Música
Músico brasileiro canta no Porto
VINICIUS DE MURAIS
Caetano e Gil, brasileiros, de um
lado. Laurie Anderson, Arto Lindsay, Bill Frisell, Peter Apflebaum, Joey Baron,
norte-americanos, do outro. Amazónia, MPB e "downtown" de Nova Iorque
abraçadas. Ao centro, a bossa-nova, o samba, o forró. Na música de Vinicius
Cantuária cruzam-se astros, terras e memórias. Índio de Manaus, cidadão do
planeta, Vinicius vem cantar a Portugal. Fusões do espírito com a selva, a
praia, o futebol e a cidade. Murais do Brasil. Do futuro do Brasil.
A MÚSICA de
Vinicius Cantuária é sedução. Igualdade e diferença. Milagre de Iemanjá.
Mistério sem solução. Encontro de muitos caminhos sobrepostos num só. É assim
em "Tucumã", álbum mais recente deste autor-intérprete brasileiro,
como era no anterior, "Sol na Cara", como era ainda na luz que guiava
Arto Lindsay através da bossa-nova, em "Corpo Sutil", com assinatura
deste músico norte-americano. Vinicius Cantuária passa a voz pelo dorso dos
monstros e das flores carnívoras que habitam no sertão, banha-se nos rios
infestados de piranhas e sonhos submersos do Amazonas. Passeia-se por uma praia
do Rio de Janeiro sonhando com a garota de Ipanema. Do alto de uma
"penthouse" contempla os mesmos céus de Manhattan, de cor excessiva,
que Brian Eno filmou como se apontasse as lentes para outro planeta. Murais do
mundo. Murais do Brasil.
Parece simples, esta maneira de
estar e de ser na música tão típica e obliquamente brasileiro de Vinicius
Cantuária. Temas de "Tucumã", na aparência rente ao chão, como o
futebol, em "Aviso ao navegante", levantam voo em direcção a um azul,
verde e amarelo salpicados de eternidade. "Cuidado menino dos pés
descalços, que bate na bola com efeito contrário". Com efeito, a bola, em
"Tucumã", ganha efeitos inusitados, saltando para onde menos se
espera.
Há canções sublimes neste álbum que
recria, como nunca antes alguém havia recriado, a mesma nostalgia mágica que
Tom Jobim e João Gilberto, os mestres, libertaram com o nome de bossa-nova.
"Pra Gil" é uma dedicatória a Gilberto Gil, com quem Vinicius tocou
durante muitos anos, o mesmo acontecendo com Caetano Veloso. Mitos da Música
Popular Brasileira (MPB) que Vinicius reescreve com a liberdade de quem sabe o
caminho a seguir. E "Tucumã", dança do interior do coração e do
interior da selva. "Eu não sei se a mata é virgem, eu não sei se a índia é
virgem". Cadinho do que há-de vir. "Lá no fundo do Armazém, o
Amazonas do futuro". Vinicius inventa a modernidade a partir das formas mais
antigas da música brasileira, das suas pulsações mais viscerais, das suas
correntes mais profundas. Das suas cores mais carregadas. Mas como um mago, com
um estalo dos dedos, faz a música descolar igual a um pássaro. Ou seja, o peso
da tradição não se faz sentir na sua música. Ela está presente, a tradição. Mas
a puxar para cima e para a frente, não para baixo e para trás. Como acontece
noutro tema de "Tucumã", um prodígio com o nome de
"Sanfona", cuja beleza apenas a alma consegue entender mas cuja matemática
a razão apreende, como se de um novo teorema se tratasse. Cadência do Nordeste,
a chamar por Luís Gonzaga e Dominguinhos. Mas quando, a meio da canção, as
notas se abrem numa melodia que muda de tom com a graça de uma garça, a
fogueira junina – dos rituais de passagem para o Verão – estremece. E floresce
no seu lugar um jardim de seres alados recortados dos livros de histórias.
"Retirante" permanece – embora seguindo a regra de partir sempre para
mais longe – com o rosto virado para o Nordeste. A mesma garra-pétala que traça
no ar o rasto de um "índio branco, um cantador de pop errante".
É o quê, afinal, a música do Brasil
sem fronteiras de Vinicius Cantuária? É bossa-nova. Iluminada por um sol de
folhas, banhada por um mar de mel. É forró e baião. Pode lá ser, com sapatilhas
de ballet e água de samples... É samba. Mas triste. Por isso chamado
bossa-nova. É jazz. O suficiente. É antigo. Novo. Ovo. É a "Jóia" de
Caetano junto com o resto do tesouro.
Sim, é verdade, Arto Lindsay, Bill
Frisell, Laurie Anderson, Peter Apfelbaum, Joey Baron, Sean Lennon, convidados
ilustres, estão dentro dos discos de Vinicius. Mas estão lá, como nós do lado
de cá, para se maravilharem, indo sem saber bem para onde o compositor
brasileiro os leva.
"Eu vivia isolado do mundo
quando eu era vagabundo", canta Vinicius no tema que fecha
"Tucumã", através das palavras com raiz de Alcides Dias Lopes. Um
samba igual aos de antigamente. No entanto, tão diferente e, de outra maneira,
na mesma a chamar por nós.
VINICIUS CANTUÁRIA
PORTO Jardins do Palácio de Cristal, 3ª, às
22h30
Carlinhos
omelete
CARLINHOS
BROWN, como Vinicius Cantuária, é um homem de fusões. Um homem de omelete, se
acreditarmos no título do seu último trabalho, “Omelete man”. Mas ao contrário
de Vinicius, este natural da Baía joga com mão mais pesada. Mestre das
percussões, montou um gigantesco coletivo de timbalada. Amante do funk, em
particular de James Brown, e do reggae, Carlinhos Brown cruza ritmos com a
mesma agilidade com que um coznheiro experimentado bate as omeletes. Em Nova
Iorque, claro, não faltaram ouvidos sensíveis à fúria da timbalada, na versão
Carlinhos Brown. Herbie Hancock, Wayne Shorter e Bill Laswell sucumbiram ao
ritmo e responderam ao apelo, tocando com o músico brasileiro. Dentro de portas
aderiram a esta explosão de ritmos tropicais Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal
Costa, Maria Bethânia e Marisa Monte. E os Sepultura, metálicos, como alguns
dos tambores da timbalada. O homem-omelete é Brasil durante o Carnaval. Tanto
assim que no ano passado, em plena folia, Carlinhos não resistiu a despir-se
completamente perante milhares de pessoas, quando desfilava. Um tribunal da
Baía condenou-o a pagar uma multa equivalente a 180 contos, por crime de
obscenidade. Mas a multa foi convertida em géneros alimentares, entregues a um
orfanato. Provavelmente ovos. É que o júri entendeu que o cantor não pretendera
“chocar o público” mas sim chamar a atenção para as deficientes condições do
desfile. Como diria o outro, “Sem ovos não se fazem omeletes”. Carlinhos Brown
serve-as bem batidas. Pela timbalada.
CARLINHOS BROWN
LISBOA Anfiteatro da Doca, no Parque das
Nações, 5ª, às 22h
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