JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 27 DEZEMBRO 2003
Jackie McLean e Wayne
Shorter, em duas das suas obras-chave, destacam-se do mais recente pacote de remasterizações
da série Rudy van Gelder. Os colecionadores da Blue Note não vão ter mãos a
medir.
Liberdade de comer
a maçã
Sabe a manjar e
não sai caro escutar as preciosidades que a Blue Note vem colocando periodicamente
no mercado em remasterizações de 24-bit com
a chancela “The Rudy Van Gelder Edition”, incluindo as
novas “Connoisseur CD Séries”. Na mais recente
fornada encontramos os nomes de Bud Powell, Jackie McLean, Lee Morgan, Sam
Rivers, Joe Henderson, Wayne Shorter, Larry Young, Andrew Hill e Hank Mobley. Qualquer deles
com o nome inscrito em letras gordas na grande enciclopédia do jazz. Depois do
“quem”, vejamos o “quê”. Por ordem cronológica.
28 de Dezembro de 1958. Bud Powell,
uma das forças vivas do piano “bop”. Em “The Scene Changes” em trio com Paul
Chambers (contrabaixo) e Art Taylor (bateria). Powell habitou desde cedo o lado
negro do “be bop”, acometido por problemas físicos e mentais que moldaram a sua
música em intervalos estranhos, tons menores e solos aos quais alguém chamou um
“empilhamento de caixas” de modo incongruente. “Un poco loco”, título revelador
incluído no primeiro volume de “The Amazing Bud Powell” (gravações
compreendidas entre 1949 e 1951), “génio” ou ambas as coisas, Bud Powell recria
em “The Scene Changes” os tempos rápidos, fragmentados em nódulos harmónicos de
onde é possível extrair inesgotável alimento. Entre o mambo e o enigma, Powell
bopou como um louco, fazendo os cenários girar interminavelmente nas nossas
cabeças.
19 de Março de 1962. Sob a
influência de Ornette Coleman, Jackie
McLean relança em “Let Freedom Ring” a linguagem do “bop” e do “hard bop” na direção de uma
expressividade mais livre, rasgada pelas inovações modais que Miles Davis
patenteara três anos antes no manifesto “Kind of Blue”. O sax alto liberta-se,
aliando a rugosidade tímbrica e uma energia entusiasmante às permissividades do
“free” e a modulações pertencentes já ao emergente jazzrock. A longa abertura
“Melody for melonae” é um portento onde o fogo e a água (jorrando em cascata do
piano de Walter Davis Jr.), a abstracção e a imaginação se combinam na criação
de um clássico. “My life has been sweet and sour, bittersweet,
and I’m interpreting my experience. I’m a
sugar-free saxophonist”, disse de si próprio o saxofonista que neste disco se faz
acompanhar ainda por Herbie Lewis (contrabaixo) e Billy Higgins (bateria). Para
o comprovar, basta escutar o licor e o grito amargo que se desprendem de “I’ll
keep loving you”.
15 de Fevereiro de 1964. Lee Morgan,
autor da obra-prima “The Sidewinder”, gravaria no ano seguinte outro disco
magistral, “Search for the New Land”, como líder de uma formidável formação composta
por Wayne Shorter (sax tenor), Grant Green (guitarra), Herbie Hancock (piano,
Reggie Workman (contrabaixo) e Billy Higgins (bateria). Também neste caso os 13
minutos do título-tema que abre o álbum funcionam como formulário de um disco
marcado por uma faceta dançável, advinda do “blues”, a par da imaginação e
criatividade proporcionadas por Shorter e Hancock, ambos em picos de forma (o
saxofonista gravaria neste ano “Juju” e “Speak no Evil” enquanto para o
teclista 1964 seria o ano do monumental “Maiden Voyage”). Para o trompetista,
porém, esta busca de novas terras soaria como um dos derradeiros ecos de uma
música que daí para a frente se esgotaria num sólido suporte de “blowing
sessions”, às quais faltaria, porém, a nitidez do enfoque deste disco e de “The
Sidewinder”.
11 de Dezembro de 1964. “Fuchsia
Swing Song” constitui a primeira gravação enquanto líder de Sam Rivers, um dos
grandes saxofones tenores do “free jazz”, mas nesta gravação dependendo ainda
das métricas swingantes do “hard bop”. Torrente imparável de ideias, todavia
invariavelmente formatadas na disciplina do “blues” (“Downstairs blues
upstairs”) e da tradição. Atento às inovações de Rollins, Coltrane, Dolphy e
Coleman, bem como aos percursos de Ayler e Shepp, Rivers permite-se rasgar os
compassos, entrando e saindo, estendendo-os em modulações circulares, como em
“Cyclic episode”, ou solilóquios de pura interiorização, como “Luminous
monolith”. Jaki Byard (piano), Ron Carter (contrabaixo) e Tony Williams (bateria),
são os seus parceiros de luxo mas não ainda aqueles que permitiriam ao
saxofonista libertar todo o seu génio.
27 Janeiro de 1966. Joe Henderson,
tenorista de sonoridade redonda e “comestível” (como Rollins e Coltrane, embora
sem a amplitude anímica destes, o que não o impede de meter ambos no bolso no
extraordinário “Caribbean fire dance”) recruta Lee Morgan, Curtis Fullwer (trombone), Bobby Hutcherson (vibrafone),
Cedar Walton (piano), Ron Carter (contrabaixo) e Joe Chambers (bateria) para fazer
“Mode for Joe”. A instrumentação diversificada permite uma riqueza de arranjos
e cores que Henderson aproveita, como em “Black”, para juntar a complexidade da
composição à liberdade da improvisação. Depois, já se sabe, qualquer disco que
tenha a participação de Hutcherson jamais corre o risco de ser recompensado na
avaliação com um défice de estrelas.
2 de Fevereiro de 1966. Outro disco
indispensável. “Adam’s Apple”, de Wayne Shorter.
Com Herbie Hancock, Reggie Workman e Joe Chambers. Aos primeiros acordes
de piano de Hancock, o coração dispara numa dança irresistível. Logo a seguir,
o tenor entra e acerta o passo e… nada a fazer… quem quiser assistir a uma
demonstração prática do que é o swing só tem que ter ouvidos e deixar-se arrastar
pelo balanço. Hancock e Shorter são, aliás, almas gémeas, e da sua colaboração
irrompe invariavelmente magia. Seja nos tempos rápidos, seja numa balada como “802 blues (drinkin’ and drivin’)”, diálogo muito
perto da perfeição. Voltam a ser o tandem perfeito na latinidade de “El
gaucho”. Ah, claro, e é neste disco que se encontra “Footprints”, um dos
“standards” dos anos 60 que marcaram o som e a atitude do jazz de fusão que a
década de 70 consagraria.
7 de Fevereiro de 1969. Menos
“lounge” que Jimmy Smith, menos “funky” que Charles
Earland, Larry Young
é um organista assolado por uma espiritualidade acentuada (a infl uência de Coltrane
e McCoy Tyner, tem destes efeitos), autor de “Unity”, gravado quatro anos antes
deste “Mother Ship” (com Lee Morgan, Herbert Morgan, no sax tenor, e Eddie
Gladden, na bateria). Construída em verticalidade (ouça-se um solo de Smith e
outro de Young, para se perceber a diferença de orientação e construção…)
“Mother Ship” lança na estratosfera hinos e orações a divindades pagãs, em
templos onde a arquitetura é por vezes, como em “Visions”, banhada pela sombra
do “dark magus” Miles Davis.
7 de Novembro de 1969. Dois
trompetes, trombone, “french horn”,
tuba, clarinet baixo, “english horn”, saxofones, flauta. Woody Shaw, Julian
Priester, Howard Johnson, Joe Farrell, estão presentes em “Passing Ships”
repletos de sopros em banda de nove elementos sob a liderança do pianista
Andrew Hill. O título-tema é elucidativo do barroquismo dos arranjos e a
entrada de “Plantation bag” poderia fazer parte de um álbum dos Soft Machine. Para
quem aprecie desbravar florestas e deparar com o inesperado a cada canto,
embarque num destes “Passing Ships” e desfrute da riqueza das paisagens. O
próprio Hill se deixa deslumbrar baixando o piano ao nível das sombras. Ocasionalmente,
a gravação deixa entender o trabalho de remontagem a que as fitas originais
foram sujeitas.
31 de Julho de 1970. Entrada nos
anos 70 com o Jazz Messenger e ex-sideman, uma década antes, de Miles Davis, Hank
Mobley, tenorista incontornável do “hard bop”. Mas é Woody Shaw quem começa por
se destacar na trompete na “suite” cortada em três segmentos que abre o álbum.
Cedar Walton, no piano, é a outra peça-chave deste trabalho onde a competência dos
músicos é inquestionável, mas ao qual falta a chispa das grandes obras. Como é
“Soul Station”, deste mesmo Hank Mobley, aqui caseiro e acomodado em demasia.
BUD POWELL
The
Scene Changes
8 | 10
JACKIE McLEAN
Let
Freedom Ring
9 | 10
LEE MORGAN
Search
for the New Land
8 | 10
SAM RIVERS
Fuchsia
Swing Song
7 | 10
JOE HENDERSON
Mode
for Joe
8 | 10
WAYNE SHORTER
Adam’s
Apple
9 | 10
LARRY YOUNG
Mother
Ship
8 | 10
ANDREW HILL
Passng
Ships
7 | 10
HANK MOBLEY
Thinking
of Home
7 | 10
Todos Blue Note, distri. EMI-VC
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