JAZZ
DISCOS
PÚBLICO
17 JANEIRO 2004
Sclavis, que tirou retratos-fantasma? Pethman, que tirou do frio a arte
de Ellington? Parker, que tirou de si próprio um livro de memórias? Quem tira o
jazz da perdição? Ainda há quem lance boas tiradas.
Tiradas
a ferro
A noite de
Louis Sclavis pode ser de lua nova e jazz apagado, como aconteceu em “Dans la Nuit”,
álbum anterior deste músico francês. Mas também lua cheia. Desse álbum para o
novo “Napoli’s Walls” a lua mudou de fase e a transição está inscrita no tema
de abertura, “Colleur de nuit”. Noite italiana inspirada na obra do artista
gráfico Ernest Pignon-Ernest, autor de uma série de esculturas em pedra negra e
serigrafias incrustadas nas paredes de prédios antigos de Nápoles.
Representações fantasmagóricas e perturbantes, da morte, da Virgem, do Inferno,
de ritos ancestrais que evocam os arquétipos da humanidade.
Sclavis traçou, com base na obra
deste artista, o seu próprio filme, iluminado pelos fogos vesuvianos, das
mitologias e dos quadros de uma Nápoles vista não através de uma perspetiva realista
ou folclórica, mas como “cidade de ficção”. A música contemporânea, a eletrónica,
microdivagações de câmara, ópera bufa, teatro de marionetas e citações das
tradições musicais e canções napolitanas agitam-se numa dança de fogos-fátuos e
sonhos labirínticos que recriam, acima de tudo, arquiteturas da imaginação.
Como Trovesi (com quem o saxofonista
e clarinetista partilha algumas conceções e pontos de fuga sobre o jazz contemporâneo),
Sclavis incorpora no seu discurso elementos díspares para os sintetizar numa música
tão personalizada como universal. Acompanhado por Vincent Courtois (violoncelo
e eletrónica), Médéric Collignon (trompete de bolso, vozes, trompa, percussão,
eletrónica) e Hasse Poulsen (guitarra), o livre-pensador francês oferece-nos sarabandas
e sinestesias, múltiplos matizes e texturas, que se percorrem como as ruas e
vielas da cidade, observada pelos olhos de um estrangeiro. Uma música de
“adivinhações modernas”, “aparências” (aqui, o jazz, tal qual as imagens de Ernest,
é um “trompe-l’oeil”) e “portas secretas” que nos toca e nos chama para a
solidão do esteta que observa e sorve a Beleza como um vinho raro e requintado.
Da Finlândia não desaguam apenas
icebergues formados na geleira ECM. A surpresa escandinava chama-se “The Music
of Esa Pethman”, da série “The Modern Sound of Finland”, antologia de temas
escritos entre 1964 e 1966 pelo compositor, tenorista (emissão forte, timbre áspero
mas apelativo) e flautista Esa Pethman, nascido em 1938.
A remasterização de 24 bits valoriza
os mínimos pormenores de uma música que soube assimilar a arte de Duke
Ellington, referência incontornável para este autodidata para quem o mais
importante não é a teoria, nem as grandes edificações arquitetónicas, mas a
melodia. “Nunca estudei composição. Tenho a impressão de que os ensinamentos
técnicos apenas reduziriam as minhas composições a estereótipos”, diz. Pediu a
um amigo que lhe ensinasse os rudimentos necessários para harmonizar e
orquestrar as suas pequenas melodias, por vezes bizarras, de um jazz que nasceu
no “hard pop”, se cultivou em Ellington e se expressa em arranjos tão “out”
como os de “Shepherd song”, com as suas soluções dignas da caderneta de Raymond
Scott.
Sibelius e os românticos finlandeses
atravessam igualmente a música deste compositor um pouco excêntrico, tão à
vontade a afirmar que o jazz é, em termos de composição, “uma música limitada”,
como, logo a seguir, que este mesmo jazz lhe confere “liberdade em termos
rítmicos”, confessando ao mesmo tempo o seu deslumbramento ao ouvir um solo de
Charlie Parker ou de Sonny Rollins. Há uma orquestra de passo trocado, swing em
contratempo, fagulhas e geada. E “Al Secco”, por si só uma noite inteira de
baile e recital da meia-noite.
Na Bélgica também se faz pela vida.
Kris Defoort, de quem já conhecíamos o álbum “Sound Plazza”, volta a estar
presente, com um trabalho anterior, de 1999, que junta dois formatos e momentos
distintos: “Passages”, no primeiro CD, reúne temas em quarteto (com Mark Turner
em destaque no sax tenor), sendo o segundo inteiramente preenchido por cinco
“Passages” compostas para uma coreografia de Fatou Traoré e executadas por uma
formação instrumental alargada a que o pianista chamou Dreamtime. Neobop
cruzado por referências eruditas, uma incisão de Ornette Coleman (“Round trip”)
e incursões na atonalidade, no primeiro caso. Uma escrita mais ambiciosa, orquestral
e diversificada, no segundo, sem que nela se detetem, porém, sinais de génio.
Ou, pelo menos, uma alma com a incandescência da de Esa Pethman.
No caso de George Schuller e do seu
irmão Ed Schuller, a matilha Schulldogs, trata-se antes de mais de um espectro
alucinado a correr pelo jazz fora, aos uivos e a arrastar correntes. “Hellbent”
junta o baterista e o baixista com Tim Berne e Tony Malaby, respetivamente nos
saxofones alto e tenor, dois dos nomes mais requisitados do jazz atual. Recupera-se
e cultiva-se a componente performativa e ritual do “free jazz”, o grito, a
estridência e a subversão rítmica e harmónica, ainda que um dos temas, “Distant
cousin”, pretenda ser uma “reinvenção abstrata” de “Evidence”, de Thelonious
Monk. As progressões são orgásticas, partindo da prospeção e do tatear iniciais
para o clímax. Caminhos outrora perigosos mas que hoje se percorrem com um
sorriso de segurança e reconhecimento nos lábios. Os aventureiros e visionários
de antanho não morreram em vão.
Malaby aparece de novo, agora como
parceiro de Mark Helias (contrabaixo) e Tom Rainey (bateria), em “Verbs of Will”.
Boa música improvisada. Mas porque será que temos a sensação de se ter criado
em Nova Iorque uma espécie de “lobby” que parece ter estagnado num conceito e
em tiques de uma vanguarda que deixou de o ser? Questão pertinente e por resolver:
o jazz tem ainda salvação? Como e por onde? Pela via da entropia e da definitiva
passagem de testemunho à “música improvisada”, liberta em definitivo das regras
e dogmas da tradição? Ou pela da crucificação, através da assimilação e
adequação de outras formas e filosofias musicais (como fazem Trovesi e Sclavis)
onde as antigas noções (o “swing”, o “blues” – os dois grandes pilares)
adquirem novos significados e se transmutam em práticas universais? “Verbs of
Will” é novo que soa a velho, independentemente do inegável talento e cultura
jazzística dos intervenientes. No fim de contas são os deuses, os génios, os
grandes solitários, que fazem o trabalho sozinhos. Deixemos, então, de procurar
o “grande jazz” e louvemos, ao invés, os grandes músicos. Rezando para que
estes não nos abandonem e a Grande Obra possa prosseguir.
William Parker dá-nos razão. O que
noutros é bordão neste contrabaixista é necessidade básica e alimento vital. A
improvisação incendeia-se, sente-se que tem de ser assim, que o trajeto das
notas, por mais árduo que seja, é o único possível. Nos grandes músicos é a
música que orienta o executante, que faz o músico, e não o contrário. Que lhe
dita a lógica e as ordens. Músico com “M” maiúsculo é aquele que sabe ouvir e
obedece, abrindo e esculpindo o silêncio com o seu espírito e com as suas próprias
mãos. Parker faz isto, em “Scrapbook”, caderno de apontamentos e memórias em trio
com Billy Bang (violino) e Hamid Drake (bateria). Música livre, inspirada em
pessoas e lugares, pelos espaços e tempos percorridos. O violino de Bang estende-se
como a voz do destino, swingando entre a alegria e o desespero, timbre e ritmos
sintonizados num conceito cósmico da música. Parker é assombroso do princípio
ao fim. Passadas e ânimo de gigante, mundo maior que os mundos que o rodeiam, berço
de galáxias e buraco negro onde a música nasce e se desintegra para renascer,
diferente e com a frescura das géneses e o fogo das revoluções, no momento seguinte.
Aponte-se, então: indispensável.
LOUIS SCLAVIS
Napoli’s
Walls
ECM,
distri. Dargil
8 | 10
ESA PETHMAN
The
Music of Esa Pethman
Warner
Music Finland, distri. Ananana
9 | 10
KRIS DEFOORT QUARTET/DREAMTIME
Passages
2xCD
De Werf, distri. Multidisc
6 | 10
GEORGE SCHULLER SCHULLDOGS
Hellbent
Playscape,
distri. Trem Azul
7 | 10
MARK HELIAS’ OPENLOOSE
Verbs
of Will
Radio
Legs, distri. Trem Azul
7 | 10
WILLIAM PARKER
Scrapbook
Thirsty
Ear, distri. Trem Azul
9 | 10
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