CULTURA
QUARTA-FEIRA, 7 JAN 2004
“O Senhor dos Anéis” na ponta da língua
Joseph Pearce, biógrafo de Tolkien, levou na segunda-feira uma pequena
multidão reunida na Universidade Católica a viajar pelo mundo fantástico de “O Senhor
dos Anéis”. Mas na plateia também havia especialistas
2004 está a ser o ano de Tolkien
e de “O Senhor dos Anéis”. Depois do terceiro filme da saga realizada pelo
neozelandês Peter Jackson, adaptada da obra literária do escritor inglês,
tornámo-nos, em maior ou menor grau, Frodo Baggins, Samwise Gangee, Legolas,
Gimli, Gandalf, Boromir ou Aragorn. Talvez mesmo algum carrancudo Gollum,
Sauron ou Saruman. No ano em que obtivemos fotos de Marte suficientemente
nítidas para serem coladas no álbum de família da nossa velha Terra, eis-nos
lançados para a Terra Média, onde Tolkien situou a acção de “Lord of the
Rings”.
Foi
pelo menos isso que sentiram as cerca de 400 pessoas que anteontem ao cair na
noite de segunda-feira encheram, até abarrotar, o auditório da Universidade
Católica Portuguesa, em Lisboa, para assistir à conferência de Joseph Pearce,
sobre “Quem é o Senhor dos Anéis? Mito e Realidade”. Sentados nas cadeiras ou
espalhados pelo chão, os admiradores ou meros curiosos da obra de Tolkien
beberam religiosamente as palavras de Pearce, hobbit inglês (reparem no ar
bonacheirão da foto) residente nos EUA (“tenho o sotaque de Londres maculado
pelo ‘twang’ americano…”, brincou), professor de Literatura no Ave Maria
College, 12 livros publicados, na maioria biografias, e considerado o melhor
biógrafo do autor de “O Hobbit”, “O Silmarillion” e, claro, “O Senhor dos
Anéis”.
Pearce
mergulhou a fundo no tema (em inglês, sem tradução, ao contrário do que
anunciava o programa), alternando divagações de carácter filosófico e religioso
com apontamentos ao melhor estilo de humor britânico, para uma plateia que fez
questão de demonstrar que também em Portugal existe um fenómeno de culto em
torno do universo de “O Senhor dos Anéis”, a julgar pelas respostas na ponta da
língua dadas por alguns dos presentes às questões colocadas pelo conferencista.
O
anjo rebelde que se opôs à criação do mundo por Uru? “Morgoth!”, exclamou de
imediato alguém. O senhor dos anéis? “Sauron!”. Mais difícil ainda: em que dia
Frodo lançou o anel (identificado por Pearce como o pecado) nos fogos do Monte
da Condenação, em Mordor? “25 de Março!”. 25 de Março, Equinócio de Verão,
precisamente o dia em que na tradição católica o anjo Gabriel anunciou à Virgem
Maria o nascimento de Cristo. O triunfo da Luz sobre as trevas. Curiosamente
também a data escolhida pelas bruxas para a celebração de um dos seus rituais.
Um Tolkien católico
Várias figuras e situações do
romance (desvalorizado principalmente por aqueles que nunca o leram, como
frisou o conferencista) foram escalpelizadas por Pearce à luz do mito e da
religião católica (“O Senhor dos Anéis” como obra religiosa serviu de mote a
todas as considerações). Deus compôs e dirigiu a Sinfonia da Criação que o Mal
– originado pela ânsia de poder de Morgoth, arcanjo decaído, equivalente ao
Lúcifer do Catolicismo – corrompeu, levando a divisão e a decadência à Terra
Média. Gandalf, o seu contraponto luminoso, encarregado de manter a Ordem e o
Bem. Tom Bombadil, único ser imune ao poder do Anel Um, e Goldberry,
equiparados a Adão e Eva no Jardim do Éden, personificações da Humanidade
anterior à Queda. Os Homens, presos na sua dualidade, entre a virtude e o
pecado, mas também livres e disponíveis para a Redenção, representados por
Faramir e Boromir. Mais humanos ainda, os Hobbits, os cidadãos comuns, para
quem o conforto é tudo e a vida se resume a ter casa e a manter os hábitos do
dia a dia (“hobbit”, aglutinação de “home” e “habit”, como explicou Pearce,
numa das várias análises ao processo semântico que Tolkien usou para criar a sua
galeria de personagens e locais).
Episódios
e atores, grandiosos ou arrancados ao quotidiano, de um universo “bigger than
life” que nos toca com a intensidade da Verdade (para Tolkien “o mito é uma
parcela da Verdade”, disse o biógrafo do escritor).
No
final, ou não fosse o local da conferência a Universidade Católica, houve quem
se mostrasse confundido pelo facto de muitos agnósticos serem igualmente
admiradores de “O Senhor dos Anéis”. Facto admirável cuja explicação reside em
que, além do mito, chave das portas que ligam o homem a si próprio e aos muitos
mundos que o Criador colocou à sua disposição, “O Senhor dos Anéis” é “uma
história maravilhosa”. Aliás, a única e melhor coisa que, segundo Pearce, Peter
Jackson tirou do livro: “Se nos pusermos na pele do tolkeniano ferrenho, não
paramos de encontrar defeitos no filme. Todavia, se formos isentos, até achamos
que podia ter sido pior!” Comentário digno de um hobbit.
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