27/12/2019

"O Senhor dos Anéis" na ponta da língua


CULTURA
QUARTA-FEIRA, 7 JAN 2004

“O Senhor dos Anéis” na ponta da língua

Joseph Pearce, biógrafo de Tolkien, levou na segunda-feira uma pequena multidão reunida na Universidade Católica a viajar pelo mundo fantástico de “O Senhor dos Anéis”. Mas na plateia também havia especialistas

2004 está a ser o ano de Tolkien e de “O Senhor dos Anéis”. Depois do terceiro filme da saga realizada pelo neozelandês Peter Jackson, adaptada da obra literária do escritor inglês, tornámo-nos, em maior ou menor grau, Frodo Baggins, Samwise Gangee, Legolas, Gimli, Gandalf, Boromir ou Aragorn. Talvez mesmo algum carrancudo Gollum, Sauron ou Saruman. No ano em que obtivemos fotos de Marte suficientemente nítidas para serem coladas no álbum de família da nossa velha Terra, eis-nos lançados para a Terra Média, onde Tolkien situou a acção de “Lord of the Rings”.
            Foi pelo menos isso que sentiram as cerca de 400 pessoas que anteontem ao cair na noite de segunda-feira encheram, até abarrotar, o auditório da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, para assistir à conferência de Joseph Pearce, sobre “Quem é o Senhor dos Anéis? Mito e Realidade”. Sentados nas cadeiras ou espalhados pelo chão, os admiradores ou meros curiosos da obra de Tolkien beberam religiosamente as palavras de Pearce, hobbit inglês (reparem no ar bonacheirão da foto) residente nos EUA (“tenho o sotaque de Londres maculado pelo ‘twang’ americano…”, brincou), professor de Literatura no Ave Maria College, 12 livros publicados, na maioria biografias, e considerado o melhor biógrafo do autor de “O Hobbit”, “O Silmarillion” e, claro, “O Senhor dos Anéis”.
            Pearce mergulhou a fundo no tema (em inglês, sem tradução, ao contrário do que anunciava o programa), alternando divagações de carácter filosófico e religioso com apontamentos ao melhor estilo de humor britânico, para uma plateia que fez questão de demonstrar que também em Portugal existe um fenómeno de culto em torno do universo de “O Senhor dos Anéis”, a julgar pelas respostas na ponta da língua dadas por alguns dos presentes às questões colocadas pelo conferencista.
            O anjo rebelde que se opôs à criação do mundo por Uru? “Morgoth!”, exclamou de imediato alguém. O senhor dos anéis? “Sauron!”. Mais difícil ainda: em que dia Frodo lançou o anel (identificado por Pearce como o pecado) nos fogos do Monte da Condenação, em Mordor? “25 de Março!”. 25 de Março, Equinócio de Verão, precisamente o dia em que na tradição católica o anjo Gabriel anunciou à Virgem Maria o nascimento de Cristo. O triunfo da Luz sobre as trevas. Curiosamente também a data escolhida pelas bruxas para a celebração de um dos seus rituais.

Um Tolkien católico
Várias figuras e situações do romance (desvalorizado principalmente por aqueles que nunca o leram, como frisou o conferencista) foram escalpelizadas por Pearce à luz do mito e da religião católica (“O Senhor dos Anéis” como obra religiosa serviu de mote a todas as considerações). Deus compôs e dirigiu a Sinfonia da Criação que o Mal – originado pela ânsia de poder de Morgoth, arcanjo decaído, equivalente ao Lúcifer do Catolicismo – corrompeu, levando a divisão e a decadência à Terra Média. Gandalf, o seu contraponto luminoso, encarregado de manter a Ordem e o Bem. Tom Bombadil, único ser imune ao poder do Anel Um, e Goldberry, equiparados a Adão e Eva no Jardim do Éden, personificações da Humanidade anterior à Queda. Os Homens, presos na sua dualidade, entre a virtude e o pecado, mas também livres e disponíveis para a Redenção, representados por Faramir e Boromir. Mais humanos ainda, os Hobbits, os cidadãos comuns, para quem o conforto é tudo e a vida se resume a ter casa e a manter os hábitos do dia a dia (“hobbit”, aglutinação de “home” e “habit”, como explicou Pearce, numa das várias análises ao processo semântico que Tolkien usou para criar a sua galeria de personagens e locais).
            Episódios e atores, grandiosos ou arrancados ao quotidiano, de um universo “bigger than life” que nos toca com a intensidade da Verdade (para Tolkien “o mito é uma parcela da Verdade”, disse o biógrafo do escritor).
            No final, ou não fosse o local da conferência a Universidade Católica, houve quem se mostrasse confundido pelo facto de muitos agnósticos serem igualmente admiradores de “O Senhor dos Anéis”. Facto admirável cuja explicação reside em que, além do mito, chave das portas que ligam o homem a si próprio e aos muitos mundos que o Criador colocou à sua disposição, “O Senhor dos Anéis” é “uma história maravilhosa”. Aliás, a única e melhor coisa que, segundo Pearce, Peter Jackson tirou do livro: “Se nos pusermos na pele do tolkeniano ferrenho, não paramos de encontrar defeitos no filme. Todavia, se formos isentos, até achamos que podia ter sido pior!” Comentário digno de um hobbit.

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