CULTURA
QUARTA-FEIRA, 10 DEZEMBRO
2003
Morreu o pianista de “Buena Vista Social
Club”
AOS 84 ANOS
Rubén González, pianista cubano que o álbum e documentário “Buena Vista
Social Club” popularizaram, morreu anteontem. Os hotéis e cabarés de Havana ficaram
mais vazios
"Um cruzamento entre
Thelonious Monk e o Gato Félix" foi como Ry Cooder descreveu Rubén
Gonzaléz, lendário pianista cubano que anteontem morreu na sua casa, em
Santiago de Cuba, aos 84 anos. Depois do desaparecimento, em Julho, de Compay
Segundo, aos 95 anos, a música cubana perde num curto espaço de tempo dois dos
seus principais embaixadores, representantes de uma época de ouro em que o cha
cha cha e os guarachas eram ouvidos todas as noites nos bares dos principais
hotéis e bares de Havana.
Ry
Cooder, guitarrista americano a quem se deve a autoria da banda sonora de
"Paris-Texas", de Wim Wenders, e produtor do álbum "Buena Vista
Social Club" (principal passaporte da música cubana para o resto do
mundo), transposto para cinema pelo realizador alemão, considerou ainda
Gonzaléz como "o maior solista de piano" que alguma vez conheceu.
Misto de inovação e tradição, jazz e a euforia dos ritmos latinos. Mestre do
"son". Monk e o Gato Félix, na comparação feliz de Ry Cooder.
Ibrahim
Ferrer e Omara Portuondo, dois dos participantes de "Buena Vista Social
Club", prestaram ontem homenagem ao seu antigo companheiro, recolhendo-se
diante da urna, coberta por uma bandeira de Cuba, antes do corpo do pianista ir
a enterrar, ao final do dia, no cemitério de Colon, em Havana.
Rubén
Gonzaléz nasceu em Abril de 1919, em Santa Clara. Entrou
cedo para a música (iniciou os estudos de piano aos 7 anos) mas teve que
esperar pela velhice até a fama lhe bater à porta. Quis ser médico de dia e
pianista de noite. Abdicou do dia, optando pelos remédios da noite. Aos 22
anos, tornou-se músico profissional, após estudos clássicos no Conservatório de
Cienfuego.
Ao
longo dos anos 40, Rubén Gonzaléz percorreu os "halls" de hotéis como
o Hotel Inglaterra ou o cabaré Tropicana, numa época em que o talento era tão
importante como o trabalho árduo e os músicos funcionavam como variantes de
"barmen", com a função de criar bom ambiente entre os hóspedes ou
simples visitantes que bebericavam mojitos e daiquiris. "Música de
hotel", "cocktail jazz" ou "piano bar", termos que
hoje voltam a estar em voga na sua versão revivalista.
Gonzaléz
foi, no entanto, mais longe, fazendo questão de que o seu piano, um misto de
jazz cubano e inovação, mais do que simples instrumento de acompanhamento, se
afirmasse como instrumento solista, embora sem abdicar da forte componente
rítmica que caracteriza a música latino-americana.
Fora
dos bares de hotéis Gonzaléz brilhou nas várias orquestras e grupos em que
participou, como a Orquestra Paulina, o Conjunto Camayo, Los Hermanos, ao lado
de músicos como Raul Planas, Mongo Santamaria e Arsénio Rodriguez, com quem
gravou o seu primeiro disco. Viajou pelo Panamá e pela Argentina onde tocou com
músicos de tango e, já nos anos 60, entrou para a orquestra de Enrique Jorrin,
considerado o criador do cha cha cha, aí permanecendo 25 anos, até à morte do
seu líder. A meio da década de 80, porém, quando já assumia as funções de chefe
da orquestra, a artrite levou Rubén Gonzaléz a retirar-se.
Foi
preciso esperar até 1996 para o seu nome voltar a ser falado, ao entrar para os
Afro-Cuban All Stars, com os quais gravou, no ano seguinte, o álbum "A
Todo Cuba le Gusta". Chegara o tempo do resto do mundo começar a reparar
na música cubana. Todos os olhares e ouvidos se voltaram em 1998 para o Novo
Testamento da música cubana, "Buena Vista Social Club", com
participantes do calibre de Ibrahim Ferrer, Omara Portuondo, Compay Segundo,
Eliades Ochoa e, claro, Rubén Gonzaléz, convidado a participar por Nick Gold,
dono da editora World Circuit, a mesma de Ry Cooder.
Rubén
Gonzaléz sonhava no seu universo pessoal. O afastamento por doença levara a que
nessa época não tivesse piano, obrigando-o a utilizar o existente no estúdio.
Mas diz quem o viu que os seus olhos irradiavam felicidade quando, todas as
manhãs, esperava em frente ao edifício que as portas se abrissem.
Na
sequência desse disco, aclamado pelo público e pela crítica e vencedor de um
Grammy, Gold convenceu de imediato o pianista a gravar aquele que seria o seu
primeiro trabalho a solo em nome próprio, "Introducing Rubén
Gonzaléz". A gravação durou dois dias. Gonzaléz tinha nessa altura 78 anos
e só então se tornou uma estrela.
A
esse disco de estreia seguiram-se "Indestructible" (ed. Egrem, 1998)
e "Chanchullo" (Nonesuch, 2000). Pelo meio, em 1999, a World Circuit
reeditou a seminal sessão de "cuban descarga" (a "jam
session" cubana) de 1979, do projecto Estrellas de Areito, a nata do jazz
cubano, personificada por solistas como Arturo Sandoval e Paquito D'Rivera.
Ainda uma colaboração com Raul Planas e a sua orquestra. Em todos eles Gonzaléz
revela a sua mestria e personalidade no "son" que funde o jazz com os
ritmos latinos.
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