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SÁBADO,
9 OUTUBRO 1999
Concerto
fúnebre por Amália
Amália Rodrigues foi hoje a enterrar. O seu maior medo
era que as pessoas se pudessem esquecer dela. Os milhares de pessoas que ontem
a acompanharam até à última morada, no Cemitério dos Prazeres, mostraram, num
clarão de emoções, que tal jamais acontecerá. O povo, a quem Amália deu voz
durante toda a sua vida, despediu-se a cantar fado. A mulher morreu. Nasceu o
mito.
Com as
honras devidas, Portugal prestou a última homenagem à maior das suas vozes. Uma
voz que entrou, mais do que nos ouvidos, no fundo anímico dos portugueses.
Amália, o seu fado, trespassou-nos. Ontem de manhã, na Basília da Estrela,
celebrou-se a missa das exéquias e o funeral da fadista. Demonstração
impressionante do amor que todos nutriam por esta mulher que começou por vender
fruta até se tornar na embaixatriz da alma e da música portuguesas no mundo. O
PÚBLICO fez a viagem através da multidão, entre os cacos de um sonho quebrado.
Sem remédio nem retorno. Mas também a viagem através das pequenas histórias
que, inevitavelmente, nascem quando um grande vulto morre. Onde termina a
realidade e começa a ficção? Em Amália. Nos fados de Amália. No fado de Amália.
No nosso fado. No que recebemos e deixámos de receber com Amália. Do que
perdemos de nós mesmos por Amália. O maior medo de Amália Rodrigues era que se
esquecessem dela. Ninguém de esquece de si próprio. Portugal inteiro fez-se
saudade.
Afastar o
desespero
"Você acha mesmo que
a Amália tinha 79 anos?", dispara, conspirador, o motorista de táxi que
nos conduz à Basílica da Estrela onde vai ser celebrada a missa das exéquias da
fadista. Não tinha? Perguntamos, incrédulos. "Era muito mais velha!",
garante o taxista, "o meu pai, que tem hoje 83 anos, conheceu-a bem quando
estava a acabar a tropa, aos 21 anos. Tinha a certeza, confirmada pela própria,
que a Amália era dez anos mais velha do que ele". Por contas de cabeça,
Amália teria então 93 anos na altura do falecimento. É o começo da lenda. O
primeiro dia da eternidade. Estas e outras histórias, verdadeiras ou
imaginárias, andarão de boca em boca pelas gerações vindouras, conservando
intacta a memória daquela que foi a maior cantora portuguesa de todos os
tempos.
O táxi reduz a velocidade
à medida que a multidão vai engrossando. Para todos os que, de algum modo,
foram sensíveis à música ou à mulher, a última homenagem é um imperativo moral
inadiável. A Basílica está apinhada de rostos comovidos. Mas a manhã rompe
luminosa e dentro do templo a luz jorra com força, espantando as sombras.
Amália "afastava para longe o desespero que às vezes invade o espírito dos
embotados" diz D. José Alves, vigário-geral do Patriarcado de Lisboa.
Às nove da manhã tem
início a celebração. Ofício religioso mas também espetáculo. Ao centro da nave
principal o caixão com o corpo de Amália tem como cobertura a bandeira
nacional, emoldurada por flores. Rodeiam-no uma guarda de honra composta por
elementos da GNR. Um deles sente-se mal e sai amparado. Minutos mais tarde
outro cai redondo no chão.
Num dos lados da nave da
basílica está instalado o quartel-general da comunicação social, transformando
aquele espaço numa agência noticiosa. Soam telemóveis. Locutores transmitem em
direto a cerimónia falando mais alto que o devido. Fios e cabos, blocos e
gravadores. As objetivas dos fotógrafos procuram enquadrar o caixão com os VIP
que estão sentados no lado oposto da nave. Caras consternadas, à direita, ao
centro e à esquerda. João Braga, com a consternação estampada no rosto, lê aos
microfones um texto religioso. Ele e os veteranos das casas de fado estão
presentes em força. Os mais novos, não conseguimos vê-los. Raul Indipwo e João Maria
Tudela marcam presença. E José Pedro, dos Xutos e Pontapés: "Estou aqui
principalmente pela Celeste Rodrigues, mãe da sobrinha de Amália, a Mizé, com
quem vivi muito tempo”.
A
necessidade de estrelas e do seu brilho
À medida que o ritual
avança cresce a emoção. Celeste Rodrigues, irmã de Amália, não esconde a dor
que sente. Nem Leonilde de Jesus, secretária pessoal e amiga de Amália. Há quem
profira palavras de consolo, tentando ignorar que há momentos na vida em que
não há consolo possível. Quando Rosa Mota entra, já a meio da missa, os rostos
voltam-se para esse lado. Felizmente, Portugal tem outras estrelas. Portugal
precisa de estrelas e do seu brilho – maior, para o povo, que o dos fatos e
gravatas dos políticos que o luto escureceu.
Frei Hermano da Câmara, o
frade-cantor com quem Amália cantou no álbum "Nazareno", destaca-se
entre os oficiantes. Já na rua declara que está a viver a morte de Amália
"muito interiormente, como muita dor, muito sofrimento e muita
oração", acrescentando que "é uma faca no coração, um vazio que se
sente, a perda de um gigante da arte e do fado".
O frade não canta mas
canta o Coro da Paróquia da Lapa. Um grupo de guitarras enche de música a
cerimónia com uma versão instrumental de "Foi Deus", um dos fados que
mais alto projetou a voz de Amália Rodrigues. Estudantes de Coimbra evocam, num
gesto simbólico, o filme "Capas Negras" no qual Amália participou.
A missa termina – diz-se
que a pedido expresso em vida pela própria – com a voz de Amália a cantar
"Grito". Silêncio. A seguir, um fogo. É o zénite, o vulcão dos
sentimentos, a presença sobrenatural. Quando se extingue o último verso –
"Solidão quase loucura" – a multidão explode num aplauso
interminável. Agitam-se lenços brancos. Muitos choram.
"Quando eu morrer,
façam o favor de chorar por mim", pedira Amália em vida. Portugal chorou.
A cantar o fado.
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