneuve confessou ter “esperado 30 anos até se
cruzar com a obra do escritor”, embora sem nunca o ter lido “na totalidade”.
Afirmou, em todo o caso, que o risco maior da passagem para o cinema desta
obra-prima da literatura universal recaiu “mais no realizador” do que nos
atores.
No campo de
batalha
À medida que se esgotava o tempo
previsto para a conferência de imprensa, a temática temporal não deixou de
insinuar-se nas palavras e nas preocupações da atriz, para quem “o tempo nunca
é vazio”. “A perceção que os atores têm do tempo, durante o período de rodagem,
é diferente da quem têm os jornalistas quando veem o filme”, disse.
Apesar de gostar de “trabalhar
muito, muito depressa”, Catherine Deneuve não se importa quando tudo decorre
mais devagar, permitindo-lhe, desta forma, “que as coisas se infiltrem” em si.
Gosta de dormir nos intervalos das filmagens, mesmo que, nessas alturas, não
seja nunca “um sono profundo mas um sono quase de alerta”. “Está-se em pleno
campo de batalha!”.
Com Christian Vadim, filho do seu
casamento com Roger Vadim, e Chiara Mastroianni, filha do seu casamento com
Marcello Mastroianni, também atores, embora secundários (John Malkovich e
Emmanuelle Béart desempenham os outros papéis principais) pode dizer-se que “O
Tempo Reencontrado” – apresentado no Festival de Cannes em Maio deste ano – é
quase um assunto familiar. Catherine Deneuve não tem a mesma opinião. “Nunca
daria conselhos de qualquer espécie a qualquer ator mais novo, muito menos se
forem meus filhos”, afirmou, “até para não repetirem os mesmos erros que eu”.
Outro dos atores presentes na
conferência de imprensa, o siciliano Marcello Mazabella, que se apresentou pela
primeira vez a Raul Ruiz vestido como Marcel Proust (no filme encarna, aliás, a
própria figura do escritor-narrador), afirmou, por seu lado, que a sua maneira
de ser não poderia estar mais distante do escritor francês. Para Marcello, cujo
primeiro trabalho sob a direção de Ruiz remonta a 1983 e a “A Cidade e os
Piratas”, a principal diferença que encontrou entre esse filme e o atual é que
“então havia 10 pessoas na rodagem e agora havia 80”.
Quanto a Raul Ruiz, fiel ao discurso
hermético que atravessa todos os seus trabalhos, fascinou-o em Proust “a
evocação do passado sentido como presente” e o modo como na sua obra “o detalhe
contém a totalidade” – como um holograma.
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