17/01/2017

Se isto não é gostar... [Cesária Évora]

SÁBADO, 6 NOVEMBRO 1999 cultura

Cesária Évora apresentou “Café Atlântico” em Portugal

Se isto não é gostar...

Foi uma Cesária sem mácula a que ontem subiu ao palco do Coliseu dos Recreios em Lisboa. Raras vezes a voz de Cize soou tão terna e com tanta clareza como naquela que terá sido uma das melhores atuações da diva em Portugal. Um grupo de acompanhantes à altura, a par da qualidade do som e das luzes, transformaram a apresentação de "Café Atlântico" numa noite inolvidável.

A voz de Cesária é como o som das ondas do mar. Vem de longe e não descansa até ser deposta, como um beijo, sobre a praia, transportando consigo os segredos das ilhas e a mensagem das águas. Chamam saudade a esse caminho que anula margens e distância. "Só os portugueses é que não gostam muito de mim, pois não?" perguntara Cesária na conferência de imprensa realizada na véspera, numa alusão à fraca recetividade que, na altura, estes concertos estavam a ter (Cesária voltou a actuar ontem em Lisboa e estará esta noite, às 22h, no Coliseu do Porto).
            É certo que o Coliseu dos Recreios, em Lisboa, não encheu na primeira noite (quinta-feira) para a receber mas a verdade é que todos se renderam à voz e ao sentimento que dela se desprende. No final o público inteiro aplaudiu de pé não parando de gritar "Cesária! Cesária! Cesária!". Se isto não é gostar então o amor não existe.
            Antes de Cesária, e porque a noite era de um Atlântico estendido para Oeste até um café de Cuba, atuou o grupo cubano da cantora Leyanis Lopez, com o álbum "La Mariposa" na bagagem. Leyanez deslumbrou sobretudo pelo belíssimo vestido em tons de azul-turquesa e pelo modo sensual como meneou a voz e as ancas, o mesmo não se podendo dizer do grupo que a acompanhou, firmemente arreigado a um reportório clássico composto por baladas que não destoariam num salão de baile.
            A seguir ao intervalo – que serviu a muita gente para se inteirar do resultado do jogo do Benfica – o Mindelo ocupou a sala com memórias e a promessa de momentos que não se irão esquecer. Era ainda apenas a banda, sem Cesária, a introduzir as notas instrumentais de uma viagem de múltiplas etapas pelo arquipélago de Cabo Verde. O público já tinha saudades de Cesária e a "diva dos pés descalços" correspondeu, arrancando com "Sodade", um dos seus temas mais conhecidos, para uma atuação onde não se descortinaram falhas.
            Dos efeitos de luz à nitidez e detalhe do som, do talento dos instrumentistas – com destaque para o piano de Fernando Andrade, os solos de saxofone de António Fernandes e o violino do músico cubano Julian Subida – tudo se conjugou para emprestar à voz de Cesária ainda maior brilho.
            Cize não se fez rogada. Cantou como uma deusa mulata, com uma ternura e uma precisão de timbres exaltantes, a figura estática e o sorriso parado, esfinge através da qual fluiu uma torrente de emoções. Nas mornas e nas coladeras, em clássicos como "Sangue de beirona" (mais acelerado do que é costume) "Angola", "Mar azul" e "Miss perfumado", mas também na exuberância e nos festejos do funaná, em "Carnaval de São Vicente" e "Nho Antone escaderote", com que fechou o concerto, dois dos temas pertencentes ao novo álbum de Cesária, "Café Atlântico", do qual a cantora cantou também "Flor di nha esperança", "Vaquinha mansa", "Amor di mundo", "Perseguida", "Terezinha", "Cabo Verde manda mantenha", "Sorte" e "Nho Antone escaderote". O alinhamento incluiu ainda "Cabo Verde terra estimada", "Luiza" e um segundo instrumental que Cesária aproveitou para o já habitual momento de pausa – "cantar também cansa!" – sentando-se, também como de costume, diante de uma pequena mesa instalada no palco.
            Cada balanço da alma, cada inflexão da voz, cada pormenor instrumental foram absorvidos com devoção por uma sala que, impulsionada pela alegria do funaná, saltou como uma mola para aplaudir a diva de pé. Cesária regressou para se despedir com "Besame mucho" e a repetição de "Carnaval de São Vicente". Maré-cheia. O café fechou. Sodade.

CESÁRIA ÉVORA

PORTO Coliseu, às 22h

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