28|NOVEMBRO|2003 Y
música|mécanosphère
Projeto de Benjamin Brajon
e Adolfo Luxúria Canibal, ressuscita a música industrial, que alia a
brutalidade dos sons à ambiguidade dos conceitos. Fazem-no através do canto e
de máquinas e de uma fisicalidade que se confunde, afinal, com a própria
essência do rock‘n’roll.
os mecânicos da
caixa-de-música
Máquinas, gritos, sangue. A faca dos
Mão Morta enterraram-se na carne da eletrónica infernal de Benjamin Brejon,
dando origem ao projeto Mécanosphère. A voz de um português, Adolfo Luxúria
Canibal, residente em França, mais a maquinaria pesada de um francês residente
em Portugal. A música industrial, monstruosos naipes de electrões e metal em
movimento, volta a estar em voga, impregnando o álbum de estreia da dupla,
“Mécanosphère”, de febre e inquietação, em temas como “O cinema”, “Manobra de
diversão” e “O homem com duas cabeças”. Brejon, um tipo simpático que é difícil
associar ao criador de disformidades sonoras que distorcem o nosso sentido de
realidade, explicou o funcionamento da estética e das estratégias da esfera
mecânica. Que compara metaforicamente ao efeito produzido por uma
caixa-de-música.
Antes de “Mécanosphère” já tinham feito
mais música juntos?
Um EP, intitulado
“Lobo Mau”, mas pode ser encarado mais como um ensaio, uma preparação para o
álbum.
Em
que circunstâncias é que os dois se conheceram e que nasceu o projeto Mécanosphère?
Estava em Paris,
em 1998, integrado num grupo modular, em que entravam e saíam pessoas. Não
tinha vocalista, misturávamos acústica com eletrónica, jazz e música
improvisada com coisas mais tecnóides. Nesse ano assisti a um concerto dos Mão
Morta, no festival Mergulho no Futuro… É engraçado, antes nunca tinha pensado fazer
alguma coisa com um vocalista…Mas fiquei impressionado com a prestação dos Mão
Morta e, em particular, do Adolfo. Havia qualquer coisa de curioso que nunca
tinha visto na maioria das bandas de rock…Um lado de “grand guignol”, algo completamente
exagerado, baseado na repetição e na saturação, na violência e numa brutalidade
tensa e negra, mas ao mesmo tempo com ironia. Convidei-o para fazer uma letra
para a banda, dei-lhe material para ele ouvir.
Um
de vocês vive em Paris, o outro em Lisboa. Mécanosphère é um projeto vocacionado
para a gravação de discos?
Somos um grupo,
embora funcionemos de maneira esporádica. Pelo menos em comparação com um grupo
de rock clássico.
No
vosso trabalho a parte instrumental serve de base à voz ou é ao contrário?
Não há um padrão.
Mas em geral parte tudo das vozes. Ele vai gravando, faz performances de
“spoken word”, inventadas no momento, em várias velocidades, sem marcação
rítmica. Eu dou indicações, para ele repetir isto ou aquilo. Depois pego neste
material e construo a música, usando os textos como trama narrativa.
Que
maquinaria eletrónica utiliza?
Geradores
analógicos, um velho sintetizador Korg MS-10 que achei no caixote de lixo
[risos], percussão eletrónica, mais uma série de efeitos e um teclado de
brinquedo. Uso pedais para criar “loops”, vou samplando à medida que vou
tocando e depois entra tudo numa mesa de mistura. Prefiro chamar ao conjunto um
vasto “circuit instrument”.
Não
usa “laptop”. É vital a manipulação física dos instrumentos?
Completamente! Tive várias vezes a tentação de
armazenar coisas no “laptop” mas depois, até tendo em conta a forma do sistema
e a maneira como toco, não dá! Prefiro usar o computador para o trabalho de
edição, para recortes…Embora nestes discos apenas tivéssemos usado um gravador digital
antigo.
Referiu-se
ao jazz e à música improvisada, mas a componente mais forte dos Mécanosphère é
a música industrial. Integra-se nessa tradição?
Sou bastante eclético,
bem como o Adolfo, que ouve mais jazz e free jazz do que outra coisa. Mas é verdade
que falámos de música industrial, só que, por outro lado, não me reconheço no
que o termo significa hoje em dia, embora as raízes continuem a ser grupos do
industrial antigo como os Throbbing Gristle nos quais, curiosamentre, havia um
lado de improvisação.
Nos
Throbbing Gristle a música estava ao serviço da agressão e da perversão,
funcionando como um tratamento de choque. Passa-se o mesmo com vocês?
Sim, também existe
esse lado perverso, até ao nível das letras. Mas é capaz de ser mais visível nos
concertos, verdadeiras “performances” em que nos esgotamos fisicamente e onde
há muita bateria e percussão. Procuramos criar uma espécie de choque,
brutalidade.
Os
Throbbing Gristle usavam em palco frequências sónicas que faziam o público
vomitar. Vão tão longe?
Não, não! (risos) Se bem que nos próximos concertos
tencione usar um tipo de frequências graves e sub-graves…
De
onde vem essa necessidade de violência?
Um dos aspectos
essenciais da música em palco é, se calhar, fazer uma espécie de purga, uma
catarse. Não encontro isto em muitas bandas. Quase sempre tudo se resume a um
catálogo de poses, de cortes de cabelo, de elementos pré-definidos que
contrariam a essência do rock ‘n’ roll, que é uma prática crítica. Um espelho
de inversão da sociedade.
O
lado tribal, ritual, da música industrial está presente nos Mécanosphère…
Sim, mas é
espontâneo, nada ligado a qualquer ideologia ou pseudo-misticismo. Somos mais
literais.
Da
capa ao nome do grupo, é notória a ênfase na máquina e das suas relações com o
humano. O homem-máquina dos Kraftwerk?
Em termos teóricos,
pode dizer-se que criticamos a máquina. Usamo-la mas enquanto um elemento
“frágil”. As caixas-de-ritmo e os sequenciadores, que conferem à música um lado
marcial, são submetidas a um processo de crítica.
Então
de que forma canalizam e exercem a brutalidade que referiu há pouco?
Tanto pode ser
através de descargas de jazz ou de drum ‘n’ bass brutal como coisas mais
frágeis. O som dos Mécanosphère pode ser metaforicamente conotado com as
caixinhas de música para crianças, um lado pré-digital.
A
música de dança tenta-vos?
Sim. O que se
passa é que tentamos fazer drum ‘n’ bass ou breakbeats mas sem usar o arsenal
geralmente usado para os fazer. Procuramos fazer hip-hop, mas através de um
sistema instrumental completamente diferente. Um grupo que nos influenciou
muito foram os Muslimgauze, que editaram cerca de 760 discos. Li uma vez uma
entrevista onde explicavam que não usavam nem computador nem samplers. Tinham
um sistema próprio. Tentavam fazer electro e saía outra coisa qualquer.
Além
de manipulador de eletrónica também toca bateria. Qual destas facetas tem mais
importância para o seu trabalho?
Agora penso mais
em termos de produção instantânea. Tenho montados em palco a minha bateria (nos
espetáculos utilizamos um segundo baterista) e o arsenal eletrónico que são
usados tendo em mente a idealização instantânea do produto final. Sempre toquei
bateria, não tanto como instrumentista, mas mais como teste em que me coloco do
lado do público, tentando sentir as suas reações.
Continua
a tocar jazz?
Aborreci-me um
pouco deste jazz, desta música improvisada que não pára de fazer e desfazer-se,
às voltas, pouco evolutiva. Mas tenho como referências o John Zorn e o Bill
Laswell e, em particular, os Painkiller, com o baterista dos Napalm Death. Foram
eles que me levaram a interessar-me pelo “dub” e pela música de percussão.
O
ruído é fulcral na música dos Mécanosphère?
Não gosto de
música limpa. Será por isso que gosto dos Muslimgauze que se calhar fazem melhor
drum ‘n’ bass do que um dj de drum ‘n’ bass…
Tem alguma coisa contra os DJs?
Nunca fiz DJing.
Gosto de passar discos, as minhas músicas preferidas. Mas admiro o trabalho de
algumas pessoas de Brooklyn, o coletivo Brooklyn Beat, a maioria deles são DJs
mas num sentido mais literal. Também gosto do DJ/Rupture e de Swayzak, que
fazem um trabalho de corte e cruzamentos contra-natura. Também DJ Collage, de
São Francisco. E Amon Tobim.
Existe algum conceito extra-musical subjacente a
“Mécanosphère”?
Sim, a partir das
letras do Adolfo. Mas é complicado porque metade do disco é cantado em francês
e a outra metade em português… Para se compreender a trama total é preciso falar
as duas línguas [risos]. O português tem uma gama de sons mais extensa do que o
francês, que é monocórdico, com os acentos tónicos sempre no mesmo sítio. Se
reparar, há temas como “O homem com duas cabeças” onde o Adolfo fala na
terceira pessoa, como um atrasado mental, a brincar mas, ao mesmo tempo, com
algo de ambíguo e perverso. Já houve pessoas que me vieram dizer que esta
música as incomodava, não sabiam se haviam de se rir ou não.
É
esse o vosso objetivo?
Não será
consciente mas também não nos incomoda minimamente, trabalhar essa ambiguidade.
Ambiguidade entre a eletrónica e a acústica, entre a “spoken word” e a canção…No
fundo o que queremos é gravar mais material e atuar ao vivo, como na digressão
que faremos em Abril, em que tocaremos juntos com o trio do saxofonista dos Stooges,
Steve MacKay que participou no “Fun House”, e cujo baterista pertence aos Sheer
Terror. Provavelmente iremos gravar juntos.
Uma
definição para o som Mécanosphère?
Reciclagem de
linguagens. Uma atitude que utiliza as várias culturas eletrónicas, mas ao
contrário: Retro-futurismo.
Sem comentários:
Enviar um comentário