SÁBADO, 16 OUTUBRO 1999 cultura
Música
pré-hispânica no Paradise Garage
Jorge Reyes nas asas do peyote
LUA CHEIA sobre um lago na
montanha. Silêncio. Paragem do tempo. Sobre as águas ergue-se o som de um
tambor. Uma flauta de porcelana desliza para o mar. Uma concha abre as
mandíbulas e canta. Sobressalto: sobre a quietude da noite, assalta-nos o
batimento cardíaco de um índio. Digitalizado e processado em computador.
Imagens
sugeridas pela música do mexicano Jorge Reyes que esta noite transformará o Paradise
Garage, em Lisboa, no templo de uma misteriosa civilização pré-hispânica. O
concerto, organizado pela Symbiose, conta ainda com a presença de dois
bailarinos índios o que, decerto, acrescentará uma dimensão teatral a uma
música umbilicalmente ligada ao imaginário do peyote (cato com propriedades
alucinogénicas) e aos rituais religiosos dos povos que habitaram o México no
período anterior à colonização espanhola.
A
este envolvimento onírico-naturalista (totalmente arredado das preocupações
pseudo-humanistas na new age, diga-se desde já) confere Jorge Reyes uma
dinâmica descontextualizadora do material étnico através do recurso aos
computadores e sintetizadores digitais. O resultado é um território inexplorado
no qual o referente mexicano acaba por funcionar a nível subliminar,
equidistante das "músicas possíveis do quarto mundo" de Jon Hassell e
da "sombient" apocalíptica de Steve Roach (parceiro de Reyes, com o
guitarrista espanhol Suso Saiz, nos Suspended Memories).
Jorge
Reyes nasceu em Uruapan, no Michoacan, México, tendo iniciado estudos clássicos
na década de 70. Viajou pela Turquia, Afeganistão, Paquistão e Sri Lanka, onde
estudou percussão e música tradicional indiana. Em paralelo, desenhou o mapa
interior das suas navegações psico-musicais, ensaiando formas de contacto entre
os instrumentos tradicionais e objetos da natureza (conchas, troncos, ossos) com
a eletrónica (incluindo a amplificação de sons produzidos pelo corpo humano) e
a manipulação vídeo, em ambos os casos procedendo à adição de elementos étnicos
e digitais.
Da contemplação ao terror
"Ek-Tunkul",
de 1985, assinala a estreia discográfica de Jorge Reyes, um álbum onde eram
notórios resquícios do rock progressivo e da "kosmische musik"
(música cósmica) de Klaus Schulze e dos Tangerine Dream. "A la Izquierda
del Colibri", editado no ano seguinte, faz a transição de uma música solar
colorida com as cores do arco-íris para um céu iluminado pela lua e pelas
alucinações noturnas de fantasmas índios vagueando pelas regiões astrais.
"Comala" (1987) e "Niérika" (1990) são álbuns de música
eletrónica inovadora capazes de provocar em quem a ouve estados anímicos que
vão da contemplação ao terror.
Mas
é a partir do álbum "Mexican Music Pre-Hispanic", de 1990 (primeira
parte de uma trilogia que se completaria com "Music for the Forgotten
Spirits", de 1994, e "Mystic Rites", do mesmo ano), que a música
de Jorge Reyes atinge uma intensidade e um grau de envolvimento com as vozes e
mitos do inconsciente que fazem dela uma ponte para o desconhecido. Reyes
contactara na década de 80 com as tribos índias mexicanas o que o levou, a par
da consciência da "decadência da música pop", a interrogar-se sobre
as tradições e os objetivos que norteariam, de futuro, a sua música.
Em
"Cronica de Castas" (1991, álbum conceptual sobre a genealogia das
castas índias primitivas, com Suso Saiz), "Bajo el Sol Jaguar", de
1992, e "El Costumbre", de 1993, Jorge Reyes levanta o véu a uma
realidade alternativa nascida no fundo dos tempos, de criaturas sem nome e
lances de magia, equivalente à literatura mágica do seu compatriota Carlos
Castañeda. Um novo tipo de psicadelismo sobre o qual é o próprio a teorizar:
"O som é energia e é preciso saber lidar com isto. Apercebemo-nos não só
da realidade do mundo como de outros mundos misteriosos que apenas se podem ver
e tocar através da música. É preciso desenvolver diferentes maneiras de
trabalhar o som e é por essa razão que comecei a utilizar pedras, a tocar com
os ritmos do corpo, para fazer aparecer esses sons arcaicos. Um retorno ao
inconsciente coletivo, não só de uma cultura, a mexicana, com muitos milhares
de anos, mas muito mais para trás."
Alquimista
da fusão do novo com o milenar, Jorge Reyes justifica ainda o recurso ao
minimalismo: "A repetição é a única maneira de aceder ao sobrenatural,
estamos a falar de tempo que é uma entidade linear. Só pela repetição se pode
escapar a esta realidade, do dia-a-dia, tornando-a elástica, fazendo dela um
espaço sagrado.
"É
este espaço sagrado – que o êxtase do corpo pode ajudar a alcançar mas que
apenas o espírito consegue vislumbrar – que Jorge Reyes dará a ver e a ouvir
hoje à noite numa discoteca de Lisboa. Boas viagens astrais.
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